Antigo ícone siríaco da Anunciação
Para falarmos da Igreja Siríaca Católica precisamos falar
da grande controvérsia que deu origem a ela, a heresia monofisita.
Advertimos que esta primeira parte deste artigo é baseada no célebre
historiador inglês Edward Gibbon, que não é exatamente
simpático ao catolicismo. Mas sua erudição e honestidade
intelectual fazem dele um guia importante sobre aquela época.
No concílio de Éfeso em 431 D.C. foi condenado o nestorianismo,
heresia que afirmava ter Cristo duas personalidades, a humana e a divina (ver
a história da Igreja Caldeana Católica
). No entanto nessa mesma época estava se desenvolvendo o pensamento
diametralmente oposto, de que Cristo teria uma só pessoa, a divina.
Um dos campeões dessa doutrina era o monge Eutiques, um idoso e analfabeto
arquimandrita (superior) de trezentos monges perto de Constantinopla. O patriarca
de Constantinopla Flaviano convocou um sínodo de sua igreja, sínodo
este que condenou Eutiques, afirmando que ele teria dito que Cristo não
teria derivado seu corpo da substância da Virgem Maria.
Eutiques então apelou para um concílio geral, e nisso foi
ajudado por um seu afilhado, que era o principal eunuco do palácio
do Imperador, e pelo patriarca de Alexandria, Dioscorus. O Imperador Teodósio
convocou então um concílio geral na cidade de Éfeso
(o segundo naquela cidade). Tal reunião foi marcada pelo autoritarismo
de Dioscorus. Este trouxe do Egito uma tropa de arqueiros e de monges implacáveis
que cercaram a catedral onde estavam os participantes do concílio.
O concílio condenou os que diziam ter Cristo duas naturezas (“que aqueles
que dividem Cristo sejam divididos pela espada”). Eutiques foi absolvido sem
hesitação, mas os bispos subordinados a Flaviano não
queriam entregar seu patriarca à justiça de Dioscorus, e se
agarraram aos joelhos deste enquanto este os encarava com ar feroz, e imploraram
misericórdia. Este gritou que eles queriam fazer uma sedição
e gritou pelos oficiais. A tal sinal uma turba de soldados e monges com paus,
espadas e correntes invadiu a igreja, fazendo os bispos tremendo de medo se
esconderem atrás do altar e dos bancos e assinarem um papel em branco
em que depois foi escrita a condenação de Flaviano. Este foi
entregue à turba, que o monge Barsumas, favorável a Dioscorus,
incitava dizendo para vingar as feridas de Cristo. Dizem que o próprio
Dioscorus chutou Flaviano. Este, ferido, fugiu mas morreu três dias
depois. Foi vitória dos monofisitas.
A parte derrotada (= católica) no entanto apelou para o Papa Leão
I. Convocou imediatamente um sínodo provincial que anulou o sínodo
de Éfeso, considerando-o irregular. Mas tão importante quanto
o apoio do Papa foi a morte do Imperador Teodósio quando seu cavalo
tropeçou e ele foi sucedido por sua irmã Pulquéria, que
dominava o marido e era favorável ao partido ortodoxo (= católico).
Então Dioscorus caiu em desgraça e os exilados foram convocados.
Foi convocado um novo concílio, para o qual os legados papais pediram
a presença do Imperador. E os participantes foram levados para uma
pequena localidade perto do mar, num morro, onde foi construída uma
igreja para abrigar os seiscentos e trinta bispos. O lugar de honra ficou
com os legados do Papa e do Imperador. Acusado formalmente, Dioscorus foi
reduzido a criminoso. Novos patriarcas de Constantinopla e Alexandria foram
eleitos. Dos dezessete bispos de Alexandria, monofisitas, quatro aderiram
ao partido católico, e treze de joelhos imploraram a piedade do concílio,
dizendo que seriam linchados quando voltassem a sua terra se renunciassem
ao monofisismo. Houve pedidos de uma anistia geral mas foram rejeitados. Dioscorus
foi condenado entre outros com base em acusações de orgulho,
avareza, crueldade, e que gastava o dinheiro da igreja em dançarinas
e que seu palácio e seu banho eram freqüentados por prostitutas,
principalmente por Irene, um famosa mulher do prazer da cidade, que seria
sua amante.
