OS DIAS ADIADOS/Sexto
A hora estrangeira – 3
Rasgar o ventre da hora estrangeira nascer outra vez Inventar
de novo
os passos
com
apenas
dois braços
duas pernas
um corpo nu
Berrar rasgar o espaço com gritos sons Riscar a pedra negra do silêncio
Sair do corpo
com gestos
soltos
Procurar um sítio para libertar calor para existir estar ter peso
Sentir doer arder a ferida a liberdade a solidão do cordão umbilical cortado
OS DIAS ESPAÇOSOS/Oitavo
Se és meu amigo oferece-me um barco e deixa-me no meio do mar sozinha
Se gostas de mim inventa para hoje uma ilha
e deixa-me nua na areia só
Apenas o corpo das dunas apenas a ansiedade dos juncos apenas a pressentida viagem dos peixes
Apenas a alta sombra fresca dos pássaros passando
ARTE POÉTICA – 1
Dar ao poema a forma o feitio
o único certo feitio
com que do fundo do mar foi expulsado
seixo tronco osso lenho arrebatado noutra idade
agora mansa violentamente restituído à praia
ao litoral de mim
(in Os Dedos Os Dias As Palavras, ed. Figueirinhas, 1987) MONODIÁLOGO – 5
Amo tracinho te – I
Quando pela primeira vez escrevi amote fui repreendida pela gramática Não quis saber Tinha-te mais comigo Assim numa palavra só Quando pela primeira vez soletrei a-mo-te tive medo e com pressa e gula te comi inteiro te reuni em mim Quando pela primeira vez nos começamos a separar respeitei a ortografia e sem dar por isso separei-te de mim amo tracinho te Quando pela primeira vez nos reunimos soletrei melancolicamente a-ma-me como quem esbagulha uma romã Quando pela última vez me disseste amo tracinho te tudo estava certo e solitário eu separada de ti por um pântano de ninguém tu à distância sem mim sem barco e sem vontade Esbracejei não me quis conformar Acenei-te gritei-te de longe Amasme? numa palavra só de braços estendidos a lutar contra os ventos separadores da ortografia e do alto mar Respondeste gritaste claro que te amo te amo te amo escandiam os ventos e o eco em duas palavras separadas Então entre mim e ti o pântano cresceu Depois secou Depois a crosta terrestre desfez-se e refez-se E houve Novos mares e continentes e tudo ficou provisoriamente adulto e definitivo reconciliado com a geografia e a gramática eu tu solidamente solidariamente sós
FAZER VERSOS – II
Às vezes paro à beira de um barranco e pergunto Valerá a pena saltar este obstáculo? Quem me encomendou este sermão estas sílabas? A que avozinha doente vou levar este presente? E o vento ri-se ri-se de mim de minhas rimas e empurra-me para a frente
(in Por Assim Dizer, 1994)
3 HAICAI ALGARVIOS
1
Ser como esta terra de regadio: a água a galrejar por entre sulcos fofos e o mar à mão de semear
2
Estas dunas intactas sem cacos sem restos de gestos e palavras amanhecendo virgens da sua noite dormida com o vento
3
Ter alegrias mansas como aquelas cabrinhas levá-las a pastar HOMENAGEM A ALBERTO CAEIRO
Amo as flores da minha varanda não por serem bonitas ou feitas mas por serem flores e minhas e da minha família e estarem na minha varanda
ALQUIMIA posfácio
Transformar a fome em alimento:
saber fazer do seu tormento
o íntimo fermento do poema
AGORA QUE MORRESTE Diário de uma ausência
27/3/1994
Agora que morreste Mãe e só em mim te tenho sou mais que o meu tamanho porque sou tu também
Tuas mãos afagam minhas mãos de quem são estes gestos esta pele? Nunca me deste irmãos só contigo reparto o meu farnel
de cotidianos fardos e alegrias breves e desta brasa em chaga que é tua ausência nos meus dias órfãos mas sempre ao colo desta mágoa
de não te ter de te ter sido esquiva de não te ter nunca aberto as portas do meu ser de nunca te ter dado vivas o que hoje já só são carícias mortas
(in Cicatriz, Editorial Presença, 1996) BRINDES E BÊNÇÃOS – 1
À perecível memória dos afetos ergo a taça destas sílabas e bebo os olhos úmidos que as recebem e libertam seus subterrâneos rios clandestinos e soluçam sua nudez
CIGARRA
A cigarra concilia três elementos: a terra que lhe faz de berço e tumba o ar que lhe faz crescer as asas e o fogo que é o seu estrídulo espasmo em faíscas de som "Só me falta ser do mar!" pensa ou diz nostálgica
QUATRO AUTO-RETRATOS
2
