Umbanda: Uma religião entre pólos

 
 

Resenha
Entre a Cruz e a Encruzilhada.
NEGRÃO, Lísias Nogueira - 
São Paulo, EDUSP, 1996


 
 

A umbanda é sem duvida alguma a modalidade de religião afro-brasileira mais praticada em todo o Brasil. Embora sua consolidação tenha se dado nas cidades do sudeste (ao contrário do candomblé cujo desenvolvimento foi mais acentuado nas cidades nordestinas), atualmente a maioria das localidades do território nacional conta com pelo menos um terreiro de umbanda a divulgar sua mensagem religiosa, as características de seu rico e complexo panteão e sua visão de mundo fortemente magicizada.

São Paulo tem sido, na história do desenvolvimento da umbanda, um importante ponto de referência. Roger Bastide, um dos mais conhecidos intérpretes do universo afro-brasileiro já havia percebido a relevância desse culto cuja presença entre a população branca e urbana foi interpretada como uma expressão da desarticulação da cosmovisão tradicional africana, típica do candomblé, em função do ambiente urbano e industrial. Outros autores que em décadas mais recentes lhe seguiram a pista, como Renato Ortiz, mantiveram, com poucas alterações, a relação de causalidade entre o “nascimento branco” da umbanda e a “morte” do feiticeiro negro.

A novidade apresentada pelo recente estudo sobre o desenvolvimento da umbanda em São Paulo, “Entre a Cruz e a Encruzilhada”, do professor do Departamento de Sociologia da USP, Lísias Nogueira Negrão, é a de procurar mostrar que a força da umbanda reside menos em acentuar oposições e mais em enfatizar intermediações. O argumento central é que entre os valores da ideologia cristã e kardecista presentes nos processos de institucionalização, racionalização e codificação da umbanda e a influência das fontes africanas, reduto da magia e dos processos manipulativos que envolvem a relação dos homens entre si e destes com o mundo dos espíritos, existe um movimento de mão dupla que não pode ser lido unidirecionalmente. Entre a moralidade cristã e kardecista (emblematizada pela “cruz”) e os valores de uma ética diferencial baseada na magia africana (simbolizada pela “encruzilhada”) nasce e vive a umbanda. A tensão entre esses pólos é constitutiva de sua cosmovisão e trafegar entre eles é a sua marca registrada.

O livro baseia-se em pesquisas realizadas durante duas décadas de interesse de Lísias pela umbanda. Foram pesquisados os registros de atas de fundação e estatutos relativos a mais de 14.000 tendas de umbanda, 2500 centros espíritas e 1400 de candomblé onde se obteve dados como nome, endereços, datas de fundação e filiação a federações. Além destes dados foram realizadas 130 entrevistas com pais-de-santo e 10 com líderes de federação. A observação de campo também foi extensa. Foram observados ao menos uma sessão em 32 terreiros visitados e 6 foram acompanhados em todas as suas atividades ao longo do segundo semestre de 1991.

A falta de documentação sistemática sobre a umbanda em São Paulo levou o autor a proceder esse amplo levantamento em que se baseiam suas análises. Para compor os capítulos mais históricos foram consultados os jornais de meados do século passado até a década de 80 em busca de notícias sobre o tema. 

O trabalho de Lísias procura dialogar com as noções weberianas de ética e moral aplicadas ao universo do sagrado. Outro suporte importante é o conceito de “campo religioso” de Pierre Bourdieu que permitiu a Lísias buscar relações endógenas e exógenas ao desenvolvimento da religião umbandista.

Embora partindo destas fontes o trabalho coloca-se, como afirma o autor, como de “médio alcance teórico” já que pretende englobar alguns aspectos macrossociológicos (no nível do desenvolvimento das federações de umbanda e suas relações com a sociedade brasileira) e microssociológico (dado no plano do desenvolvimento da vida dos terreiros).

A imensa documentação recolhida foi organizada em dois níveis: no primeiro, chamado de “memória”, predominam os documentos produzidos “sobre” a umbanda e no segundo, chamado de “história”, os documentos produzidos “pela” umbanda.

No primeiro nível, o desenvolvimento da umbanda é visto pela “ótica do outro” através das notícias sobre a repressão aos cultos afro-brasileiros publicadas nos principais jornais paulistas e divididas em dois períodos: de 1854 a 1890 (ano da publicação do Código Penal Republicano) e de 1891 a 1928. Essa divisão, que a princípio poderia parecer aleatória, mostrou-se significativa já que foi possível perceber que no primeiro período houve um predomínio de notícias sobre a repressão às práticas mágico-religiosas dos negros e no segundo período (após abolição e República) houve uma diminuição dessas notícias em relação às que notificavam a repressão às práticas de origem européia.