No entanto restavam os problemas doutrinários, e provavelmente a
maioria dos bispos era a favor da doutrina monofisita. Por força dos
legados papais, em uma votação eles votaram a favor das duas
naturezas, em outra voltaram a uma natureza só, entre gritos de que
as definições dos pais da igreja eram imutáveis. No
entanto o Imperador estava inflexível, e os legados papais também,
e uma comissão de dezoito bispos preparou novo decreto, em que Cristo
tinha uma pessoa em duas naturezas, que foi aceito relutantemente pelos participantes.
E este foi o concílio de Calcedônia.
Nos anos seguintes houve reações violentas. Jerusalém
foi invadida, pilhada e queimada, com muitos mortos, por um exército
de monges em favor de uma natureza só de Cristo. No Egito o novo patriarca
de Alexandria, Protério, esteve em guerra contra seu próprio
povo por cinco anos. Quando se soube que um monofisita importante tinha morrido
o povo cercou a catedral três dias antes da Páscoa e o Patriarca
foi assassinado no batistério, e seu corpo queimado e as cinzas espalhadas
ao vento, sob o rumor de que esse assassinato tinha sido inspirado pela visão
de um anjo. No seu lugar o povo colocou o monge Timóteo o Gato, monofisita.
Depois de trinta anos o imperador Zenão, para acabar com tantas lutas,
propôs uma fórmula de conciliação, mas sem muito
sucesso. A controvérsia ficou latente, e a qualquer oportunidade reacendia.
Naquela mesma época acreditou-se que um anjo revelou aos homens o hino
do Triságio (“Santo, Santo, Santo, é o senhor Deus do Universo”).
Este seria o hino que seria cantado sempre, continuamente, em todos os tempos,
pelos anjos e querubins diante do trono do Senhor. Acontece que logo logo
foi adicionada a frase “que foi crucificado por nós!” e essa frase,
que seria depois adotada universalmente, fora acrescentada por um bispo monofisita.
E isso gerou conflitos terríveis. Na catedral dois coros rivais cantaram
o Triságio, com e sem o acréscimo, um querendo forçar
o outro a desistir. Quando seus pulmões não agüentavam
mais eles partiram para as pauladas e pedradas. O Imperador Anastácio
puniu os católicos, entrando em conflito com o patriarca, que os defendeu.
E a multidão invadiu as ruas, aos gritos de “este é o dia do
martírio!”. A multidão tomou o poder na cidade, as chaves da
cidade e seus estandartes foram tomadas dos guardas. Nos dias seguintes a
multidão pilhou e saqueou e incendiou as casas dos partidários
do imperador, cantando hinos enquanto o faziam. A cabeça de um monge
amigo do Imperador foi levada na ponta de uma lança. Estátuas
do Imperador foram quebradas enquanto ele se refugiava num subúrbio.
Depois de três dias o Imperador, sem seu diadema, humilhado, suplicou
o perdão de seus súditos no circo. Diante dele os católicos
em coro cantaram o seu Triságio, sem acréscimo. E dois ministros
foram entregues aos leões.
No entanto a fé monofisita continuou em muitas pessoas. Por volta
do ano 540 houve nova perseguição. O patriarca de Antioquia,
o monofisita Severo foi destronado e perseguido e fugiu, e seu amigo Xenaias
foi estrangulado, trezentos e cinqüenta monges foram massacrados, além
de bispos destronados e presbíteros jogados na prisão, mesmo
contando com a discreta ajuda de Teodora, a Imperatriz. E no meio dessa miséria
surgiu a figura de Tiago (Jacob) al-Baradai, que nas masmorras de Constantinopla
recebeu secretamente o título de Bispo de Edessa e Apóstolo
do Oriente. Libertado lançou-se a uma frenética atividade
missionária, nas costas de rápidos camelos fornecidos por um
simpatizante. Visitou vilas, conventos e cavernas onde os adeptos do monofisismo
se escondiam, e teria ordenado oitenta mil bispos, padres e diáconos,
que eram ensinados também a odiar o legislador romano. Por conta de
seu esforço a igreja monofisita é também conhecida como
Igreja Jacobita. Foi ele o organizador da Igreja Siríaca Ortodoxa,
não em comunhão com Roma, que existe até hoje. Seus sucessores
formam uma linhagem de patriarcas monofisitas de Antioquia. A segunda maior
autoridade nessa igreja é o Mafrian (em siríaco: frutuoso,
delegado universal), instituído em 630 e sediado em Mosul, no Iraque,
na mesma cidade do catholicós nestoriano, inicialmente com jurisdição
sobre os fiéis monofisitas no Império Sassânida.
