O GLOBO � 03/03/2001
Segundo Caderno

O sert�o profundo e oculto de mestre Nicanor
Arnaldo Bloch


Ouvir Nicanor Teixeira � um prazer, mesmo antes de ele empunhar o viol�o, ou de se escutar uma de suas mais de 70 composi��es: quando fala, a dic��o de malandro da Lapa (sua primeira morada quando chegou ao Rio, h� mais de 50 anos) se mistura com os acentos do alto sert�o baiano (onde nasceu e viveu at� a adolesc�ncia), e a conversa se converte em m�sica.
� mais ou menos assim que soa o primeiro disco de mestre Nicanor, que � tamb�m uma homenagem aos seus 72 anos (na verdade, seriam 70 anos, mas o disco chegou atrasado): as 19 valsas, batuques, choros, frevos e outras levadas nordestinas h�bridas ou indefin�veis - executadas por int�rpretes do primeiro time do viol�o brasileiro, como Tur�bio Santos, Guinga, Claudio Tupinamb� e Jodacil Damaceno - s�o registros do sert�o profundo, onde um menino aprende a tocar imitando os gestos de um lavrador de m�os calejadas que mal conhece quatro posi��es no instrumento. O resto veio do contato com as prociss�es, os repentes, os realejos, os sanfoneiros nas esquinas, nas pra�as e nos forr�s.
- Quando componho, destravo o filme primitivo da minha inf�ncia e da minha adolesc�ncia - declama.
Destrava tamb�m o filme de sua vida adulta, iniciada no Rio, em 1948. Obstinado ("o neg�cio era ser m�sico ou morrer"), Nicanor bateu na porta certa: as aulas coletivas que aconteciam aos domingos na casa de Dilermando Reis, no Lins, foram a sua escola. A t�cnica e o toque garboso que adquiriu ao tornar-se um disc�pulo de Dilermando quase o transformaram num concertista, mas a carreira, que realmente almejava, foi interrompida por um problema na m�o direita que, at� hoje, ele n�o conseguiu diagnosticar:
- A mem�ria t�til do indicador de repente come�ou a falhar. O m�dico disse que eu n�o tinha nada, mandou eu tomar um u�sque e uns calmantes, mas aquele indicador nunca mais foi o mesmo.
Se o Brasil perdeu um grande int�rprete, ganhou um compositor e um mestre, refer�ncia no ensino de viol�o e na forma��o de repert�rio, exaltado pelos maiores da velha e da nova gera��o. E que agora, gra�as ao esfor�o dos violonistas Bartholomeu Wiese e Afonso Machado, vem � luz, a exemplo do que aconteceu com Nelson Sargento no samba de raiz e, numa escala mais industrial, com os cubanos do Buena Vista Social Club.
O problema no indicador n�o impediu que Nicanor interpretasse uma das faixas - a introspectiva valsa "Olhos que choram". Com isso, o ouvinte foi presenteado com a mais bela das 19 interpreta��es: se a m�o direita n�o � a de um concertista, a emo��o � a de um virtuose completo.
- Nicanor Teixeira � o oxig�nio do viol�o brasileiro. Tem toda a malandragem da viola caipira, aquele ponteado irresist�vel e, ao mesmo tempo, suas composi��es s�o obras sem arestas, redondas, bem-constru�das - define o compositor e violonista Guinga, um dos monstros do crossover contempor�neo entre o cl�ssico e o popular, e int�rprete de "Can��o terna", faixa do disco que d� a impress�o de ter sido composta sob medida para ele.
J� o consagrado e cl�ssico Tur�bio Santos, que abre o disco com o choro "Carioca 1", em que � acompanhado pelo conjunto Galo Preto, resume:
- Nicanor Teixeira representa para o viol�o brasileiro a s�ntese de uma erudi��o musical aliada � mais pura tradi��o popular do viol�o no Brasil.
Um dos idealizadores do projeto, integrante do Galo Preto, e cuja interpreta��o vigorosa de "Concertante 3" � um dos pontos altos do disco, Bartholomeu Wiese lembra que o CD deveria ter sido lan�ado em 1998, quando Nicanor completou 70 anos, mas ficou dois anos na geladeira at� que a gravadora Rob Digital o tirasse da gaveta.
- A obra de um mestre como Nicanor tinha que ser registrada de qualquer maneira, estou aliviado - comemora, avisando que o lan�amento ser� no dia 17 de mar�o, no Teatro Baden Powel.
Se � relativamente f�cil compreender a dificuldade de registrar em disco a obra de Nicanor - a m�sica instrumental, seja ela cl�ssica ou popular, � praticamente ignorada pelas gravadoras brasileiras - dif�cil � entender o fato de Nicanor ser t�o pouco gravado pelos int�rpretes que j� t�m um mercado. Pouco conhecido do p�blico e pouco executado, Nicanor � um daqueles nomes que, por raz�es acima da compreens�o imediata, ficam nas sombras durante d�cadas e, de repente, s�o al�ados aos cumes da arte e, enfim, recuperados.



                voltar

                p�gina inicial
Hosted by www.Geocities.ws

1