A umbanda é sem duvida
alguma a modalidade de religião afro-brasileira mais praticada em
todo o Brasil. Embora sua consolidação tenha se dado nas
cidades do sudeste (ao contrário do candomblé cujo desenvolvimento
foi mais acentuado nas cidades nordestinas), atualmente a maioria das localidades
do território nacional conta com pelo menos um terreiro de umbanda
a divulgar sua mensagem religiosa, as características de seu rico
e complexo panteão e sua visão de mundo fortemente magicizada.
São Paulo tem sido, na história
do desenvolvimento da umbanda, um importante ponto de referência.
Roger Bastide, um dos mais conhecidos intérpretes do universo afro-brasileiro
já havia percebido a relevância desse culto cuja presença
entre a população branca e urbana foi interpretada como uma
expressão da desarticulação da cosmovisão tradicional
africana, típica do candomblé, em função do
ambiente urbano e industrial. Outros autores que em décadas mais
recentes lhe seguiram a pista, como Renato Ortiz, mantiveram, com poucas
alterações, a relação de causalidade entre
o “nascimento branco” da umbanda e a “morte” do feiticeiro negro.
A novidade apresentada pelo recente estudo sobre
o desenvolvimento da umbanda em São Paulo, “Entre a Cruz e a Encruzilhada”,
do professor do Departamento de Sociologia da USP, Lísias Nogueira
Negrão, é a de procurar mostrar que a força da umbanda
reside menos em acentuar oposições e mais em enfatizar intermediações.
O argumento central é que entre os valores da ideologia cristã
e kardecista presentes nos processos de institucionalização,
racionalização e codificação da umbanda e a
influência das fontes africanas, reduto da magia e dos processos
manipulativos que envolvem a relação dos homens entre si
e destes com o mundo dos espíritos, existe um movimento de mão
dupla que não pode ser lido unidirecionalmente. Entre a moralidade
cristã e kardecista (emblematizada pela “cruz”) e os valores de
uma ética diferencial baseada na magia africana (simbolizada pela
“encruzilhada”) nasce e vive a umbanda. A tensão entre esses pólos
é constitutiva de sua cosmovisão e trafegar entre eles é
a sua marca registrada.
O livro baseia-se em pesquisas realizadas durante
duas décadas de interesse de Lísias pela umbanda. Foram pesquisados
os registros de atas de fundação e estatutos relativos a
mais de 14.000 tendas de umbanda, 2500 centros espíritas e 1400
de candomblé onde se obteve dados como nome, endereços, datas
de fundação e filiação a federações.
Além destes dados foram realizadas 130 entrevistas com pais-de-santo
e 10 com líderes de federação. A observação
de campo também foi extensa. Foram observados ao menos uma sessão
em 32 terreiros visitados e 6 foram acompanhados em todas as suas atividades
ao longo do segundo semestre de 1991.
A falta de documentação sistemática
sobre a umbanda em São Paulo levou o autor a proceder esse amplo
levantamento em que se baseiam suas análises. Para compor os capítulos
mais históricos foram consultados os jornais de meados do século
passado até a década de 80 em busca de notícias sobre
o tema.
O trabalho de Lísias procura dialogar com
as noções weberianas de ética e moral aplicadas ao
universo do sagrado. Outro suporte importante é o conceito de “campo
religioso” de Pierre Bourdieu que permitiu a Lísias buscar relações
endógenas e exógenas ao desenvolvimento da religião
umbandista.
Embora partindo destas fontes o trabalho coloca-se,
como afirma o autor, como de “médio alcance teórico” já
que pretende englobar alguns aspectos macrossociológicos (no nível
do desenvolvimento das federações de umbanda e suas relações
com a sociedade brasileira) e microssociológico (dado no plano do
desenvolvimento da vida dos terreiros).
A imensa documentação recolhida
foi organizada em dois níveis: no primeiro, chamado de “memória”,
predominam os documentos produzidos “sobre” a umbanda e no segundo, chamado
de “história”, os documentos produzidos “pela” umbanda.
No primeiro nível, o desenvolvimento da
umbanda é visto pela “ótica do outro” através das
notícias sobre a repressão aos cultos afro-brasileiros publicadas
nos principais jornais paulistas e divididas em dois períodos: de
1854 a 1890 (ano da publicação do Código Penal Republicano)
e de 1891 a 1928. Essa divisão, que a princípio poderia parecer
aleatória, mostrou-se significativa já que foi possível
perceber que no primeiro período houve um predomínio de notícias
sobre a repressão às práticas mágico-religiosas
dos negros e no segundo período (após abolição
e República) houve uma diminuição dessas notícias
em relação às que notificavam a repressão às
práticas de origem européia.
