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Psicanálise e Música

 


Sigmund Freud (1856-1939)

       Sabemos da incapacidade de Freud para usufruir da música (genussunfähig), incapacidade que ele confessa no início do Moisés de Michelangelo (1914) e que se deve a sua impossibilidade de captar por onde ela surte efeito (wodurch sie wirkt). Para apreciar as obras de arte, é-lhe preciso conhecer a intenção (Absicht) do artista, e, nesse mesmo artigo, Freud parece lamentar que essa intenção não possa traduzir-se em palavras, como as outras manifestações da vida psíquica. Assim, ele se esforça por aprisionar a obra de arte nas redes da psicanálise e, desse modo, aplacar a inquietação de uma inteligência desamparada diante da emoção estética. "Mas, para adivinhar essa intenção [do artista], primeiro é preciso que eu descubra o sentido (Sinn) e o conteúdo (Inhalt) do que está representado na obra, e, por conseguinte, que o interprete (deuten). É possível, portanto, que uma obra de arte possa exigir uma interpretação (Deutung), e que somente após a sua conclusão eu consiga saber por que fui tomado de tão poderosa emoção. Tenho até a esperança de que essa impressão não seja atenuada por uma análise desse tipo." Vê-se perfeitamente a preocupação de Freud de não deixar fora do trabalho de interpretação psicanalítica, não a obra de arte em si, mas o impacto "passional" que ela produz no espectador ou ouvinte; e o resultado desse trabalho só pode levar à exposição da intenção do artista e, com ela, à compreensão do processo identificatório subjacente ao poder emocional da obra em relação ao público.

       Assim, haveria a música de escapar ao campo de investigação psicanalítica, pela deficiência de um Freud aparentemente insensível a seus efeitos? São abundantes as discussões sobre essa questão, que continua perenemente enigmática para os discípulos das gerações seguintes, levados a se interrogar sobre as incidências recíprocas da escuta e da voz no bojo da relação transferencial na análise. À guisa de explicação, Reik, por exemplo, em seus Escritos sobre a música (1953), enuncia a idéia de uma elaboração defensiva, em Freud, perante a música, perante essa arte cuja emoção ele não conseguia dominar através da racionalidade. "Uma disposição racionalista, ou talvez analítica", acrescenta ainda Freud a propósito da música, "luta em mim contra a emoção quando não consigo saber por que estou emocionado, nem o que me comove." Proteger-se da emoção musical de maneira tão mais radical quanto mais intenso fosse seu efeito: esta foi, sem dúvida, no dizer de Reik, a razão por que Freud fez pouquíssimas referências à música, em comparação com a literatura ou as artes plásticas. Outra explicação, recentemente retomada por J. e A. Caïm, por sugestão de K.R. Eissler, diretor dos Arquivos de Freud, insiste no tipo de realidade própria da música, cuja proximidade excessiva do tipo de realidade própria do inconsciente – em particular no que concerne à temporalidade – teria contribuído para que Freud, paradoxalmente, abandonasse a obra musical.

       A questão do interesse de Freud pela música não é definitivamente esclarecida por essas hipóteses explicativas; e uma carta dele, datada de 18 de janeiro de 1928 e publicada graças a J. e A. Caïm, carta cujo destinatário não conhecemos, mas que era provavelmente endereçada a um melômano, retoma a questão: "Sou a última pessoa habilitada a fazer esse julgamento [sobre o teor de uma entrevista musical realizada pelo destinatário]. Não tendo nenhum senso musical e sendo, por assim dizer, deficiente nesse campo da sensibilidade, ainda mal capaz de desfrutar de algumas doces melodias de Mozart, Wagner já me é estranho, e 'tudo o que se aproxima da música moderna', simplesmente inacessível. Sei que não lhe é fácil imaginar tamanha pobreza (...)." E Freud confia a entrevista ao julgamento de um de seus pacientes músicos. O fato de ele haver afastado a música de suas especulações, na impossibilidade de compreender-lhe os efeitos através da análise racional, não prova, como sugere Reik, que ele lhe fosse insensível; tenderia apenas a provar que a música, diferentemente da literatura e das artes plásticas, proviria de uma natureza e um estatuto específicos, rebeldes à interpretação psicanalítica, na medida em que Freud procurava descobrir o sentido e o conteúdo do que uma obra supostamente representava. Ora, será possível falarmos de representação, na música, nas mesmas condições que na pintura ou na escultura? Será possível sequer falarmos de comunicação, o que supõe uma diferenciação da relação interioridade/exterioridade apta a veicular uma mensagem? Há que evocarmos a segunda explicação relativa à postura de Freud perante a música, que remete a uma realidade específica, da qual convém discernirmos a ordem dos componentes. E já podemos pressentir que a contribuição da psicanálise, mais do que na interpretação, deverá residir na descoberta de uma dinâmica psíquica intrínseca à criação e à audição musical, baseada no modelo dos processos da primeira tópica e das relações das instâncias da segunda.


