Cancioneiro

 
       Designação genérica dos códices de poemas galego-portugueses escritos do século XII ao XIV. Os mais conhecidos são os da Ajuda, da Vaticana e da Biblioteca Nacional de Lisboa.

       A poesia dos cancioneiros é o primeiro grande movimento literário da Idade Média em Portugal. A mais antiga composição literária portuguesa que se conhece é uma cantiga d'amor de 1198, da autoria de Paio (ou Pai) de Soares Taveiros.

       Cancioneiro é um antigo códice em que se encontram compiladas as cantigas dos trovadores medievais de Portugal e da Galícia nos séculos XII, XIII e XIV (Cancioneiro da Ajuda, Cancioneiro da Vaticana e Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa) e os poemas dos mais destacados autores portugueses dos séculos XV e XVI (Cancioneiro geral, de Garcia de Resende).

       Os códices. Cancioneiro da Ajuda. Inicialmente designado Livro de cantigas do conde de Barcelos, por se supor ser este, o infante D. Pedro, filho de D. Dinis, autor das composições, foi encontrado em princípios do século XIX no colégio dos Nobres. Supõe-se tenha vindo do colégio jesuítico de Évora, pois encontraram-se mais tarde, na biblioteca pública dessa cidade alentejana, algumas folhas dispersas do códice. Foi um inglês Lord Charles Stuart de Rothesay, que mandou copiar o manuscrito e o fez publicar em 1823. Em 1832, a coletânea entrou na Biblioteca Real da Ajuda, de onde provém o nome pelo qual é conhecida. É a Carolina Michaëlis de Vasconcelos que se deve a edição crítica desse cancioneiro, publicado em 1914. O códice da Ajuda é inacabado, já que nele não existe a notação musical das cantigas. É possível que tenha sido compilado em fins do século XIII ou, mais provavelmente, no início do século XIV.

       Cancioneiro da Vaticana. As primeiras referências conhecidas às cantigas de D. Dinis e à existência de um cancioneiro português na Biblioteca do Vaticano datam da época de D. João III. Foi o romancista Fernando Wolf que, pesquisando na biblioteca papal, descobriu o códice (do fim do século XV ou início do XVI), com nada menos de 1.205 cantigas do repertório galego-português. As cantigas atribuídas a D. Dinis foram copiadas e editadas em Paris, em 1847, pelo brasileiro Caetano Lopes de Moura.

       Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa ou de Colocci-Brancuti. É esse o maior dos três cancioneiros galego-portugueses, pois contém, além das 1.205 cantigas da Vaticana, outras 442 até então desconhecidas. Descoberto na biblioteca do conde Brancuti, o códice teve as composições novas copiadas por um discípulo de Monaci, Eurico Moteni. Essa parcela inédita foi editada por Monaci em 1880. O título do códice também se refere ao humanista Angelo Colocci, a quem o manuscrito pertencera no século XVI. Foi vendido pelos herdeiros de Monaci à Biblioteca Nacional de Lisboa, onde se encontra desde 1924.

       A cantiga é um tipo de poesia cantada, cuja composição das estrofes varia através dos tempos, de acordo com os autores e os gêneros. Sua tradição vem dos primórdios da nacionalidade portuguesa e a forma que ainda hoje sobrevive na cultura popular é a da quadra em redondilha.

       Os cancioneiros, como repositórios de um período literário delimitado e caracterizado, são exemplo ilustrativo da cultura da Idade Média e de um painel sociológico refletido pela literatura da época: as coletâneas alinham nobres e monarcas versejadores, ao lado de simples jograis de origem plebéia e inspiração popular.

       Origens do trovadorismo. A poesia trovadoresca se desenvolveu a partir do centro cultural de Santiago de Compostela e se irradiou por toda a Galiza e norte de Portugal. Julga-se que sua fase de maior esplendor foi o reinado de Afonso III.

       É necessário ressaltar, na produção poética dessa primeira época da literatura portuguesa, a influência dos árabes na Andaluzia, dos trovadores da Alemanha (Minnesänger) e da Itália e, principalmente, dos autores provençais, cuja poesia pode ser considerada a matriz de toda a lírica européia medieval. Foi nos numerosos pequenos centros de cultura surgidos nessa área meridional do território francês -- praticamente desligados da autoridade do rei, da severa estrutura feudal e do pesado poder dos bispos -- que fermentou um tipo de vida específico e a expressão artística correspondente.

       Dois filões poéticos distintos destacam-se no repertório lírico galego-português. Um, arraigado e fertilizado em solo ibérico, exemplifica-se com as cantigas d'amigo; o outro, representado em sua quase totalidade pelas cantigas d'amor, é fruto da influência vinda da Provença, com todas as implicações sociais, morais e estéticas do elegante "amor cortês", que os trovadores ibéricos traduziram, em geral, em linguagem mais culta e literária.

