RELÓGIO DIGITAL
 
com o passo rijo
das certezas
escondes
a sutileza do rio
esse rio 
que tens na alma
e traça a
doutrina de tua
máquina
 
aos saltos
em teu teatro
mambembe
retalhas o lençol
das horas
num show vibrátil
de números
 
fazes crer
com esse ar de
quem não erra
que tudo é
justo e preciso
pura fusão
de equação e
músculo
 
 
GARRAFA DE NÁUFRAGO
 
não procures
teus objetos perdidos
nas gavetas
do implausível
 
tua aliança de ouro
que caiu no mar
(ou no bar?)
o guarda-chuva esquecido
no ônibus
o bibelô de estimação
que abriu a terra e sumiu
 
não busques a sombra
desses fantasmas:
os ácidos do tempo
diluíram tudo
 
guarda apenas
em tua caderneta de campo
que um dia tiveste
um anel
um guarda-chuva ou
um bibelô de estimação
 
e se quiseres terminar
a história com
um toque melodramático
 
escreve um bilhete
e lança no Tietê
uma garrafa de náufrago
 
 
 TREM
 
Meu destino é perder o trem
para Caxambu.
 
Há muitos anos vivo na estação.
Todos os dias
os comboios passam.
Deixo passar:
ainda não é hora de partir.
 
Caxambu fica distante
e é preciso esperar
o momento certo para seguir
uma
vontade
súbita
de me pôr nos trilhos.
 
Hoje decidi: devo embarcar.
Mas descobri que
nenhum trem passa em Caxambu.
 
 
HERACLITIANO
 
na segunda chicotada
você já é outro
 
— não importa o lado
do chicote

HILDA HILST, POETA

 
Com dedos longos
de poeta
Hilda tateia
a carne de Deus
 
E ele, amo e senhor
ali prostrado
cãozinho arfante
homenzinho amante
aos pés dela
 
Ante as palavras
de Hilda
Deus sonha
com céus de barro
 
 
NAN GOLDIN, FOTÓGRAFA
 
Nan Goldin aponta
a lente para
o que fere o olho:
 
a luz
insólita dos decaídos
os anjos neuróticos
da sarjeta
 
No próximo flash
o auto-retrato entre dentes
(como quem cospe
uma golfada de sangue)
 
 
NOTÍCIA
 
           Para Leusa Araújo e Déborah Souza
 
fazer circular a notícia
bombeá-la pelos aquedutos de Roma
contornar o Coliseu
invadir as estrebarias de César
 
fazê-la descer o riacho
mover o monjolo
girar os cataventos
moer o grão nos moinhos eólios
 
distribuir a notícia
como linfa
essência de perfume neutro
fluido que se espalha nos nervos do vento
 
e se as falanges de Franco
fuzilarem o poeta
e se a palavra for proibida pelo czar
e se o deus encouraçado
endurecer o coração do faraó
e se vierem pragas fomes naufrágios ignomínias 

a notícia vai pousar como pássaro
cansado
no ombro do sobrevivente

somente ela
palavra nua
vai cumprir o fado da poesia
— que é abraçar os cabelos da vida

 
O DESAFIO

Para alguns
o desafio é escalar
a Pedra da Gávea
o Everest
e lá em cima
encher os pulmões
de júbilo 

Para outros
o ouro mais rútilo
é viajar
redescobrir
o caminho das Índias
ou deitar
fazer um filho
e estar aqui
além do futuro 

Há também
os que enxergam
o grande
repto em mergulhar
nos pantanais
de si mesmos 

para trazer
do mato grosso
das entranhas
talvez uma
garça-pequena
talvez uma gota
de peçonha 


 
 GEOGRAFIA
 
na linha do equador
está a dor
 
não adianta fugir para
o pólo norte
 
nem para o deserto
de atacama
 
também não resolve
esconder-se
 
no topo da cordilheira
ou na mais
 
pacífica ilha. abaixo
do equador
 
está a dor. acima do
equador
 
a mesma dor
 


biobibliografia

Carlos Machado nasceu em 1951 em Muritiba (BA) e mora em São Paulo desde 1980. É formado em
engenharia e jornalista da Abril. Além disso, edita o boletim semanal
poesia.net, que deu origem ao site Alguma Poesia.
Seus poemas figuram em jornais e revistas de literatura.
Em setembro de 2006, lançou seu primeiro livro,
Pássaro de Vidro (Hedra), no qual constam os
quatro primeiros poemas reproduzidos nesta página.
Os outros são inéditos em livro.

 
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