A catarse na expressão dos sentimentos

       Se o comportamento de Freud perante a música resulta do que poderíamos chamar de uma formação reativa, próxima do mecanismo de “isolamento”, no sentido de que, sem ser recalcada, ela se manteria afastada do campo das representações, os psicanalistas contemporâneos de Freud, ao contrário, não se privaram – especialmente na revista Imago – de escrever sobre esse assunto. Frieda Teller, por exemplo, num artigo sobre o talento musical e a fantasia (1917-19), comparou a emoção musical a um processo regressivo quase alucinatório, que assume a forma de fantasias e lembranças. Como modalidade singular de expressão do psiquismo recalcado, à semelhança do sonho, dos sintomas neuróticos e dos atos falhos, a música levaria quem a ela se entrega a uma espécie de experiência catártica, passível de descarregar suas tensões internas. Essa função catártica da música, muitas vezes evocada – já desde os pitagóricos –, não pode deixar indiferente o psicanalista, a quem leva a vislumbrar a profundidade dos elementos psíquicos desvelados. A música já aparece inteira nesse efeito de liquidação dos afetos que nela se reconhece desde a Antigüidade, e que deu margem a uma medicina baseada na correspondência entre os estilos musicais e os estilos de sensibilidade; do mesmo modo, mais tardiamente, a partir do século XIV, com a Ars nova, acentuou-se ainda mais intensamente a vertente expressiva da música, a ponto de o papa João XXII haver condenado essa nova "maneira" na Bula de 1322. Isso equivale a dizer que a música, ao longo de toda a sua história e mesmo em suas formas mais contemporâneas, não cessaria de acossar os espíritos, sempre inclinados, sob sua influência mágica, a escapulir do âmbito do domínio racional. De fato, diversamente das artes plásticas, o efeito de surpresa, o efeito disruptivo da música, mesmo no seio do mais persistente formalismo, preserva o aleatório, a despeito das limitações da composição. Assim, a propósito disso, Pierre Boulez descreve, em Relevés d’apprenti [Resumos de aprendiz], a forma de acaso que é própria da música: "Função da duração, de seu tempo físico de desdobramento, o desenvolvimento musical pode fazer com que intervenham 'mudanças' em diversas etapas, em diversos níveis da composição. Em síntese, a resultante seria um encadeamento de maior probabilidade de acontecimentos aleatórios no interior de uma certa duração, também ela indeterminada." O que já equivale a dizer que essa aleatoriedade da música, que provoca enlevo ou resistência no compositor e no ouvinte, e em cujo efeito sem dúvida transparece, ainda e sempre, o poder catártico da música, leva o psicanalista a se interrogar sobre o que, paradoxalmente, escapa à composição musical, ou seja, aquilo que ultrapassa a intenção do compositor, dando conta de uma dinâmica psíquica que não mais pode reduzir-se à expressão da representação.