Se a análise quantitativa das notícias dos dois períodos permite evidenciar com relativa segurança alguns aspectos demográficos, como a presença de imigrantes europeus nas acusações de feitiçaria, charlatanismo etc., por outro lado a ausência de uma crítica mais circunstanciada a estas fontes jornalísticas impede muitas vezes que o leitor acompanhe algumas conclusões apresentadas no livro. A prisão do “Dr. Negro”, noticiada em 1910, por exemplo, que atendia no Templo de São Cipriano faz com que Lísias conclua que “apesar de ser negro o acusado, não era o “Templo” um terreiro de Macumba, não obstante alguns elementos africanos” (pag.51). O mesmo ocorre com uma notícia de 1926 mencionando o fechamento de Candomblés (com inicial maiúscula) interpretada por Lísias da seguinte forma: “O termo candomblé utilizado pelo autor do texto não garante que tal fosse o caso, mas indica a presença de cultos negros, de alguma forma. O designativo Macumba, talvez mais apropriado ao tipo de culto referido, era também utilizado” (pag.64). Notícias sobre a existência de candomblé (com estrutura hierárquica, ritos organizados etc.) em São Paulo podem ser encontradas na imprensa desde pelo menos 1897.

Além destas fontes jornalísticas, Lísias procurou analisar o desenvolvimento da umbanda através de um extenso e exemplar levantamento de registros dos terreiros de kardecismo, umbanda e candomblé feitos nos cartórios de registro de títulos e documentos da cidade de São Paulo no período de 1929 a 1989. Esse levantamento mostrou uma preponderância de registros de centros de kardecismo até o início dos anos 50, quando estes deram lugar aos registros de umbanda cujo número cresceu até o inicio da década de 70 a partir da qual começou a ter um pequeno decréscimo em relação ao candomblé. O que não significa que em números absolutos a umbanda tenha perdido sua preponderância.

A partir da leitura deste quadro de registros Lísias pôde estabelecer algumas importantes conexões entre o desenvolvimento da umbanda e aspectos macrossociológicos. Os anos 30, quando apareceram os primeiros registros da umbanda, foi um período de grande repressão aos cultos afro-brasileiros. É desta época a criação da Inspetoria de Entorpecentes e Mistificações do Estado Novo que privilegiou o combate às macumbas e aos candomblés deixando relativamente livre o espiritismo. Este fato levou muitos praticantes da umbanda a adotarem designações dúbias na nomeação de suas práticas ou de seus terreiros. No período posterior a 1945, a redemocratização do país levou a uma relativa distensão nas relações entre a polícia populista e a umbanda emergente.

No segundo nível, o dos documentos produzidos “pela” umbanda, predomina a análise do processo de consolidação e declínio do movimento federativo da umbanda. Na década de 50 surgiram as primeiras federações em São Paulo cuja finalidade foi promover a institucionalização e legitimação da umbanda através da articulação coletiva dos seus interesses. As dificuldades para registrar a umbanda em São Paulo foram paulatinamente sendo vencidas com alguns avanços desse movimento. Em 1961 realizou-se o II Congresso Nacional e o I Congresso Paulista e a partir de 1964 as festas umbandistas passaram a ser incluídas nos calendários turísticos regionais e o 31 de dezembro declarado oficialmente o dia do umbandista. Em 1964 houve a inclusão da umbanda no anuário estatístico do IBGE. No início da década de 70 o movimento federativo buscou afirmar os vínculos da umbanda com os governos militares. Foi nesse período que se verificou o maior crescimento da taxa de registros da umbanda com cerca de 90% dos terreiros registrados. Situação contrária à da década seguinte quando a taxa de crescimento da umbanda começou a decair paralelamente à perda de força do movimento federativo.

A divisão detalhada imposta por Lísias aos seus documentos, se por um lado tem a vantagem de mapear de forma minuciosa o desenvolvimento da umbanda em São Paulo, por outro lado, mostra-se em certos momentos pouco clara em relação aos processos que os títulos de algumas partes e capítulos do livro anunciam. Na análise dos dois períodos acima referidos, intitulada “Um Toque de Memória: A Gênese”, por exemplo, Lísias parece, como estudioso cauteloso que é, não querer se arriscar a cruzar seus dados com outras fontes históricas aprofundando assim sua interpretação da gênese da umbanda no período imperial ou da República Velha. Talvez por isso tanto esta parte como a que lhe sucede foram chamadas de “toques”.

