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SÓCRATES
A Escola da Vida
Faz muito tempo, eu sei,
mas nunca se esquece do período em que, nos bancos escolares, aprendia-se pouco
a pouco tudo que era necessário para o nosso futuro. As primeiras lições que
tentavam nos dar noções dos números e de sua importância. O quebra-cabeça
em que a tabuada se tornava cada vez que íamos realizar alguma prova – alguns
insistiam em contar nos dedos. Talvez já estivessem treinando para quando
chegassem as calculadoras – e tem garoto de hoje que nem imagina como é possível
realizar uma operação sem elas. A professora de Matemática, até porque era a
matéria em que a maioria se enrascava, parecia ser sempre a mais brava e de
olhar mais reprovador. A minha era alta e magra – seca de dar dó –, e tinha
uma mania besta de dar aulas com a vara de marmelo nas mãos. Não havia classe
mais comportada que aquela. Mas só durante aquela hora. Depois, era uma bagunça
só.
Geralmente, tínhamos o recreio logo após, o que de certa forma compensava a
seriedade da professora. Era só soar o sino que corríamos para uma área nos
altos do colégio em busca de alguma coisa que lembrasse uma bola para fazermos
uma pelada, um baba. Em geral, caroços de abacate serviam para esse fim. Como não
tinham vida muito longa, tínhamos que a todo instante abrir mais uma fruta e
com isso o campo que já era de terra se tornava ainda mais sujo. Imaginem como
voltávamos para as salas de aula? Eventualmente, éramos encaminhados para a
supervisão, onde recebíamos grandes pitos e orientações, na tentativa de
evitar aquela rotina. Mas bola é bola. Era impossível nos afastar dela.
O professor de Português era uma figura. Sempre de terno escuro e gravata
borboleta. Sapatos impecavelmente lustrados na esquina de baixo pelo Saci, que
era meu companheiro no time de várzea – o Raio de Ouro. A camisa era tão
engomada que mal lhe possibilitava os movimentos de alçar os braços para
escrever na lousa. E as abotoaduras! Pareciam de ouro. Brilhavam quando ele se
aproximava da janela e os raios solares podiam tocá-la. Sua voz era imponente e
segura. Nos fazia ver a importância de conhecer bem a língua para que pudéssemos
entendê-la e, assim, tivéssemos mais capacidade para adquirir conhecimento.
Sempre tive muita dificuldade com a escrita. Vivia com lições de caligrafia
para fazer em casa. Isso era um horror: abrir mão da bola para enfrentar aquele
caderno cheio de linhas paralelas; uma perfeição que incomodava. Mas
reconhecia que aquilo era fundamental para que eu pudesse melhorar a capacidade
de escrever e que fosse lido. Hoje sei o quanto me valeu isso.
No colegial, o que me fascinava era Física. Estática, dinâmica, movimento
harmônico simples e todos os outros segmentos da Física eram como um ímã
para mim. Passava horas a tentar descobrir as respostas para qualquer questão
desta matéria como se fosse a última coisa que faria na vida. Uma paixão. Vocês
lembram do Professor Pardal? Pois é, meu professor de Física era a cara dele.
Sem tirar nem pôr. Até os gestos eram parecidos. Quando entendi o que era a
gravidade e o atrito do ar e o quanto eles faziam parte da nossa vida, vi-me
como um grande cientista encontrando a cura de uma doença rara. Já era quase
um adulto.
Meus professores, orientadores e meus pais foram aqueles que me ofereceram seus
conhecimentos para que pudesse ter discernimento para entender a vida e a
sociedade em que vivia. Mas foi nas ruas, nos becos, em cima da boléia dos
caminhões, viajando escondido para alguma cidade próxima para enfrentar a
equipe de lá, que aprendi o que somos e como nos relacionamos. O futebol foi
minha maior escola. Minha maior riqueza. Por intermédio dele pude conviver com
pessoas de todas as raças e de todas as classes sociais; possuidoras de todo
tipo de sonho – algumas sem sequer capacidade de sonhar – e/ou realidade.
Aprendi o que é fome. Convivi com o desemprego e a aflição. Entendi como a
educação é fundamental em cada passo que damos e quanto o nosso povo tem
dificuldade de acesso a ela. Enfim, muito do que sei devo ao futebol; no tempo
em que este meio servia para formar cidadãos. Hoje, pelo jeito – e é só
acompanhar as manchetes policiais –, ele só serve para formar marginais. Uma
verdadeira escola da malandragem. Até presidente aprende a matéria.
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O texto acima foi publicado na Edição 261 (8 de outubro) da revista Carta
Capital e reproduzido neste espaço, após autorização do autor e do Diretor
de Redação, Mino Carta.
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QUARTA-FEIRA
22/10/2003
O ex-jogador,
Sócrates, do
Corinthians e da
Seleção brasileira
é colunista da
Carta Capital
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