       A questão da expressão musical, em suas relações com a essência da alma e a essência da natureza, continua a ser, ainda hoje, a questão por excelência que aponta o lugar singularíssimo ocupado pela música em meio às artes. O fato de, inspirado nos pitagóricos, Aristóteles reunir a alma e a música numa mesma harmonia, ou o de Rameau afirmar o caráter natural da harmonia musical, diferentemente de Rousseau, que o transfere para a melodia, ou ainda o fato de os compositores românticos inserirem a música no vasto sistema das correspondências entre os mundos, tudo isso só faz atestar o duplo poder da música: tornar manifesta a esfera dos sentimentos, referindo-a, por conseguinte, a uma possível tradução na linguagem, e revelar o fundo primitivo de onde eles provêm, justamente aquele que dota a música da magia dionisíaca que todos concordam em lhe reconhecer, e que um autor como Nietzsche tão bem evidenciou. E foi justamente o perigo sempre presente de reduzir a música a uma função de imitação ou representação dos sentimentos e das palavras passíveis de transcrevê-los que novamente animou Nietzsche quando ele atribuiu a Wagner o papel de um comediante que pervertia a música por um excesso de subterfúgios expressivos. Sem discutir essa crítica, que decorre de um contexto psico-histórico demasiadamente singular para que possamos considerá-lo objetivamente, destacamos apenas que ela contém em si todos os ingredientes que iriam alimentar o que poderíamos chamar, não ainda de uma psicanálise, mas, pelo menos, de uma psicologia da música. De fato, aí encontramos as relações da música com os sentimentos, da música com a linguagem e, para encerrar, da música com a representação, que repousa no desafio de uma comunicação entre o compositor e o ouvinte. Assim, por exemplo, Wagner, com o “verbo”, e Liszt, com o “programa”, demonstrariam a capacidade de expressão da música, segundo um código cujo modelo, até o advento da música dodecafônica, foi o da linguagem poética. "O que a língua musical pode exprimir", escreveu Wagner, "é feito unicamente de sentimentos e impressões: ela exprime sobretudo, numa plenitude absoluta, o conteúdo sentimental da língua puramente humana, desligada de nossa língua verbal, que se tornou um simples órgão do entendimento. Por conseguinte, o que permanece inexprimível para a língua musical absoluta é a descrição exata do objeto do sentimento e da impressão, [objeto] que estes atingem com maior nitidez: a extensão de expressão da língua musical necessária ao sujeito reside, pois, na ampliação da faculdade de caracterizar, com impressionante acuidade, até mesmo o individual, o particular; e esta, ela somente a adquire atra-vés de sua aliança com o verbo." Wagner não poderia ter reunido melhor, numa mesma exigência, os componentes sensíveis da música e as limitações do sentido que ela deve acompanhar, ou até imitar. Ora, qualquer história da música mostra uma oscilação permanente entre o sensível e o formal, conclamada a ser parcialmente resolvida na música contemporânea, para a qual a estrutura surge do material sonoro, sem sequer fazer referência à representação, que, embora decorra da realidade psíquica, torna-se desde então externa à música. Por isso, é pelo que escapa à representação, sempre pronta a aprisionar o material sonoro no universo do sentido, que poderemos deixar o campo da psicologia para abordar o da psicanálise e, com ele, os efeitos disruptivos da organização psíquica.


