A IMPORTÂNCIA DA MUDANÇA NA CONCEPÇÃO DE TEMPO NO SURGIMENTO DA UMBANDA NO BRASIL

Prof. Mário Sá

 

 

 

Este artigo é o resultado de uma reflexão, tendo por base o  texto do Prof. Dr. Reginaldo Prandi (O terreiro e o tempo: Concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras versão 2: 1 de fevereiro de 2001 p.1) disponível no síte www.sociologia-usp.br/prandi/ e do Livro A Morte Branca do Feiticeiro Negro, Editora Brasiliense, do Prof. Dr. Renato Ortiz.

    Os especialistas no estudo de Umbanda são categóricos em afirmar que, além se sua origem genuinamente brasileira, ela é um resultado das transformações de uma sociedade rural para uma urbano-industrial. O sociólogo Renato Ortiz (1999) declara que a década de 1930

            ... representa a implantação, ou melhor, a adequação de um novo modelo político a uma nova ordem social. O polo de produção e agora o de comando político se deslocam definitivamente para a cidade. (p. 31)

            (...)

            (...) É interessante notar que a formação da Umbanda segue as linhas traçadas pelas mudanças sociais. Ao movimento de desagregação social corresponde a um desenvolvimento larvar da religião, enquanto que ao movimento de consolidação da nova ordem social corresponde a organização de uma nova religião. (p. 32)

   Confirma-se desta maneira a correlação Umbanda-urbanização-industrialização; não é por acaso que o universo religioso umbandista está impregnado desta tracionalidade de origem citadina. Na realidade o mundo sagrado é uma forma  de adequação ao mundo urbano. (p.54)

   É nesse novo universo que a Umbanda surgirá como um resultado das influências das religiões que habitam as "terras brasis", desde antes da chegada do europeu, passando pelo catolicismo, às religiões afro-brasileiras, até as novas concepções espiritistas européias do século XIX. Artur Ramos chamou este novo produto de "jeje-nago-mussulmi-banto-caboclo-espírita-católico" e onde cada um contribuiu com uma parte(livro Rituais Negros e Caboclos, Nivio Ramos Sales, Ed. Pallas ) . No entanto, mas que um mosaico religioso ela se apresenta como uma resposta a especificidade dessa sociedade que  inicia o século XX, tendo que se inserir na modernidade do capitalismo.

    Um dos desafios desse novo período é adequar uma população eminentemente rural a um novo mundo urbano, regrado por práticas industriais européias, dentre elas a importância do tempo. Se contrapondo com uma noção de tempo rural, onde elementos como o nascer e por do sol, os ciclos da produção agrícola, os períodos de cheia ou vasante dos rios são mais importantes que um punhado de horas, agora, o tempo passa a ser um regulador preciso dessa nova sociedade.

    Tentaremos traçar um paralelo entre a mudança na concepção de tempo, exposta acima, com a capacidade de resposta adaptativa que a Umbanda oferece como solução a essa problemática.

O TEMPO EM ALGUMAS CULTURAS AFRICANAS

    A presença das culturas africanas em nossa história foi um resultado da transferêcia de diversas comunidades através do tráfico negreiro que no Brasil se estendeu do século XVI ao XIX. Nesse contato cultural absorvemos elementos significativos dessas sociedades. A noção de tempo é uma delas. Reginaldo Prandi afirma que

     as religiões afro-brasileiras, constituídas a partir de tradições africanas trazidas pelos escravos, cultivam até hoje uma noção de tempo que é muito diferente do "nosso" tempo, o tempo do Ocidente e do capitalismo(O terreiro e o tempo: Concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras; versão 2: 1 de fevereiro de 2001 p.1).

    O autor segue afirmando que

     em sociedades de cultura mítica, também chamadas sem-história, que não conhecem a escrita, o tempo é circular e se acredita que a vida é uma eterna repetição do que já aconteceu num passado remoto narrado pelo mito (idem).