       A atividade dos autores que hoje se conhecem através da compilação dos cancioneiros foi, portanto, precedida de uma tradição oral, cultivada principalmente pelos jograis (ou segréis, como também foram conhecidos na península ibérica), trovadores ambulantes cuja existência se registra em todos os povos românicos medievais.

       Cantigas d'amigo. No gênero trovadoresco conhecido como cantiga d'amigo, a amada dirige ternos queixumes ao amigo. Nas mais antigas ela faz confidências à mãe ou às amigas sobre as dúvidas de amor, as saudades do "amigo" etc. Trata-se de uma poesia realista, com a viva presença da natureza, e nela o trovador procura expressar a subjetividade e a sensibilidade femininas, pondo as palavras na boca da própria mulher. Apresentando a outra face da história amorosa, essas cantigas constituem a parte mais original do trovadorismo galego-português. Apanhado de traços característicos da feição psicológica da mulher, as cantigas d'amigo são retratos de um amor tímido, que não se atreve à declaração explícita, pois à mulher não competiam iniciativa e decisão.

       Certas características formais definem as cantigas d'amigo. O par de estrofes é a unidade rítmica. Geralmente contêm a mesma idéia, empregam quase o mesmo vocabulário e variam apenas a rima. As rimas do primeiro par aparecem alternadamente nos pares seguintes, sendo o último verso de cada estrofe usado como o primeiro das estrofes do par seguinte. O refrão encerra cada estrofe. O esquema, porém, não é rígido, pois diversas cantigas apresentam variantes, com maior ou menor complexidade.

       A organização interna das cantigas d'amigo, pobre de criação literária, evidencia a importância da música na sua apresentação. O refrão equivale a um testemunho da presença do coro, assim como a disposição estrófica aos pares e a presença alternada das mesmas rimas mostram claramente que dois cantores, ou dois grupos de cantores, se alternavam.

       Cantigas d'amor. A apropriação da lírica provençal pelos galegos veio a determinar o feitio em que se definiram as cantigas d'amor, nas quais o amante se dirige à amada. Embora, de certo modo, essas composições já se afastem (ou procurem afastar-se) da estrutura paralelística e do tom popular que caracterizavam os primitivos cantares d'amigo, é evidente a influência galega no gênero importado. São traços evidentes dessa presença o refrão e as reminiscências, ainda que disfarçadas, do paralelismo. A influência occitânica é visível na própria língua, enxertada de provençalismos como cor (em vez de coraçon), gréu (grave), seu (seso) etc.

       As cantigas d'amor galego-portuguesas são de estilo direto, repetindo sempre a mesma palavra em determinados momentos da estrofe, ou de um verbo em suas diversas formas. Arrabil, viola, cítara ou outro instrumento acompanhavam a cantiga, e essa dependência da música perdurou até o século XV.

       Paralelismo e refrão, oriundos da tradição mais antiga, conferem às cantigas d'amor uma feição monótona, de súplica dolorosa, o que talvez tivesse inibido os trovadores de desenvolverem a idéia poética em mais de três ou quatro estrofes. Compõem-se, em geral, de duas a quatro estrofes, com variação da métrica e da estrutura de uma cantiga para outra e uniformidade na mesma cantiga.

       Cantigas de escárnio e de maldizer. Parte considerável dos cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional de Lisboa é dedicada às cantigas satíricas. O léxico pouco legível dos velhos apógrafos e a linguagem obscena em que a maioria delas está escrita dificultaram durante muito tempo sua divulgação. Foi Carolina Michaëlis de Vasconcelos quem principiou o levantamento dessas cantigas.

       Divide-se o gênero satírico em duas modalidades distintas: as cantigas de escárnio e as de maldizer. Nas primeiras, tornou-se comum o uso de palavras encobertas, ou seja, a intenção foi de criar um tom ambíguo pelo qual a sátira resultasse indireta. Já nas de maldizer, o trovador procura atingir diretamente o alvo. Os jograis são os responsáveis pela grande variedade de cantigas satíricas, embora o gênero fosse cultivado até mesmo por reis, como é o caso de D. Dinis e de seu avô, Afonso X.

       Em sua grande maioria, fixam um temário de interesse restrito, assentando-se em pequenos episódios, intrigas, vícios, rivalidades etc. Como vítimas mais freqüentes da sanha jogralesca aparecem o nobre avarento e o burguês fidalgo. Por serem canções da vida boêmia e marginal, realizam-se em linguagem inteiramente livre, pontilhada de licenciosidade, que se ajusta aos temas desenvolvidos: excessos venéreos, embriaguez alcoólica, rivalidades profissionais. Quanto à estrutura, seguem, a exemplo das demais composições do veio popular, o esquema paralelístico e o uso do refrão.

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