O espelho da voz

       A música ultrapassaria, pois, o campo da significação, para o compositor e para o ouvinte, tanto por sua origem quanto por sua finalidade, se utilizarmos este último termo para indicar que seu movimento produz seu efeito na antecipação e na posterioridade. Que a música não comporta um conteúdo objetivo, mas remete a uma dinâmica constituída de restrições formais e emoções imperiosas, não é matéria de controvérsia, e um crítico musical como E. Hanslick, no século XIX, chegou até a apresentar seu desdobramento como uma "fantasia" cujo encadeamento e material lhe seriam propriamente pertencentes. "Se considerarmos a música como arte, teremos de levar em consideração, no plano estético, a fantasia (Phantasie), e não o sentimento." É isso que aproxima a música do material psicanalítico, sem que este integre, no entanto, a expressão lingüística. Certamente, os temas musicais às vezes encontrados durante o trabalho de análise, e que preocupam o paciente sob a forma de refrões insistentes, já foram objeto de diversos comentários, como as célebres Variações sobre um tema psicanalítico de Gustav Mahler, de Reik. Mas a música é então tratada da mesma maneira que qualquer outra manifestação na análise, através do discurso associativo, e com isso perde justamente o que define sua originalidade em relação à linguagem. Ora, quando o psicanalista consegue evitar a cilada do sentido, que a facilidade da interpretação imaginária não pára de lhe armar, evidencia-se para ele uma certa ressonância musical da sessão, trazida pelas modulações da voz pelo ritmo da elocução do paciente. Ora grave, ora aguda – ora colorida, ora "branca" –, ora regular, ora precipitada, a voz habita as palavras a ponto de indicar o que poderíamos chamar de variações tópicas do discurso. De fato, o discurso ouvido na análise raramente é homogêneo; apresenta-se, na maioria das vezes, sob a forma de uma imbricação de enunciados que pertencem, cada um deles, a diferentes registros da organização psíquica, e a voz que os veicula trai sua origem. Quantas vezes o paciente insiste no "tom" que acompanha as palavras ouvidas, e que ele reconhece fazer parte, intrinsecamente, de sua própria voz? O registro da voz, da mesma forma que a singularidade do olhar, resultaria, assim, do processo inconsciente da identificação primordial que possibilita a ida do sujeito ao campo do Outro, ou, em outras palavras, que permite ao sujeito constituir-se em relação ao Outro, com base em marcas essenciais cuja proveniência ele só vislumbrará muito depois.

Jacques Lacan (1901-1981)



       Cabe ainda dizer, em referência ao modelo do estádio do espelho de Lacan, que, tal como a situação de captação do olhar pela forma especular, poderíamos imaginar um mesmo efeito de captação pela voz, em relação ao qual caberia discernir o que equivaleria à forma (Gestalt). As respostas especulares da ninfa Eco e a perigosa sedução do canto das sereias ilustrariam bem o poder de fascinação da voz, precisamente quando ela evoca, um pouco de perto demais, o vestígio sensorial da primeira voz em que o sujeito, no estágio de infans, ficou como que suspenso. Eco, excessivamente falastrona para o gosto de Juno, a quem manteve entretida com suas palavras enquanto as ninfas deixavam-se abordar por Júpiter, incorreu na cólera da deusa e foi condenada a repetir os sons emitidos por uma primeira voz. Duplo sonoro de um Narciso especular, conhecemos a queixa melancólica de Eco e o lento ressecamento mineral de seu corpo. Certamente poderíamos interpretar a história de Eco como o retorno do sujeito a uma fase primitiva de seu desenvolvimento, na qual a voz ouvida constituiu o único traço distintivo de seu universo, traço cujas primeiras modulações ele já podia discernir nesse estágio de infans. Numa visão similar, Didier Anzieu atribui à voz um papel na constituição do "si", que ele define, antes mesmo da constituição do eu, como um "conjunto psíquico pré-individual, dotado de um esboço de unidade e identidade". A voz torna-se então um "envoltório sonoro do eu" e entra na estruturação posterior do eu, da mesma forma, diríamos, que a imagem especular. Por outro lado, Lacan considera a voz como um dos cinco "objetos cedíveis" (o seio, as fezes, o pênis, o olhar e a voz) que mantêm com o corpo uma relação de separação e, em virtude disso, participam do processo de desenvolvimento do eu. "Essa função de objeto cedível", escreve ele no seminário sobre a angústia, "como pedaço separável e que veicula, como que primitivamente, alguma coisa da identidade do corpo que antecede o próprio corpo quanto à constituição do sujeito..." Na esteira desse pensamento, Denis Vasse fala ainda de uma "introdução na voz" como introdução no mundo, indicando com essa expressão, ao mesmo tempo, o que é ouvido da voz materna e o que é ouvido da nomeação; e esta, assimilada à voz simbólica do Pai, impediria que o "sentimento oceânico" trazido pelo que é ouvido da voz tornasse a fazer o sujeito submergir sob a forma do eco.