    Em defesa de sua tese ele cita um ocorrido no ano de 1936 quando a antropóloga Ruth Landes tenta uma entrevista com a, ainda não famosa Mãe Menininha do Gantois:

    "Marcada a visita, Menininha a recebeu e com ela começou a conversar com muita simpatia. Chegou então uma filha-de-santo que cumprimentou a mãe com todas as reverências, dizendo-lhe alguma coisa em voz baixa. Menininha pediu licença à antropóloga para se retirar um momento, dizendo-lhe que ficasse à vontade e que voltaria em seguida. A tarde se escoou e veio a noitinha, com muita movimentação na casa, muitas pessoas chegando e saindo. Mas a mãe-de-santo não voltou à sala. Com o dia já escuro, discretamente, Ruth Landes voltou para seu hotel. Só tempo depois pôde continuar sua conversa com a ialorixá. Soube mais tarde a antropóloga que a mulher que interrompera a entrevista trazia problemas e que a mãe fora cuidar dos rituais necessários para resolver a aflição da filha (idem p.3).

     A idéia de tempo no século XX na Bahia parece ainda muito próxima a alguns modelos africanos. Acreditamos que esse não seja um exemplo isolado, já que a nossa sociedade até o século vinte era majoritariamente rural. Dessa forma, deve ter se adequado bem, ou pelo menos absorvido, em algum grau, esse componente cultural.

     Essa noção de tempo deve ter encontrado campo fecundo em nossa sociedade agrária e rural até por volta da metade do século XIX. É nesse período que tem início a imigração européia que virá substituir o trabalho negro escravo. A princípio no campo para logo se deslocar para as cidades. Com os imigrantes, chega também uma significativa experiência com o mundo urbano-industrial que a um século já se desenvolvia em solo europeu.

     Sobre o tempo nessa sociedade o historiador Marcos Chiquetto escreve

     A partir do século XVIII, as fábricas e escritórios ocuparam cada vez mais uma posição central dentro da economia do mundo. Numa fábrica, se a máquina é ligada às 8 horas da manhã, todos os operários têm de estar prontos para trabalhar a essa hora. Um operário que chega dez minutos atrasado pode prejudicar a produção e dar prejuízo ao patrão. Além disso, não só nas fábricas, mas também no comércio e nos escritórios, o que um empregado vende ao seu patrão é, basicamente, seu tempo (...). O  tempo é uma mercadoria entre um patrão e seus empregados e, por isso, como qualquer outra mercadoria tem de ser medido com precisão. Para isso, todas as fábricas e escritórios têm um relógio, geralmente numa posição bem visível. Para sair de casa na hora certa, o trabalhador também tem de possuir seu relógio-despertador e, para não se atrasar no caminho, um relógio de pulso. (Chiquetto, 1996, p.10-11)

      E essa mentalidade que vai crescer no Brasil no mesmo período em que os centros urbanos e as fábricas começam a se alastrar pelas principais áreas econômicas do país. O tempo capitalista estará cada vez mais presente em nossa sociedade. Noel Rosa imortalizou a importância da fábrica  e do tempo industrial no imaginário popular do Rio de Janeiro do início do século. Em sua obra Três Apitos, samba de 1933 ele fornece o seguinte registro

                           "Quando o apito da fábrica de tecido

                             Vem ferir os meus ouvidos

                              eu me lembro de você"

        Ainda que a passagem da vida rural-agrária  para a urbano-industrial não tenha ocorrido de igual forma em toda a extensão geográfica brasileira, alguns centros se destacam nesse período: dentre eles a Cidade do Rio de Janeiro. Será nela o palco principal do surgimento dos terreiros de umbanda no século XX.

        Renato Ortiz, ao analisar alguns questionários do IBGE no Rio de Janeiro (Anuário Estatístico, IBGE., 1961) afirma que

        "... o crescimento da religião umbandista é indiscutível. (...) No Rio (ex-GB), o movimento se inicia mais cedo do que nos outros pontos  e, por volta de 1952-53 atinge o seu clímax.(p.56)"

        É nesse cenário que a Umbanda terá que adaptar o tempo africano, que faz parte da origem da religião, ao tempo capitalista das fábricas cariocas. É ainda Ortiz que afirma

        "A umbanda aparece pois como uma solução original; (...) Sua originalidade consiste em reinterpretar os valores tradicionais, segundo o novo código fornecido pela sociedade urbana e industrial"(p.48).

