V O C Ê T E M M E D O D E Q U E ? O desconhecido pode não ser tão assustador assim "Engraçado, a gente. Do que tem medo, escarnece e põe nome feio. Morte, por exemplo. Verdade que a própria palavra morte, não sendo bela, tem, contudo a sua dignidade; tanto ela como as que dependem do seu radical: morto, mortal, mortalidade. Porém, todos os demais vocábulos que com a morte se relacionem, quando não são o simplesmente horrível, são ligeira ou pesadamente sobre o grotesco. Defunto, cemitério, cadáver, esqueleto, caveira, cova, sepultura, múmia, embalsamar, velório, funeral, moribundo, ossuário, verme, formol, fantasma, necrotério, viúvo e a mais repugnante de todas: papa-defunto. E não adianta apelar para as formas eruditas, porque ainda fica pior: necrópole, sarcófago, inumar, exumar, necrológio, exéquias, parca, féretro". (Culto aos mortos - Raquel de Queiroz - O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 09/11/2002) Trabalhar em cemitérios, a princípio, pode causar um certo desconforto a quem não tem muita afinidade com a palavra morte. Por ser um assunto do qual nem todas a pessoas têm muita liberdade e conhecimento para explicar, há um enigma e também vários mitos em torno desse mundo dos mortos. Nilson Lourenço, que trabalha há quatro anos na Floricultura Seiva Flores, que funciona dentro do Cemitério da Paz, acha o trabalho tão comum quanto qualquer outro. "Eu vivo de salário. Eu não sou o dono. Se morrer ou não, eu ganho. Aqui é como se a faca que eu corto as folhas para fazer as coroas, fosse uma caneta e o cemitério fosse o escritório", afirma. Localizado na avenida Carlos Luz, no bairro Caiçara, o Cemitério da Paz é o maior de Belo Horizonte. Administrado pela Prefeitura Municipal, com uma área de 289.000 m² e 34.849 mil covas, o cemitério possui hoje 67 funcionários, efetivos e tercerizados, e realiza cerca de 15 a 20 enterros por dia. Segundo Cícero Bernardo, gerente do cemitério, nos finais de semana prolongados, o número de sepultamentos pode aumentar devido ao grande número de acidentes. As sepulturas custam em média 2.500 reais e são classificadas da seguinte forma: as comunitárias, onde podem ser enterradas até três pessoas de famílias diferentes e as perpétuas, onde só podem ser enterradas pessoas da mesma família. Benon Martins, vigilante do local, acredita que o cemitério é um lugar de paz. Segundo ele, muitas pessoas transitam diariamente pelo local e, até hoje, o único ato de vandalismo ocorrido foi o roubo do bronze que fica nas lápides. Para o vigilante, o dia mais triste é o dia de finados. "Neste dia, no coração das pessoas, ainda resta uma lembrança dos entes que já foram. A gente percebe que a dor não passou", comenta. Outro fato marcante na vida de Benon aconteceu há um ano, no sepultamento de um militar. Na ocasião, os filhos, durante o velório, arrumaram um tumulto na hora de decidir se o pai seria enterrado ou não com as medalhas conquistadas durante a sua vida, fato que fez com que o caixão quase caísse. Profissão: Coveiro "Trabalhar em um local tão grande e com tantas sepulturas, como no Cemitério da Paz, no começo me deu um certo receio. Agora, já me acostumei e estou sempre bem disposto para enfrentar a minha batalha". Essa frase é de Cláudio Marcelo da Fonseca, coveiro, que acredita que viver da morte é algo bastante contraditório, uma vez que está relacionado ao lucro com a partida de seres humanos desta vida para outra. Tanto Cláudio, quanto Afonso Batista, também coveiro, ficam emocionados quando têm que enterrar crianças e afirmam que vários colegas já se sentiram mal realizando tais enterros. Para Afonso, o sepultamento de inocentes o deixa muito sensibilizado. "Sempre que enterro crianças lembro dos meus filhos que estão em casa e isso me emociona muito", lamenta. Há uma contradição entre os coveiros em relação à assistência psicológica. Alguns afirmam que são atendidos psicologicamente e outros dizem não possuir nenhum tipo de tratamento. Cláudio afirma que não é fácil, mas não deixa de ser impossível a árdua tarefa de acostumarem ao fato de ouvirem choros, prantos daqueles que perderam seus entes queridos. Para ele, o que o deixa mais chocado é o fato de presenciar e participar de enterros de pessoas que morreram por assassinato, suicídio, crianças e jovens vítimas de mortes trágicas. Devido às altas concentrações de gases (carbureto) nos ossos, juntamente à temperatura da terra e umidade, ocorre uma "ignição", que faz com que saia fogo das covas à noite, podendo-se ver clarões bem distintos nas sepulturas. Afonso, que trabalha no cemitério desde 1994, nunca viu. Já Cláudio não só acredita, como também já presenciou tal cena várias vezes. Por ser um trabalho não muito atraente, alguns coveiros bebem para fugir da realidade diária. Cláudio afirma que quando era mais jovem bebia muito, agora não bebe mais. Afonso diz que não acredita que a bebida sirva de refúgio. Para ele, é um trabalho de muito respeito e eles têm que trabalhar conscientes. "Se eu beber uma ou duas pingas não vou ter nada, mas se o meu colega fizer isso, ele pode reagir diferente. Mas eles tomam uma 'pinguinha' na hora do almoço". Para o coveiro Cláudio, existe mais dificuldade em fazer uma exumação do que enterrar uma pessoa. "Enterrar é mais fácil, pois já estamos mais acostumados. Já a exumação dá um certo medo. Às vezes a gente acha uma pessoa que morreu a oito, dez anos e está perfeita, toda cheia de carne". Tanto Afonso quanto Cláudio já enterraram pessoas mais próximas, da família. "Já enterrei a minha mãe, só não joguei terra. Sei do sofrimento das famílias, a gente ouve o desespero dos familiares e sabemos o que eles estão passando". Cláudio, que já enterrou a irmã há três meses, acha normal esse tipo de situação para ele que vive disso. "Tanto faz enterrar os de casa quanto os de fora". Existem coisas desagradáveis como o mau cheiro exalado pelos corpos. Isso acontece devido às condições do tempo. Mas não é comum em todas as pessoas, depende do organismo. "Há os que dentro de cinco ou seis anos, ao serem desenterrados, não exalam cheiro algum", afirma Cláudio. O fato de não usarem luvas ou máscaras durante os enterros (somente são usados nas exumações e autópsias, devido à fiscalização) faz com que haja a possibilidade de se contrair doenças contagiosas. Os cadáveres em estado de putrefação transmitem doenças de pele, das vias respiratórias e de outras espécies. "Perdemos vários colegas com estes contágios", conta Cláudio. Existe também o perigo de serem picados por escorpiões, já que existem muitos nos túmulos, que aparecem por causa dos micróbios presentes nos corpos, da sujeira e do mato. "Apesar de tudo, o mais importante, não só na minha, mas em todas as profissões, é fazer exatamente aquilo que a gente mais gosta", conclui Cláudio. Sugestão de Box: Do Oriente ao Ocidente uma só tradição O culto aos mortos é uma das mais antigas celebrações. No Oriente surgiu no ano de 998 através de um abade que, em comemoração solene, orava por aqueles que estavam no purgatório. Já no Ocidente surgiu em Roma no século XVI e estendeu-se para todos os cristãos. Depois, pouco a pouco, esse culto mais reservado tornou-se uma festa mais abrangente, dedicando-se, assim, o dia dois de novembro, ao Dia dos Finados.