Música e percepção endopsíquica

       A psicanálise interessa-se pela voz, portanto, por esses dois pontos de vista, que concernem ao mesmo tempo ao universo sonoro primitivo, marcado pela voz materna, e à ruptura simbólica, marcada pela voz do Pai, cujo choque com o banho sonoro original estaria na base da autoridade do supereu, Assim, em "Sobre o narcisismo: uma introdução" (1914), Freud adianta a natureza sonora do supereu: "O que incita o sujeito a formar o ideal do eu, cuja guarda fica entrégue à consciência moral, é justamente a influência crítica dos pais, tal como transmitida peia voz deles"; e ele retomaria a mesma formulação em "O eu e o isso" (1923), esclarecendo que o supereu, composto das representações de palavra pré-conscientes, extrai sua energia de investimento, no entanto, de um "escutado" mais profundo, cuja origem situa-se no isso. Na voz encontramos as duas polaridades em virtude das quais a música transcende o domínio da expressão: a do aquém primitivo, que favorece o reencontro com um modo de prazer fusional há muito abandonado, e a do além formal, que permite fixar o prazer sublimado na elaboração de imagens cada vez mais conceituais. E a natureza do musical residiria, precisamente, em essas duas polaridades, do aquém e do além da expressão, parecerem indissociáveis, partes integrantes do próprio material sonoro, que, por conseguinte, como mostra a musica contemporânea, pode prescindir inteiramente do recurso a um objeto-representação externo.

       "A combinaçâo e a interação entre a mais profunda regressão e a organização mais altamente desenvolvida", escreve R.F. Sterba num artigo intitulado "Psicanálise e música", que resume as teses psicanalíticas sobre a música até 1960, "fazem da música uma experiência singular. Ela cria a ilusão interna de uma identidade entre o ego e o mundo e permite um alargamento da organização psíquica que coloca o cosmo sob o domínio do si (self)." A música, por essa dupla capacidade – de fazer o melômano regredir a fontes pulsionais há muito esquecidas, e de fazê-lo aceder, ao mesmo tempo, à apreensão de combinações formais intangíveis –, se auto-expressaria, independentemente de qualquer interpretação concernente a uma interpretação externa a ela. Ora, se ela se basta, sem no entanto conduzir aquele a quem encanta para um impasse autista, é realmente porque gera um modo de comunicação diferente do que é gerado pela linguagem, e porque participa de uma recriação do mundo que dá ao eu do sujeito um material com que vencer sua própria condição existencial.

       A música não se desenvolve como uma linguagem que narra, mas descreve um tremor surdo, a oscilação que antecede a catástrofe, segundo o filósofo Daniel Charles; e, para retomar os termos dele, a escrita musical não pertenceria ao signo, mas à cifra, enquanto escrita que só presta contas de seus próprios movimentos. Em sua obra Le temps de la voix, o autor compara a obra musical a uma "sismografia" em que a subjetividade não teria nenhuma participação. "O abalo vem de mais longe. E deixa vestígios; são esses vestígios que, como escrita, prestam-se à decifração." Como não pensar, por esse ponto de vista, na própria dinâmica psíquica, tornada manifesta pela música, assim como alguns sonhos tornam manifesta a pontualidade da percepção endopsíquica? Não seria, como muitas vezes podemos ler na literatura psicanalítica, o trabalho do inconsciente que aparece na e através da música, dela retirando suas possibilidades de escrita, e, se algumas formas de escrita musical foram comparadas aos processos de trabalho do sonho ou ao ritmo tensão/descarga do aparelho psíquico, nada se deduziu disso, no entanto, quanto à essência do próprio fato musical. Antes, a atenção voltada para as satisfações (Befriedigung) intrapsíquicas é que melhor explicaria o que poderíamos chamar de essência musical, no sentido em que Freud evocou um determinado tipo de satisfação, em O mal-estar na cultura, para caracterizar a técnica da arte de viver, utilizando a propriedade de se deslocar de que a libido goza, sem por isso desviar-se do mundo externo.

