São Paulo, segunda-feira, 20 de abril de 2009
Poesia na Rede
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NELSON RODRIGUES
Memória: Nelson por Nelson
Nasci a 23 de agosto de 1912, no Recife,
Pernambuco. Vejam vocês: eu nascia na rua Dr. João Ramos (Capunga) e, ao mesmo
tempo, Mata-Hari ateava paixões e suicídios nas esquinas e botecos de Paris. Era
a espiã de um seio só e não sabia que ia ser fuzilada. Que fazia ela, e que
fazia o marechal Joffre, então apenas general, enquanto eu nascia? A belle
époque já trazia no ventre a primeira batalha do Marne. Mas por que “espiã de um
seio só?” Não ponho minha mão no fogo por uma mutilação que talvez seja uma
doce, uma compassiva fantasia. Seja como for, o seio solitário é, a um só tempo,
absurdamente triste e altamente promocional.
Mas a belle époque não é a defunta que, de momento, me interessa. Tenho mortos e
vivos mais urgentes. Por outro lado, minhas lembranças não terão nenhuma ordem
cronológica. Hoje posso falar do kaiser, amanhã do Otto Lara Resende, depois de
amanhã do czar, domingo do Roberto Campos. E por que não do Schmidt? Como não
falar de Augusto Frederico Schmidt? Seu nome ainda tem a atualidade, a tensão, a
magia da presença física. Todavia, deixemos o Schmidt para depois. O que eu
quero dizer é que estas são memórias do passado, do presente, do futuro e de
várias alucinações”. (p.11)
“Toda a minha primeira infância tem gosto de caju e de pitanga. Caju de praia e
pitanga brava. Hoje, tenho 54 anos bem sofridos e bem suados (confesso minha
idade com um cordial descaro, porque, ao contrário do Tristão de Athayde, não
odeio a velhice). Mas como ia dizendo: - ainda hoje, quando provo uma pitanga ou
um caju contemporâneo, sou raptado por um desses movimentos proustianos, por um
desses processos regressivos e fatais”. (p.15)
“1913. O que a memória consciente preservou de Olinda foi um mínimo de vida e de
gente. Eu me lembro de pouquíssimas pessoas. Por exemplo: - vejo uma imagem
feminina. Mas é mais um chapéu do que uma mulher. Em 1913, mesmo meu pai e minha
mãe pareciam não ter nada a ver com a vida real. Vagavam, diáfanos, por entre as
mesas e cadeiras. Depois, eu os vejo parados, com uma pose meio espectral de
retrato antigo. Mas nem meu pai, nem minha mãe falavam. Eu não os ouvia. O que
me espanta é que essa primeira infância não tem palavras. Não me lembro de uma
única voz. Não guardei um bom-dia, um gemido, um grito. Não há um canto de galo
no meu primeiro e segundo ano de vida. O próprio mar era silêncio”. p.15-6)
“Já falei da louca, filha da lavadeira. Foi a primeira mulher nua que vi na
minha infância. E, ainda agora, ao bater estas notas, tenho a cena diante de
mim. Eu me vejo, pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. Empurro a porta
e olho. O espantoso é que sinto uma relação direta e atual entre mim e o fato,
como se a memória não fosse a intermediária. A demente tem a tensão e o cheiro
da presença viva. Mas como ia dizendo: - no fundo, encostada à parede, está a
nudez acuada”. (p.39)
“No primeiro momento, a glória é casta. Desde garotinho, a minha vida fora a
desesperada busca da mulher primeira, única e última. No período da fome, o amor
passara a um plano secundário ou nulo. Mas a glória é ainda mais obsessiva, mais
devoradora do que a fome. Eis o que eu queria dizer: _ com o artigo de Manuel
Bandeira, só eu existia para mim mesmo. Tudo o mais era paisagem.” (...)
“Sim, ainda me lembro do primeiro dia do artigo de Manuel Bandeira. Depois do
trabalho, fui para casa. Tranquei-me no quarto como se fosse praticar um ato
solitário e obsceno. Comecei a reler o poeta. Primeiro, repassei todo o artigo,
da primeira à última linha. Depois, reli certos trechos. O final dizia assim: -
“Vestido de noiva, em outro país, consagraria um autor. No Brasil, consagrará o
público”. Antes de mais nada, o poeta influiu na minha auto-estima”. (p.162)
“Uma meia dúzia aceitou Álbum de família. A maioria gritou. Uns acharam “incesto
demais”, como se pudesse haver “incesto de menos”. De mais a mais, era uma
tragédia “sem linguagem nobre”. Em suma: - a quase unanimidade achou a peça de
uma obsessiva, monótona obscenidade. Augusto Frederico Schmidt falou na minha
“insistência na torpeza”. O dr. Alceu deu toda razão à polícia, que interditaria
a peça; meu texto parecia-lhe da “pior subliteratura.
Assim comecei a destruir os meus admiradores. Foi uma carnificina literária. Mas
não me degradei, eis a verdade, não me degradei”. (p.215)
“O número de ex-admiradores aumentava. E, pouco a pouco, ia fundando a minha
solidão. Fora proibida a representação de Álbum de família. Em seguida, houve a
interdição de Anjo negro. De peça para peça, me tornava, e cada vez mais, um
caso de polícia. Escândalo nos jornais. E, um dia, encontro-me com Carlos
Lacerda. Pediu o meu novo texto: - “Você me dá, que eu escrevo contra a
censura”. Ótimo. No dia seguinte, fui levar-lhe uma cópia.” (...)
“Desde aquela época, cada um, na vida literária, tinha que ser um engajado.
Ninguém ia à rua sem a sua pose ideológica. Lembro-me de Isaac Paschoal me
perguntando, depois de um discurso de Prestes: - “E você? Qual é a sua
contribuição?”. Baixei a vista, rubro de vergonha. E, como ainda não contribuíra,
senti-me um fracassado nato e hereditário. Daí porque não posso ver, hoje em
dia, o Guimarães Rosa, sem uma sensação de deslumbramento. Durante anos,
pratiquei a solidão com certo pânico e certa vergonha. E eis que vem o autor de
Sagarana e ergue a sua torre de marfim, assim como um cigano põe a sua barraca.
Nada existe: - só a sua obra. Estão brigando no Vietnã? Pois o nosso Rosa
escreve. Há a guerra nuclear, o fim do mundo? Guimarães Rosa funda outro idioma.
A torre de marfim fez dele o maior artista brasileiro do século”. (p.218)
(Excertos de A menina sem estrela - Memórias, de Nelson Rodrigues; São Paulo:
Companhia das Letras, 1999, Coleção das Obras de Nelson Rodrigues, sob a
coordenação de Ruy Castro).
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Nelson Rodrigues foi dramaturgo,
jornalista e escritor brasileiro
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