Pequeno retrato de uma grande escritora

A busca do sagrado no interior de cada um marca a obra

de Clarice Lispector, narradora e personagem

atenta às mais sutis pulsações da vida

 

 


Caderno 2 de O Estado de S. Paulo, 1º/12/1998

 

LUÍZA MENDES FURIA

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando
o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca,
alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha,
poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao
morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.
A fala é da personagem de Água Viva, livro publicado em 1973 por Clarice
Lispector, síntese do questionamento incessante de sua obra sobre
o ser agora, o estar aqui, a busca, sempre, de um sentido para a vida. A busca do
sagrado que há no interior de cada um. De uma resposta em si e no Outro.
O Outro que é também um dos personagens de sua obra: o leitor. A quem
ela se dá inteira, generosamente, em momentos de tão profunda
intimidade que ele passa a ser seu cúmplice.
De madrugada, acordo cheia de frutos. Quem virá colher os frutos de minha
vida? Senão tu e eu mesma? Por que é que as coisas um instante
antes de acontecerem parecem já ter acontecido? É uma questão da
simultaneidade do tempo. E eis que te faço perguntas e muitas estas serão.
Porque sou uma pergunta.
A proposta de sua obra é um desafio que amedronta e seduz. Desde o primeiro
livro publicado, Perto do Coração Selvagem, em 1944, que inaugurou uma nova
linguagem na literatura brasileira, na trilha de Virginia Woolf, como
ressalta o professor Benedito Nunes: “Percebe-se, na obra de estréia de
Clarice Lispector, acima da leve trama que ainda acompanha uma ação
romanesca já francamente interiorizada, a rede dos ‘pequenos incidentes
separados’ que Virginia Woolf tanto valorizou e que fazem da sua maneira de
narrar uma convergência de momentos de vida vários e dispersos.”
A seguir vieram O Lustre (1946), A Cidade Sitiada (1949) A Maçã no Escuro
(1956), Laços de Família (contos, 1960), A Legião Estrangeira (contos e
crônicas) e A Paixão segundo G.H. (1964), Uma Aprendizagem ou o Livro dos
Prazeres (1969), Felicidade Clandestina (contos, 1971), Água Viva (1973), A
Hora da Estrela (1977), entre outros, todos com temática existencial.
Com uma linguagem extremamente poética, envolvente, instigante, Clarice só
escrevia quando tinha vontade e nunca sabia como iria ser um livro. “Elaboro
muito inconscientemente... Às vezes, pensam que não estou fazendo nada”,
contou em depoimento gravado em 1976 no MIS do Rio. “Estou sentada numa
poltrona e ali fico. Nem eu mesma sei que estou fazendo algo; de repente,
vem uma frase.” Os livros, muitas vezes, eram o resultado de centenas de
anotações, fragmentos, centelhas iluminadas.
Agora vou escrever ao correr da mão: não mexo no que ela escrever.
Esse é um modo de não haver defasagem entre o instante e o eu: ajo
no âmago do próprio instante.
Não gostava de reler seus textos depois de publicados: “Quando um livro já
está publicado, é como um livro morto e, quando o leio, me parece estranho,
ruim.” Também não se interessava pela tradução de suas obras – para francês,
inglês, espanhol, dinamarquês: ‘Sei que não sou eu mesma escrevendo.”
Enquanto alguns a descreviam como misteriosa, inatingível, certamente por
causa de sua confessada timidez, os amigos têm dela outra lembrança: “Não
era um ser fechado, amargurado, como se divulgou”, escreve a amiga Olga
Borelli em Esboço para um Possível Retrato, comovente depoimento, entremeado
com fragmentos de textos de Clarice, publicado em 1981. “Quando abordada,
mostrava-se atenciosa e invariavelmente convidava as pessoas para a
visitarem.” Era “maternal para com os outros e consigo mesma, rude,
exigente, mergulhada numa espécie de auto-análise perpétua”.
Na verdade, não é preciso ter conhecido a escritora pessoalmente para que
essa descrição seja confirmada. Basta ler suas crônicas, reunidas em A
Descoberta do Mundo, em 1984, nas quais não esconde suas opiniões, seu senso
de humor, seu lado “pessoa comum”, mãe, dona de casa, jornalista.
No dia 9, vai fazer 21 anos que Clarice Lispector morreu, vítima de câncer,
em meio a uma frase, trecho para um futuro livro, que ditava para Olga no
quarto do hospital. No último livro que escreveu, Um Sopro de Vida
(Pulsações), diz o personagem do narrador, na última página:
Quanto a mim também me distancio de mim. Se a voz de Deus se manifesta no
silêncio, eu também me calo silencioso. Adeus.

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