Quando o autor se desprende, enfim, da difícil e heróica missão de analisar fontes jornalísticas pouco controláveis, sua análise atinge plenamente os objetivos propostos. Ao discutir o processo de ideologização do universo mítico da umbanda, Lísias não perde de vista o fato de que esse universo não chega a se constituir institucionalmente como uma igreja, com “I” maiúsculo, na qual os pais-de-santo comporiam ordens sacerdotais e monopolizariam a gestão do sagrado. Lísias observa adequadamente o caráter ideológico presente na ação das principais lideranças do movimento federativo (e confederativo) de São Paulo no sentido de institucionalizar a umbanda e promover sua codificação doutrinária. A valorização pelas federações da chamada “umbanda branca” (uma umbanda depurada dos rituais de origem negra considerados expressões do “baixo espiritismo”), eleita como modelo ético-doutrinário, sinaliza nesse sentido

A sutil e original análise dos nomes dos terreiros registrados demonstra a construção da identidade através do diálogo entre kardecismo, umbanda e candomblé. O primeiro elegeu o termo “Centro” como forma de auto-identificar as suas unidades de culto. A umbanda, embora tivesse a princípio assumido esse termo, logo passou a usar o nome de “Tenda” associado aos nomes dos seus principais guias protetores: pretos-velhos e caboclos. Já a presença de nomes de orixás, entidades tradicionalmente associadas ao candomblé, no registro das tendas nas duas últimas décadas demonstraria o diálogo crescente que a umbanda vem mantendo com esta religião.

Saindo do nível macrossociológico do movimento federativo, a análise mergulha no universo dos terreiros pesquisados, que foram divididos em três categorias: os de classe média, os de classe inferior e os de periferia. Os primeiros são os mais “estáveis”, “sedentarizados”, enquanto os de classe inferior ou de periferia, seja em suas instalações ou na constante troca de endereços, refletem as condições duras de sobrevivência a que estão submetidos seus membros.

Novamente, a quantificação dos dados revela (ou fornece elementos comprobatórios mais seguros) tendências que são percebidas através da observação dos rituais e dos depoimentos dos religiosos. No quadro da presença dos guias nas giras, por exemplo, vê-se que a crescente atuação dos “baianos”, entidades relativamente recentes na umbanda paulista, ocupa o terceiro lugar superando a presença dos conhecidos pretos-velhos - uma das principais entidades associadas aos mitos fundadores da umbanda.

É também através da observação do universo dos terreiros que se pode verificar que as federações exercem menos poder do que gostariam sobre seus associados. A maioria dos terreiros pesquisados filia-se às federações porque teme ainda algum tipo de repressão policial, mas não vê muita vantagem nessa filiação. Por outro lado, as federações tentando cooptar os terreiros procuram oferecer algumas vantagens para os seus filiados como cursos, cobertura jurídica, excursões para locais de culto (em geral à praia) ou mesmo patrocinando espaços próprios para isso como o Santuário Ecológico da Umbanda, em Santo André, e o Vale dos Orixás em Juquitiba com matas e cachoeiras para as cerimônias.
A tentativa constante das federações de moralizar os rituais e promover sua padronização nem sempre obtém êxito já que a autoridade do pai-de-santo e de seus guias se coloca no nível interno do terreiro acima da autoridade do presidente das federações. A ação na padronização exerce maior influência principalmente nos ritos de batismo, matrimoniais e fúnebres que sem representar riscos à tradição acrescentam prestígio aos seus praticantes.

O relacionamento da umbanda com o catolicismo estabelece-se de imediato na grande quantidade de pais-de-santo que se auto-identificam como católicos. Mais do que um catolicismo formal ou de aparência, trata-se de uma prática cotidiana, como enfatiza Lísias. Muitos se dizem católicos e encaram a umbanda como uma “missão” ou uma “seita”. Essa percepção revela-se também na própria incorporação de preces católicas e outros símbolos cristãos na liturgia da umbanda. Processo semelhante também se verifica na relação da umbanda com o kardecismo e o candomblé, denominações formadas num processo de continuidades e contrastes do campo religioso afro-brasileiro. Do kardecismo, a umbanda retirou o modelo de conduta ético-religiosa que tem garantido à sua imagem pública uma resposta às acusações de “primitivismo” dirigidas principalmente ao candomblé. Com este a umbanda mantém, portanto, uma relação dúbia e tensa já que reconhece no candomblé um rival cujo crescimento tem aumentado principalmente nas últimas décadas.

Com o pentecostalismo a relação da umbanda também tem sido tensa principalmente devido à campanha que os pentecostais vêm desenvolvendo contra as religiões afro-brasileiras em geral. Para os umbandistas o “fanatismo” dos pentecostais é o principal obstáculo à convivência pacífica entre os praticantes destas duas religiões.