        Esse novo espaço faz com que os adeptos das práticas afro-brasileiras se vejam em uma encruzilhada: ou manter-se circunscrito a uma religiosidade, nesse momento representada prioritariamente pelo Candomblé, ou adaptar-se ao "novo tempo". Em se "optando" por esse segundo caminho, que traz a Umbanda como expoente maior, os adeptos terão que abrir mão de alguns ritos próprios da religiosidade afro-brasileira. O porquê dessa necessidade tem uma resposta: O tempo. O tempo urbano não permite mais a dedicação que os adeptos das religiões afro-brasileiras necessitam. Afirma Prandi

         "Num terreiro de candomblé, praticamente todos os membros da casa participam dos preparativos, sendo que muitos desempenham tarefas específicas de seus postos sacerdotais. Todos comem no terreiro, aí se banham e se vestem.  Às vezes dorme-se no terreiros noites seguidas, muitas mulheres fazendo-se acompanhar de filhos pequenos. É uma enormidade de coisas a fazer e de gente as fazendo. Há uma pauta a ser cumprida e horários mais ou menos previstos para cada atividade, como "ao nascer do sol", "depois do almoço", "de tarde", "quando o sol esfriar", "de tardinha", "de noite". Não é costume fazer referência e nem respeitar a hora marcada pelo relógio e muitos imprevistos podem acontecer. No terreiro, aliás, é comum tirar o relógio do pulso; não tem utilidade.(p.2)"

        Muitas adequações deverão ser feitas e elas serão de tal envergadura que o tempo mostrará que mais que uma adaptação, a Umbanda surgirá como algo novo em resposta a essas necessidades. Muitas mudanças serão realizadas em função do tempo. "Com efeito as práticas do Candomblé tornam-se incongruentes com as da sociedade; a "camarinha" é para os fiéis um gasto de tempo excessivamente longo, numa sociedade onde o trabalho assalariado é função primordial (Ortiz, opus cit. p.48). A longevidade, para o tempo capitalista, no lidar com o Candomblé para o seu povo de santo, se torna uma dedicação difícil de ser cumprida. Os rituais de recolhimento para feituras de santo  ou dar Bori (período em que o neófito passa recolhido no terreiro de Candomblé por vários dias), não são mais pertinentes ao trabalhador que cumpre uma longa jornada semanal de trabalho, restando normalmente o domingo para o descanso. Não nos esqueçamos que as Leis Trabalhistas só começam a ser inseridas na década de trinta, durante a "Era Vargas" e de forma gradual. O trabalhador urbano brasileiro do século XX não difere do homônimo europeu do século XIX (Ver: Bresciane, Maria. Londres e Paris no Século XIX: O Espetáculo da Pobreza; Brasiliense; Coleção Tudo é História).

        Assim, acreditamos que a mudança no paradgima de tempo tenha contribuído para conduzir à formação da Umbanda como uma religião brasileira surgida na passagem do século XIX para o XX e, mais que isso, fruto de uma sociedade urbano-industrial.Muitos são os elementos que deram contribuição para o surgimento dessa religião. Tentamos aqui chamar a atenção de apenas um dos aspectos delineadores desse movimento.

                                                                                      

BIBLIOGRAFIA

Chiquetto, Marcos. Breve história da medida do tempo, São Paulo: Scipione, 1996. 

Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro, São Paulo: Brasiliense, 1999.

Prandi, Reginaldo. O terreiro e o tempo: concepções de tempo, saber e autoridade da África para as religiões afro-brasileiras versão 2: 1 de fevereiro de 2001, p.1

Ramos, Artur. Rituais negros e caboclos, Ed. Pallas, s/d.

obs.: Texto encontrado no site: http://www.chpesquisa.hpg.ig.com.br/religioes/artigoumbanda.htm

 


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