       A composição musical refletiria, assim, o mito endopsíquico, no sentido em que ele transcreve o movimento de emergência do inconsciente; e, seguindo essa visão, Kaufmann lembra que, após a definição do mito endopsíquico, Freud, numa mesma carta a Fliess datada de 12 de dezembro de 1897, participa ainda a seu amigo o prazer que sentira ao ouvir os Mestres cantores, e isso, em relação à formação do pensamento. "Recentemente, extraí um prazer singular dos Mestres cantores. (...) O Devaneio da manhã comoveu-me simpaticamente. Ali encontramos, como em nenhuma outra ópera, pensamentos efetivos (Wirkliche Gedanken) musicados, tonalidades sentimentais inerentes à reflexão (dem Nachsinnen anhaftenden Gefuhlstone)." Caberia ainda, desta vez para justificar a especificidade do material musical, ligá-lo à sublimação de uma pulsão parcial a que Lacan, no Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicandlise, deu o nome de "pulsão invocante"? Estaríamos com isso autorizados a conceber a música como a manifestação artística da percepção endopsíquica, e a considerar o que ela exprime, ou seja, o tipo de emoção que ela provoca no melômano, menos como o prazer proporcionado pelo efeito de um ressurgimento oriundo do inconsciente do que como o prazer proporcionado pela conformação dos movimentos característicos de uma organização psíquica particular, movimentos inapreensíveis por qualquer outro meio?

       Nessa hipótese, é compreensível que o tempo musical, diferentemente da simples convenção de escrita que rege a percepção comum da duração, seja, antes de mais nada, um tempo de escansão, um tempo de movimento e ruptura ao qual pertencem tanto o silêncio da música das esferas dos antigos gregos quanto as transformações eletro-acústicas do som da música contemporânea. E, se a música pede para nascer numa pontualidade cujo paradoxo consiste em sua capacidade de reprodução, é realmente por não se reduzir unicamente ao movimento pulsional, como tantas vezes se pensa ao interpretar o filósofo Schopenhauer, nem tampouco à expressão dos sentimentos, como quereria o espírito romântico, por exemplo, com E.T.A. Hoffman; desafiando o tempo convencional além das escritas mais clássicas, ela dá conta da dinâmica psíquica que constitui a imbricação dos diferentes registros tópicos e se alimenta das contradições e conflitos que não podem deixar de surgir sob a forma aparente do aleatório. "O grande esforço, no campo que nos é próprio", escreve Boulez, "é pesquisar atualmente uma dialética que se instaura, a cada instante da composição, entre uma organização global rigorosa e uma estrutura momentânea submetida ao livre-arbítrio."

       Note-se que a música, assim extirpada do universo da significação, tende a invalidar a distinção tradicionalmente mantida entre o ouvinte e o compositor, para melhor insistir no que, das estruturas musicais afirmadas pelo compositor, continua a escapar tanto a um quanto ao outro.

       Por conseguinte, e na medida em que o aleatório representa um valor da organização musical, compete à memória do ouvinte participar da organização da obra, nos tempos deixados pelo compositor para esse fim. E, diferentemente da escrita musical, muito apressadamente assimilada ao signo lingüístico, e que reduz a memória unicamente a suas capacidades de retenção e protensão, a transcrição do próprio "objeto sonoro" – para retomarmos o vocabulário de Pierre Schaeffer, sem no entanto acompanhá-lo em sua interpretação lingüística da música –, nas escolhas particularizadas de suas potencialidades de desenvolvimento, convida a memória do ouvinte a combinar as produções sonoras ao sabor do que poderíamos chamar de "momentos de fixação" oriundos da escuta singular. Esse novo tipo de análise fenomenológica da música reduziria a importância das clássicas questões de estética musical, formuladas nos termos habituais de forma/conteúdo, limitações/probabilidades, execução/interpretação etc., dando lugar a um novo modo de escuta por parte do ouvinte e, por conseguinte, a um novo modo de relação entre o ouvinte e o compositor.