Se a análise quantitativa das notícias
dos dois períodos permite evidenciar com relativa segurança
alguns aspectos demográficos, como a presença de imigrantes
europeus nas acusações de feitiçaria, charlatanismo
etc., por outro lado a ausência de uma crítica mais circunstanciada
a estas fontes jornalísticas impede muitas vezes que o leitor acompanhe
algumas conclusões apresentadas no livro. A prisão do “Dr.
Negro”, noticiada em 1910, por exemplo, que atendia no Templo de São
Cipriano faz com que Lísias conclua que “apesar de ser negro o acusado,
não era o “Templo” um terreiro de Macumba, não obstante alguns
elementos africanos” (pag.51). O mesmo ocorre com uma notícia de
1926 mencionando o fechamento de Candomblés (com inicial maiúscula)
interpretada por Lísias da seguinte forma: “O termo candomblé
utilizado pelo autor do texto não garante que tal fosse o caso,
mas indica a presença de cultos negros, de alguma forma. O designativo
Macumba, talvez mais apropriado ao tipo de culto referido, era também
utilizado” (pag.64). Notícias sobre a existência de candomblé
(com estrutura hierárquica, ritos organizados etc.) em São
Paulo podem ser encontradas na imprensa desde pelo menos 1897.
Além destas fontes jornalísticas,
Lísias procurou analisar o desenvolvimento da umbanda através
de um extenso e exemplar levantamento de registros dos terreiros de kardecismo,
umbanda e candomblé feitos nos cartórios de registro de títulos
e documentos da cidade de São Paulo no período de 1929 a
1989. Esse levantamento mostrou uma preponderância de registros de
centros de kardecismo até o início dos anos 50, quando estes
deram lugar aos registros de umbanda cujo número cresceu até
o inicio da década de 70 a partir da qual começou a ter um
pequeno decréscimo em relação ao candomblé.
O que não significa que em números absolutos a umbanda tenha
perdido sua preponderância.
A partir da leitura deste quadro de registros
Lísias pôde estabelecer algumas importantes conexões
entre o desenvolvimento da umbanda e aspectos macrossociológicos.
Os anos 30, quando apareceram os primeiros registros da umbanda, foi um
período de grande repressão aos cultos afro-brasileiros.
É desta época a criação da Inspetoria de Entorpecentes
e Mistificações do Estado Novo que privilegiou o combate
às macumbas e aos candomblés deixando relativamente livre
o espiritismo. Este fato levou muitos praticantes da umbanda a adotarem
designações dúbias na nomeação de suas
práticas ou de seus terreiros. No período posterior a 1945,
a redemocratização do país levou a uma relativa distensão
nas relações entre a polícia populista e a umbanda
emergente.
No segundo nível, o dos documentos produzidos
“pela” umbanda, predomina a análise do processo de consolidação
e declínio do movimento federativo da umbanda. Na década
de 50 surgiram as primeiras federações em São Paulo
cuja finalidade foi promover a institucionalização e legitimação
da umbanda através da articulação coletiva dos seus
interesses. As dificuldades para registrar a umbanda em São Paulo
foram paulatinamente sendo vencidas com alguns avanços desse movimento.
Em 1961 realizou-se o II Congresso Nacional e o I Congresso Paulista e
a partir de 1964 as festas umbandistas passaram a ser incluídas
nos calendários turísticos regionais e o 31 de dezembro declarado
oficialmente o dia do umbandista. Em 1964 houve a inclusão da umbanda
no anuário estatístico do IBGE. No início da década
de 70 o movimento federativo buscou afirmar os vínculos da umbanda
com os governos militares. Foi nesse período que se verificou o
maior crescimento da taxa de registros da umbanda com cerca de 90% dos
terreiros registrados. Situação contrária à
da década seguinte quando a taxa de crescimento da umbanda começou
a decair paralelamente à perda de força do movimento federativo.
A divisão detalhada imposta por Lísias
aos seus documentos, se por um lado tem a vantagem de mapear de forma minuciosa
o desenvolvimento da umbanda em São Paulo, por outro lado, mostra-se
em certos momentos pouco clara em relação aos processos que
os títulos de algumas partes e capítulos do livro anunciam.
Na análise dos dois períodos acima referidos, intitulada
“Um Toque de Memória: A Gênese”, por exemplo, Lísias
parece, como estudioso cauteloso que é, não querer se arriscar
a cruzar seus dados com outras fontes históricas aprofundando assim
sua interpretação da gênese da umbanda no período
imperial ou da República Velha. Talvez por isso tanto esta parte
como a que lhe sucede foram chamadas de “toques”.