Após compor este amplo e rico contexto de formação e diálogo da umbanda, Lísias apresenta as principais análises do processo de racionalização e moralização que marcaria o desenvolvimento desta religião. No primeiro retoma a discussão do papel do “discurso científico” no campo umbandista, mostrando que este se torna legítimo não apenas em conseqüência da leitura dos livros dos “intelectuais umbandistas”, aliás pouco lidos entre os religiosos segundo o autor, mas em termos do “reconhecimento das disciplinas científicas como campo legítimo de resolução de problemas para os quais os procedimentos religiosos são incompetentes”. Há um reconhecimento de saberes especializados ou profissionais e não é raro que o pai-de-santo ou seu guia ao identificar a o problema de quem os consulta como não sendo “espiritual” sugira que estes procurem ajuda através dos serviços médicos apropriados.
No processo de moralização empreendido pela umbanda também se notaria essa racionalidade. O caráter manipulativo dos ritos mágicos ou sua eficácia simbólica encontra seu limite no merecimento que o consulente possuiria para alcançar o efeito desejado. A obediência a princípios morais e/ou éticos (a noção do pecado cristão, do amor ao próximo, da união familiar, do comportamento sexual adequado etc.) marca assim a relação do “dom” e do “contradom” existente nas práticas mágicas da umbanda.

Essa moralização da umbanda não pode ser vista, entretanto, como semelhante àquela existente em apenas um dos vários sistemas religiosos que lhe influenciaram, como a visão católica de mundo. A questão do bem e do mal, por exemplo, não é algo que aparece totalmente equacionada na umbanda. A frase “Deus é bom e o Diabo não é mal” vista como uma contradição em termos cristãos, na umbanda traduz o sistema cosmogônico de localização das entidades entre esquerda (o mal) e direita (o bem).

As entidades da direita (orixá, caboclo, preto-velho e criança) e da esquerda (exu, pombagira e zé-pilintra), não podem ser vistas como separadas por um fosso intransponível. Na verdade o sistema de evolução que a umbanda absorveu do kardecismo permite que as entidades estejam sempre em trânsito de um grau menos elevado para um grau superior. Nesse sentido, os exus podem ser doutrinados, podem ascender a espíritos de luz. Até mesmo porque o ônus de sua maldade não recai somente sobre seus ombros mas também sobre o dos homens que lhes pedem a prática do mal. Diz Lísias que, da mesma maneira que se anda com duas pernas, que a luz tem que ter dois pólos (positivo e negativo) ou que a dualidade é a forma corpórea assumida pelo espírito humano (dois olhos, duas pernas, dois braços etc.), o sistema cosmológico e doutrinário no qual se assenta a umbanda absorve essas percepções de uma dualidade interativa.

A mesma dualidade também se verificaria na prática do princípio da caridade e na cobrança pelos serviços prestados pelos pais-de-santo ou ainda na oposição entre caridade e a utilização do poder espiritual para fazer o mal a alguém. A demanda (ou práticas religiosas relacionadas a conflitos pessoais) encontra sua legitimação quando a ela se aplica o princípio da justiça, do mérito e da fé. A “lei do retorno”, o castigo e a justiça são elementos que se complexificam e se expressam simbolicamente na demanda.

Assim, Lísias conclui que em termos morais a umbanda vive entre pólos. Os terreiros mais influenciados pelo kardecismo, em geral de classe média, exibem um grau maior de racionalização e moralização de suas práticas rituais e uma preocupação maior com os ideais ético-religiosos. Os mais influenciados pelo candomblé e pelo catolicismo popular, em geral de classe inferior e da periferia, estariam mais preocupados com os despachos e as demandas. Ou seja, tanto uns como outros vivem entre valores muitas vezes contraditórios: de um lado a caridade cristã reafirmada pelo kardecismo, como escalada imprescindível para a evolução espiritual e, de outro, a necessidade da cobrança, a demanda, o combate aos inimigos.

Nesse sentido, existiria na umbanda não uma ausência de moralidade mas uma “moralidade de aspiração” que procura seus próprios caminhos, interpenetrando as influências dos sistemas religiosos que lhe deram origem. Sofrimento, expiação, culpa, pecado, manipulação, demanda e rivalidade são algumas pegadas deixadas pela umbanda no tortuoso e difícil caminho que tem feito entre a cruz e a encruzilhada. E o mérito do livro de Lísias, entre outros, está em não simplificar ou fugir ao desafio de entender os vários sentidos dessas pegadas seja quando elas indicam becos sem saída, seja quando possibilitam vislumbrar amplos campos de libertação individual.

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Publicado na Revista da USP, n 32, pp.214-221.

 

 


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