A "relação com o Outro" musical

       Se a música participa do prazer proporcionado pelo trabalho sublimatório da percepção endopsíquica – maneira, pelo menos, de configurar e objetivar esta última –, ela decorre, necessariamente, do sentimento nostálgico fundamental (Sehnsucht) em que fica embebido o desejo, que nunca chega a se resolver totalmente no investimento do objeto; igualmente, aquém do prazer, ela também aponta para os vestígios de um gozo para sempre desaparecido, o gozo de um tempo anterior ao advento do significante, e que se manifesta na própria insatisfação que renova o desejo. Sem dúvida, o momento hegeliano da "consciência infeliz", que o filósofo compara a um "estado de ânimo musical", ilustraria bem o estado que leva ao gozo, calcado na nostálgica felicidade do ser que medita sobre sua própria incompletude. Além da insatisfação existencial que incitao artista a tender para a criação efetiva (os Wirklichkeiten de Freud), a música remeteria a esse gozo impossível de dizer e impossível de pensar, um gozo externo ao significante e cuja natureza explicaria sua dificuldade de se deixar transcrever na linguagem. Talvez, assim, possamos imaginar a música como aquilo que, do som ligado à palavra do "traço mnêmico sensorial" (Freud), teria escapado à dominação do "simbólico" (Lacan), ou, dito de outra maneira, como aquilo no som que permaneceria irredutível ao significante. O poder dionisíaco que ela detém, sob as formas variadas do transe ou do encantamento, indicaria, mais do que um parentesco com um ritmo fisiológico natural (N. Perrotti), a confusão de onde provém a organização psíquica, quando a imaginamos imune ao corte significante que determina, ao mesmo tempo, a incompletude e a singularidade absoluta do ser-sujeito. A música expõe, assim, o paradoxo de gerar a comunicação aquém das palavras e na saudade comum de um gozo definitivamente perdido, posteriormente relacionado com o modelo materno, e, inversamente, de reduzir a comunicação ao silêncio autístico da escuta, posteriormente relacionado com o narcisismo ou com a satisfação auto-erótica (S. Pfeifer). Adorno, por exemplo, critica a música de vanguarda, como a de John Cage, justamente por ela conduzir ao silêncio, ao som indiferenciado ou isolado, ou, em outras palavras, ao gozo em si, por isso mesmo incomunicável. O próprio Cage se explica em Silence (1961), título que, por si só, sustenta o paradoxo da música: "Mas, então, com que intenção escrever música? (...) O único objetivo é, evidentemente, não ter objetivo, e portanto, meramente lidar com os sons. Essa resposta deve ter o aspecto de um paradoxo: o objetivo de não ter objetivo, ou um jogo sem objetivo. Mas esse jogo é uma afirmação de vida; não é uma tentativa de ordenação do caos ou uma experimentação de processos criadores, mas simplesmente uma maneira de despertar para a verdadeira vida, ou a que estamos vivendo."

       Com um compositor como Cage, chegamos à fronteira, não da música como organização dos sons, mas da música como organização de um dentro e um fora, e para a qual as duas vertentes viriam a perder sua pertinência significante. Tratar-se-ia menos de querer discerni-las de um ponto de vista fenomenológico – já que também sua proximidade parcial é parte intrínseca da essência musical – do que de salvaguardar sua função significante, sob pena de confundir a música com o corpo e vice-versa. A pesquisa de um compositor como Xenakis, por exemplo, na aplicação das leis matemáticas à organização do material sonoro, garante o caráter legítimo desse projeto.

       Cage, evocando uma aparente desordem contra um fundo de execução, leva ainda a pensar que a execução não escapa à regra que a define como tal, ou, em outras palavras, à forma. A pulsão de conformação (Gestaltung), tão bem descrita pelo psiquiatra E. Prinzhorn a partir das obras de pacientes esquizofrênicos, e que ele generaliza para todas as produções gráficas, inclusive as mais anódinas, pareceria aplicar-se igualmente à música e transcender, necessariamente, as simples intenções do compositor. A partir disso, um universo de sons totalmente aleatório, no sentido da não-redundância radical de um Cage, parece difícil de conceber, se nos referirmos ao ouvinte que filtra e organiza sua escuta. A música contemporânea renova, assim, o que se poderia chamar de "problemática musical", na medida em que o trabalho do compositor passa a se realizar respeitando a independência e a liberdade do som na combinação aleatória de seus elementos. Por isso, essa problemática gera um novo questionamento quanto ao tipo de comunicação que a música permite, ou, em outras palavras, quanto à finalidade que ela se propõe, inclusive a de não se propor nenhuma.