Quando o autor se desprende, enfim, da difícil e heróica
missão de analisar fontes jornalísticas pouco controláveis,
sua análise atinge plenamente os objetivos propostos. Ao discutir
o processo de ideologização do universo mítico da
umbanda, Lísias não perde de vista o fato de que esse universo
não chega a se constituir institucionalmente como uma igreja, com
“I” maiúsculo, na qual os pais-de-santo comporiam ordens sacerdotais
e monopolizariam a gestão do sagrado. Lísias observa adequadamente
o caráter ideológico presente na ação das principais
lideranças do movimento federativo (e confederativo) de São
Paulo no sentido de institucionalizar a umbanda e promover sua codificação
doutrinária. A valorização pelas federações
da chamada “umbanda branca” (uma umbanda depurada dos rituais de origem
negra considerados expressões do “baixo espiritismo”), eleita como
modelo ético-doutrinário, sinaliza nesse sentido
A sutil e original análise dos nomes dos terreiros registrados
demonstra a construção da identidade através do diálogo
entre kardecismo, umbanda e candomblé. O primeiro elegeu o termo
“Centro” como forma de auto-identificar as suas unidades de culto. A umbanda,
embora tivesse a princípio assumido esse termo, logo passou a usar
o nome de “Tenda” associado aos nomes dos seus principais guias protetores:
pretos-velhos e caboclos. Já a presença de nomes de orixás,
entidades tradicionalmente associadas ao candomblé, no registro
das tendas nas duas últimas décadas demonstraria o diálogo
crescente que a umbanda vem mantendo com esta religião.
Saindo do nível macrossociológico do movimento federativo,
a análise mergulha no universo dos terreiros pesquisados, que foram
divididos em três categorias: os de classe média, os de classe
inferior e os de periferia. Os primeiros são os mais “estáveis”,
“sedentarizados”, enquanto os de classe inferior ou de periferia, seja
em suas instalações ou na constante troca de endereços,
refletem as condições duras de sobrevivência a que
estão submetidos seus membros.
Novamente, a quantificação dos dados revela (ou fornece
elementos comprobatórios mais seguros) tendências que são
percebidas através da observação dos rituais e dos
depoimentos dos religiosos. No quadro da presença dos guias nas
giras, por exemplo, vê-se que a crescente atuação dos
“baianos”, entidades relativamente recentes na umbanda paulista, ocupa
o terceiro lugar superando a presença dos conhecidos pretos-velhos
- uma das principais entidades associadas aos mitos fundadores da umbanda.
É também através da observação do
universo dos terreiros que se pode verificar que as federações
exercem menos poder do que gostariam sobre seus associados. A maioria dos
terreiros pesquisados filia-se às federações porque
teme ainda algum tipo de repressão policial, mas não vê
muita vantagem nessa filiação. Por outro lado, as federações
tentando cooptar os terreiros procuram oferecer algumas vantagens para
os seus filiados como cursos, cobertura jurídica, excursões
para locais de culto (em geral à praia) ou mesmo patrocinando espaços
próprios para isso como o Santuário Ecológico da Umbanda,
em Santo André, e o Vale dos Orixás em Juquitiba com matas
e cachoeiras para as cerimônias.
A tentativa constante das federações de moralizar os
rituais e promover sua padronização nem sempre obtém
êxito já que a autoridade do pai-de-santo e de seus guias
se coloca no nível interno do terreiro acima da autoridade do presidente
das federações. A ação na padronização
exerce maior influência principalmente nos ritos de batismo, matrimoniais
e fúnebres que sem representar riscos à tradição
acrescentam prestígio aos seus praticantes.
O relacionamento da umbanda com o catolicismo estabelece-se de imediato
na grande quantidade de pais-de-santo que se auto-identificam como católicos.
Mais do que um catolicismo formal ou de aparência, trata-se de uma
prática cotidiana, como enfatiza Lísias. Muitos se dizem
católicos e encaram a umbanda como uma “missão” ou uma “seita”.
Essa percepção revela-se também na própria
incorporação de preces católicas e outros símbolos
cristãos na liturgia da umbanda. Processo semelhante também
se verifica na relação da umbanda com o kardecismo e o candomblé,
denominações formadas num processo de continuidades e contrastes
do campo religioso afro-brasileiro. Do kardecismo, a umbanda retirou o
modelo de conduta ético-religiosa que tem garantido à sua
imagem pública uma resposta às acusações de
“primitivismo” dirigidas principalmente ao candomblé. Com este a
umbanda mantém, portanto, uma relação dúbia
e tensa já que reconhece no candomblé um rival cujo crescimento
tem aumentado principalmente nas últimas décadas.
Com o pentecostalismo a relação da umbanda também
tem sido tensa principalmente devido à campanha que os pentecostais
vêm desenvolvendo contra as religiões afro-brasileiras em
geral. Para os umbandistas o “fanatismo” dos pentecostais é o principal
obstáculo à convivência pacífica entre os praticantes
destas duas religiões.