Por que será que meus olhos tanto necessitam de ver mar ao longe? Ou pelo menos a água de um rio para aí cheirar sua raiz Se calhar foi por tanto apetecer o azul da água ao longe que meus olhos são claros e por tanto amar o mar que meus desgostos se tornaram destemidos e salgados e têm o vôo a pique das gaivotas e o grito ácido dos pássaros marinhos
(in Afectos, 2000) QUASE-DIÁRIO DE UM MILAGRE
19/9/1999
Aprendemos na escola a saga das Descobertas: As datas e os nomes dos que deram “novos mundos ao mundo” – como orgulhosamente nos ensinaram a dizer. Mas só agora Timor é verdadeiramente nosso: Porque só agora fazemos força todos juntos Para que nasça outra vez De seu próprio ventre. 1º/10/1999
Xanana sem discurso preparado De peito nu A deixar falar o coração A fazer a sua declaração De amor ao povo irmão A prometer como os amantes Um amor eterno. Sorrio de saber que nada é eterno. Mas talvez tenhas razão E o amor seja a única Forma de eternidade ao nosso alcance. 4/10/1999
Os que não morreram (quantos restam?) recomeçam a viver do nada. Queimaram as suas casas levaram as suas coisas - Lá vão ainda os caminhões carregados com televisões frigoríficos, mobílias... Mas eles estão prontos a recomeçar com apenas seus gestos mansos e sofridos ao ritmo do teimoso bater do coração.
(in A Nova Descoberta de Timor, 2002) TRISTEZA POR QUE NÃO
Tristeza por que não mas não tristeza vidro sujo a cuspir sua vileza sobre todas as paisagens não tristeza dente podre a proibir qualquer sorriso não tristeza nódoa de gordura sobre a seda natural deste mar deste ar Tristeza ah por que não avança sobre mim mas toca harpa cobre-me de luto sem vergar meus ombros sê uma auréola de negra luz sobre a minha cabeça
EIS-ME REATRELADA
Eis-me reatrelada À carroça Da rotina Bom dia Dia meu! Cavalicoque Lírico Ei-las de volta Tuas moscas E a picada Do moscardo Da angústia E os estalos Da língua E do chicote E o perdão Da mão Em tua doce garupa
NÚPCIAS DO CÉU COM O MAR DA PALHA
Que terá dito ou feito o Céu que o Mar se ruborizou assim? Mas também ele o sobranceiro Céu está em fogo ofegante O sangue desertou de suas veias Apagaram-se Céu e Mar Agora já só são um único incorpóreo e ilimitado corpo Belos adormecidos acordarão nos braços um do outro
(in A Fímbria da Fala, 2002)
Teresa Rita Lopes nasceu em Faro em 1937. Fugindo à polícia política de Salazar, em 1963 teve de se exilar em Paris, onde viveu até a Revolução dos Cravos (1974). É, atualmente, professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde dirige um grupo de pesquisadores que se aplicam, desde 1988, a remexer no famoso “baú” de Fernando Pessoa para identificar e editar os seus 27.354 documentos. O grupo já publicou mais de 20 obras, algumas das quais têm saído no Brasil pela Companhia das Letras.
Individualmente, publicou, sobre Pessoa, entre outras obras, F. Pessoa et le Drame Symboliste – Héritage et Création (La Différence, 2004), Fernando Pessoa et le Théâtre de l’Être (La Différence, 1992) e Pessoa por Conhecer (Ed. Estampa, 1990). Editou vários inéditos de Pessoa, em português e em francês, nomeadamente L’Heure du Diable (José Corti, 2003), Le Privilège des Chemins (José Corti, 2004), Notes en Souvenir de Mon Maître Caeiro (Fischbacher, 1999).
Vem se dedicando também à obra de Miguel Torga: Miguel Torga, Ofícios a um “Deus de Terra”, obteve o Prêmio Unicer – Letras & Letras.
É autora também de sete livros de poemas – Os Dedos os Dias As Palavras (Prêmio Cidade de Lisboa 1987); Por Assim Dizer; Cicatriz (Prêmio Eça de Queirós 1997); Afectos; Jogos; A Nova Descoberta de Timor; A Fímbria da Fala. Uma antologia da sua poesia foi feita em italiano: A Fior di Parole (trad. Giulia Lanciani) e está para ser publicada outra em francês, La Vie en Vers (trad. Catherine Dumas).
Muitas de suas peças teatrais têm sido representadas em Portugal e no exterior, mas só publicou sete. Está no prelo uma edição do seu Teatro Reunido. A peça Esse Tal Alguém recebeu o Grande Prêmio de Teatro da Associação Portuguesa de Escritores 2002. Foi co-diretora da Orion – Revista de Poesia de Língua Portuguesa.