       A pequena "nota azul" de Chopin, portanto, não parará, através das mais diversas músicas, de nos comover e nos envolver, sem que conheçamos bem suas causas. Sem dúvida, é preciso fazer referência, segundo o psicanalista A. Didier-Weill, aos quatro tempos lógicos da relação musical, a partir da seguinte pergunta: o melômano ouve como sujeito ou como Outro? O primeiro tempo situaria o ouvinte melônamo no lugar do Outro, que receberia do músico-sujeito a resposta a sua própria questão, até então mantida inconsciente. Desprovida de angústia, como mostra o evidente prazer da escuta musical, a resposta do músico repousaria no trabalho de assunção da castração, um trabalho que tem em si a capacidade de introduzir o Outro-ouvinte no mesmo confronto. O en-contro do melômano e do músico se efetuaria, então, com base num acordo inconsciente, por trás do qual adivinhamos a presença do objeto a, objeto causa do desejo, como se, para citar A. Didier-Weill, "... eles só pudessem encontrar-se ao comemorar, no reconhecimento do dom do que não têm, a impossibilidade de qualquer moeda de troca entre eles". (Reconhece-se aí a definição lacaniana do amor: dar o que não se tem.) O segundo tempo da relação musical, portanto, vê o Outro-ouvinte colocar-se na posição de sujeito, por ter como que recuperado sua questão e tê-la enunciado. E o terceiro tempo permitiria ao melômano transformado em sujeito, por conseguinte, identificar-se com o músico como o Outro do amor transferencial que sustenta a demanda do sujeito, sem no entanto satisfazê-la. "O impacto desse ponto de báscula no ouvinte", escreve Didier-Weill, "é realizar a improvável conjunção entre o que ele pode ouvir e o que pode dizer: ponto de conjunção de onde a Fala do mundo que lhe fala torna-se, ao mesmo tempo, sua fala de $" Por fim, o quarto tempo daria lugar à emergência da "nota azul", ao introduzir a explosão temporal, aquela que, ao mesmo tempo, surpreende o ouvinte e remata seu prazer, já que os quatro tempos assim descritos são estritamente lógicos e se inscrevem numa pura instantaneidade.

       Se o prazer musical conduz pelos vestígios de um gozo que alguns temem, diríamos, numa linguagem deliberadamente moderna, que é por ele deixar advir no ouvinte a surpresa da questão que toca no mal-estar fundamental do ser, num nível inconsciente que só podemos designar em termos metapsicológicos de corte e castração. E o fato de a música ressoar no vazio íntimo do sujeito, transpondo sua interrogação como resposta, significa que o melômano, profundamente interpelado pelo que desencadeia nele uma espécie de auto-reconhecimento, assume uma participação ativa e incessante no trabalho criativo do músico, leva-o adiante, por assim dizer, em seus efeitos de resolução. Certamente poderíamos aproximar a definição da "fala plena" de Lacan, uma "fala que produz ato e que faz com que um dos sujeitos se descubra, depois, diferente do que era antes", do comentário de Boris de Schlozer a propósito de Bach e do artista em geral: "O que caracteriza essencialmente o artista (...) é a produção de uma coisa cuja geração, cujo próprio processo de geração, modifica seu autor, permitindo-lhe transcender-se, ser, ao mesmo tempo, plenamente ele mesmo e um outro." A atividade criadora consistiria, sempre segundo esse autor, "não unicamente em gerar um sistema orgânico, mas ainda em produzir conjuntamente o próprio autor desse sistema, o que nele se acha imediatamente presente." É isso que concerne tanto à atividade do compositor quanto à atividade do ouvinte; e poderíamos pensar que ela não pára de desvelar as condições de emergência da relação com o Outro, que conseguem exprimir-se sem angústia na especificidade do fenômeno musical.

       KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

 

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