Após compor este amplo e rico contexto de formação
e diálogo da umbanda, Lísias apresenta as principais análises
do processo de racionalização e moralização
que marcaria o desenvolvimento desta religião. No primeiro retoma
a discussão do papel do “discurso científico” no campo umbandista,
mostrando que este se torna legítimo não apenas em conseqüência
da leitura dos livros dos “intelectuais umbandistas”, aliás pouco
lidos entre os religiosos segundo o autor, mas em termos do “reconhecimento
das disciplinas científicas como campo legítimo de resolução
de problemas para os quais os procedimentos religiosos são incompetentes”.
Há um reconhecimento de saberes especializados ou profissionais
e não é raro que o pai-de-santo ou seu guia ao identificar
a o problema de quem os consulta como não sendo “espiritual” sugira
que estes procurem ajuda através dos serviços médicos
apropriados.
No processo de moralização empreendido pela umbanda também
se notaria essa racionalidade. O caráter manipulativo dos ritos
mágicos ou sua eficácia simbólica encontra seu limite
no merecimento que o consulente possuiria para alcançar o efeito
desejado. A obediência a princípios morais e/ou éticos
(a noção do pecado cristão, do amor ao próximo,
da união familiar, do comportamento sexual adequado etc.) marca
assim a relação do “dom” e do “contradom” existente nas práticas
mágicas da umbanda.
Essa moralização da umbanda não pode ser vista,
entretanto, como semelhante àquela existente em apenas um dos vários
sistemas religiosos que lhe influenciaram, como a visão católica
de mundo. A questão do bem e do mal, por exemplo, não é
algo que aparece totalmente equacionada na umbanda. A frase “Deus é
bom e o Diabo não é mal” vista como uma contradição
em termos cristãos, na umbanda traduz o sistema cosmogônico
de localização das entidades entre esquerda (o mal) e direita
(o bem).
As entidades da direita (orixá, caboclo, preto-velho e criança)
e da esquerda (exu, pombagira e zé-pilintra), não podem ser
vistas como separadas por um fosso intransponível. Na verdade o
sistema de evolução que a umbanda absorveu do kardecismo
permite que as entidades estejam sempre em trânsito de um grau menos
elevado para um grau superior. Nesse sentido, os exus podem ser doutrinados,
podem ascender a espíritos de luz. Até mesmo porque o ônus
de sua maldade não recai somente sobre seus ombros mas também
sobre o dos homens que lhes pedem a prática do mal. Diz Lísias
que, da mesma maneira que se anda com duas pernas, que a luz tem que ter
dois pólos (positivo e negativo) ou que a dualidade é a forma
corpórea assumida pelo espírito humano (dois olhos, duas
pernas, dois braços etc.), o sistema cosmológico e doutrinário
no qual se assenta a umbanda absorve essas percepções de
uma dualidade interativa.
A mesma dualidade também se verificaria na prática do
princípio da caridade e na cobrança pelos serviços
prestados pelos pais-de-santo ou ainda na oposição entre
caridade e a utilização do poder espiritual para fazer o
mal a alguém. A demanda (ou práticas religiosas relacionadas
a conflitos pessoais) encontra sua legitimação quando a ela
se aplica o princípio da justiça, do mérito e da fé.
A “lei do retorno”, o castigo e a justiça são elementos que
se complexificam e se expressam simbolicamente na demanda.
Assim, Lísias conclui que em termos morais a umbanda vive entre
pólos. Os terreiros mais influenciados pelo kardecismo, em geral
de classe média, exibem um grau maior de racionalização
e moralização de suas práticas rituais e uma preocupação
maior com os ideais ético-religiosos. Os mais influenciados pelo
candomblé e pelo catolicismo popular, em geral de classe inferior
e da periferia, estariam mais preocupados com os despachos e as demandas.
Ou seja, tanto uns como outros vivem entre valores muitas vezes contraditórios:
de um lado a caridade cristã reafirmada pelo kardecismo, como escalada
imprescindível para a evolução espiritual e, de outro,
a necessidade da cobrança, a demanda, o combate aos inimigos.
Nesse sentido, existiria na umbanda não uma ausência de
moralidade mas uma “moralidade de aspiração” que procura
seus próprios caminhos, interpenetrando as influências dos
sistemas religiosos que lhe deram origem. Sofrimento, expiação,
culpa, pecado, manipulação, demanda e rivalidade são
algumas pegadas deixadas pela umbanda no tortuoso e difícil caminho
que tem feito entre a cruz e a encruzilhada. E o mérito do livro
de Lísias, entre outros, está em não simplificar ou
fugir ao desafio de entender os vários sentidos dessas pegadas seja
quando elas indicam becos sem saída, seja quando possibilitam vislumbrar
amplos campos de libertação individual.
___________
Publicado na Revista
da USP, n 32, pp.214-221.