PESCA

Quando o rio se turva,
toda insistência é inútil.
Os peixes procuram o fundo,
os anzóis só encontram enroscos.
O pescador morre de sede
à margem da página.

 

O POÇO

1

O poço não é um buraco com água a céu aberto,
mas cristal líquido, cravado no tijuco cinza.

Cada dia o poço é um e está mudado em outro:
à custa de tanto uso, cada manhã mais novo.

Sempre outra é a dança dos círculos até a borda,
que pouca pedra basta para infinitos movimentos.

A primeira água do poço não serve para o pote,
pois sempre há cisco, insetos ou pele de ferrugem.

Entretanto, o fundo do poço tem belezas de parto:
a mina lança brotos de água e insufla areia fina.

Se à noite chove, o poço turva-se como quem morre.
Não amanhece espelho e sim buraco com água suja.

2

Beber água do poço, direto, sem caneca, exige tento,
pois a concha da mão não basta para quem tem sede.

Um modo elegante de para o poço fazer reverência
é tirar o chapéu e mergulhá-lo, agora mudado em copo.

O suor pode botar gosto de sal na água doce do chapéu,
mas o que refresca a garganta, também a cabeça esfria.

Outro modo, é quando há por perto folhas de inhame.
A água desliza no verde com sua película de prata.

E as gotas, na corda bamba, quais aquáticas bailarinas,
bailam tão puras, que a gente sente pena de bebê-las.

Mais um modo, é como o papa deitar-se de corpo inteiro:
a boca beija a água e, do fundo, outro olho nos enxerga.

Enquanto se engole a água, as costelas roçam o chão.
Não se sabe se o pulsar é dela, terra, ou dele, coração.

(in As Faces do Rio, Água Viva Edições, 1990)

 

BRECHA

            na greta
no risco milimétrico do vinil
no interstício
entre os cílios
na ranhura do segundo
no fio estreito
entre
o desisto o resisto existo
 
ARTE POÉTICA

A língua da vaca
lambe com gosto
o sal do cocho
e se não há mais sal,
a memória do sal
a madeira, o cocho,
até que tudo fique
polido por sua lixa.

A língua da vaca
recolhe com agrado
o restolho mijado
de rato do fundo do paiol
e mói, remói e tritura
o milho e a palha dura,
até que flores de espuma
brotem no canto da boca,
com suave perfume de leite.

A língua da vaca
lambe a cria trêmula,
num banho batismal,
e engole o mosto,
a gosma amniótica,
e a lamberá ainda,
quando quase novilha
exibir a filha
pústulas no lombo.

(in Do Silêncio da Pedra, Arte Pau-Brasil, 1996)



GOLEM

Ficar só não é bom.

Para espantar o tédio,

convém criar um homem

que encene em sua carne

o espetáculo da queda

 
HALO

náusea de corpo transmutado em clone.
multiplicação de músculos, xerox de desejos.
sexo sem alma. sexo sem corpo. sexo sem sexo.
metástase de genitais. sexo em celulóide.
em sépia de anúncios. exasperação dos sentidos.
masturbação metafórica. estilhaçamento de membros.
travestis factories. ejaculação virtual.
proliferação aspermática.
pedaços de carne videoclipizados.
alucinação do barroco.
quimeras que flutuam no ciberespaço.
medusas que fodem os homens com o seu olhar.

(in A Carne e o Tempo, Nankin Editorial, 1997)




ESCOICEADOS

Meu pai e eu
nunca subimos
num alazão
que galopasse
ao vento.
Tínhamos
um burro
cinza-malhado:
o Ligeiro.
Foi apanhado
de um conhecido
por ninharia.
Chegou com fama
de sistemático,
cheio de refugos.
De trote tão curto
que dava dor
nas costelas.
De certa vez,
caímos do burro.
Meu pai e eu.
Eu e meu pai.
Embolados.
Joelhos esfolados
no pedregulho.
Levamos
bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
nunca subimos
na vida.

MAPA

ama o inominado
       o perecível
       o particular
 a coleção de cacos de louça
os arreios e os antolhos das mulas
a caixa de ferramentas do avô
o cavalo baio com o olho cego
a luz do sol sobre as encostas
a dureza das macaúbas
nomeia as coisas que pedem
o nascimento pela palavra
escrita que se transforma
em outra escrita
geografia de migalhas
dicionário pessoal de falas

ditas na labuta concreta
sem reconstituir um mundo
cuida de um retalho:
o fragmento pelo todo
senhor de restolhos e rebotalhos
inventário de perdas
rol de inutilidades
vasos vazios e quebrados

sem esperança sem consolo,
com a paciência de um boi
segue tua trilha de erros:
rastro de palavras
marcas da passagem
serpentear de frases
mapas de dor e descontentamento.

(in Ruminações, Nankin Editorial, 1999)




CISÃO
um corpo que pesa
            feito de pedra e ferro
um corpo espesso
com articulações calcárias
um corpo que se exaure
de tanta dor um corpo muralha
impenetrável
pelo espírito que ronda
sem conseguir habitá-lo MUNDO MUDO
salta, mundo,
        desse caroço
        de pedra
em que estás aprisionado
toda rua termina
em muro
toda palavra representa
uma falha

salta, mundo,
        desse caroço
de pedra
        vence
as camadas de aluvião
        para que aflore
        um grão
        um broto
        um grito
para quem está exausto
        de auscultar teu corpo
ferido
(in Mundo Mudo, Nankin Editorial, 2003)


biobibliografia

Donizete Galvão nasceu em Borda da Mata (MG), em 24 de agosto de 1955. Cursou a Faculdade de Administração de Santa Rita do Sapucaí e Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. É casado com Ana Tereza Marques e tem dois filhos: Bruno e Anna Lívia. Publicou o primeiro livro, Azul Navalha (T.A. Queiroz Editor), em 1988, que lhe rendeu o prêmio de autor revelação da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA) e a indicação para o prestigiado Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro. A esse livro se seguiram: As Faces do Rio, Do Silêncio da Pedra, A Carne e o Tempo, este também indicado para o Jabuti e o Prêmio Ciudad de Madrid em 1998, Ruminações e Mundo Mudo. Em 2002, numa parceria com o poeta Ronald Polito, lançou uma edição especial, de poucos exemplares: Pelo Corpo (Alpharrabio). Além desses trabalhos, tem vários outros publicados em antologias, como Veia Poética (Vertente, 1981), revistas brasileiras e sites. Também figura na Anthologie de la Poésie Brésilienne (Chandegne, Paris, 1998) e em revistas estrangeiras, entre elas a Anto. Revista Semestral de Cultura nº 3, de Amarante, Portugal, 1998, e a Rattapallax, de Nova York, 2003.

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