Perseguidos por Constantinopla os monofisitas ou siríaco-ortodoxos
acolheram os invasores muçulmanos, que tinham inicialmente uma tirania
mais leve. Mas depois houve perseguições e conversões
em massa ao islamismo. Sua Igreja existe até hoje. Logo abaixo mencionaremos
seu Patriarca e sua Página no Brasil.
A Igreja Siríaca Católica começa com tentativas de
reunificação dos jacobitas com o catolicismo que começaram
depois das cruzadas. Em 1444 em Florença, houve a tão almejada
reunificação ao catolicismo. Mas a invasão turca logo
depois fez com que essa tentativa durasse pouco. Entre 1563 e 1571 houve
uma ativa correspondência entre o patriarca e os Papas Pio IV e V,
e em 1583 o papa enviou um legado à igreja jacobita. Em 1656 André
Akhidjan foi consagrado pelo patriarca maronita e seis anos depois foi eleito
Patriarca Siríaco de Antioquia, enviando a Roma sua profissão
de fé. Seu sucessor Inácio Pedro Chaahbadine foi perseguido
violentamente pelo Xeque de Istambul, preso, torturado e colocado em marchas
forçadas, ao final das quais morreu como mártir da fé
em 1702. Depois disso a Igreja Siríaca católica ficou sem Patriarca
até 1782. Neste ano foi eleito um único patriarca para as duas
comunidades, Denis Miguel Djarve. Foi confirmado por Roma no ano seguinte,
mas apenas quatro bispos ficaram com ele. Os outros elegeram um patriarca
siríaco-ortodoxo. Assim, desde aquela época há duas
igrejas siríacas - a católica e a ortodoxa. Perseguido, o patriarca
siríaco católico teve de fugir para o Líbano, onde até
hoje no convento de Charfe se encontra o ícone milagroso de Nossa Senhora
Libertadora que fugiu trazendo no peito.
Após passar períodos em Alepo-Síria e em Mardin –
Turquia, e oprimida por perseguições, a sede patriarcal se
transferiu definitivamente para Beirute no Líbano durante a Primeira
Guerra Mundial.
Em 1935 o Patriarca Inácio Gabriel Tappouni foi elevado a cardeal
pelo papa Pio XI, tornando-se o primeiro cardeal desta Igreja. Faleceu em
1968.
Da esquerda para a direita: Monsenhor Luiz Awad (pároco siríaco
católico no Brasil), Patriarca Dom Moussa Dauod e Monsenhor Antonio
Chahda, da Venezuela
Patriarca Inácio Pedro VIII de Antioquia dos Siríacos católicos
Fontes:
GIBBON, Edward. Decline and fall of the Roman Empire. Cap. XLVII. Enciclopédia
Britânica, 1987. Coleção Great Books of the Western
World.
KHATLAB, Roberto. As Igrejas Orientais, católicas e ortodoxas, tradições
vivas. São Paulo: Ave Maria edições, 1997. 256p.
Sua Beatitude Dom Moussa Dauod visita Belo Horizonte - Revista CHAMS, abril,
2000, ano IX, n. 90 – pp. 16 e 17
New Syriac Patriarch of Antioch Elected -
http://www.dailycatholic.org/issue/2001Feb/feb27nw1.htm
Correspondência particular com o pesquisador Roberto Khatlab, a quem
esta Página agradece a foto do Patriarca atual e do ícone.