Rainha da folia
 
 

A cantora Daniela Mercury diz que o Carnaval da Bahia  não édemocrático e conta por que vai obrigar seus dois filhos a andar de ônibus em Salvador.

Às vésperas do Carnaval de Salvador, em que mais uma vez será uma das grandes estrelas da folia, Daniela Mercury, 31 anos, vem enfrentando uma rotina de trabalho tão intensa que contradiz qualquer folclore em relação à propalada preguiça baiana. No equipado estúdio da sua produtora Canto da Cidade instalada em Pituba, um dos bairros nobres da capital, ela ensaia mais de 100 músicas que cantará à frente do seu bloco Crocodilo. Para encarar a maratona, Daniela vara madrugadas fazendo ginástica sob a supervisão de um treinador particular. Famosa pela resistênciaaeróbica, a cantora baiana não quer decepcionar nem colocar água abaixo a conquista que ela e mais um punhado de colegas fizeram ao invadir um terreno tipicamente masculino dos puxadores de trios elétricos. Com a propriedade de quem tem mais de dez anos de Carnaval, nesta entrevista a ISTOÉ ela critica o festejo baiano falando do comportamento nada democrático exercido pelos blocos. "É uma separação por poder econômico", diz, referindo-se à cobrança de mais de R$ 400 por uma abadá, a fantasia que separa os que brincam nos blocos, protegidos por seguranças, do resto do povo. Daniela também lembra de seu início difícil como bailarina, comenta sua atual vida confortável e enfatiza a necessidade de os filhos Gabriel, 11 anos, e Giovana, dez, conhecerem as dificuldades do cotidiano. "Quero que eles peguem ônibus cheio e que façam pela cidade o que eu chamo de roteiro da consciência pelos bairros pobres." Manchete recente dos jornais que a colocaram como pivô da comentada separação de Chico Buarque e Marieta Severo, Daniela mais uma vez, desmente o fato e coloca um ponto final nas fofocas. "Estou num momento muito legal", confessa ela na sua nova experiência de solteira depois de 11 anos de casamento.

ISTOÉ - Como você situa o disco Feijão com arroz na sua carreira. É seu trabalho mais bem acabado, mais sofisticado?
Daniela Mercury - É um disco muito complexo. Dá para perceber isso quando canto as músicas dele ao vivo. São muitos intrumentos de percussão diferentes e para transpor isso para o palco dá um certo trabalho. Quando gravamos, chegamos a ficar três dias mixando uma única canção. Eu acho que o disco vem confirmar uma pesquisa séria que venho fazendo sobre tudo o que aprendi nesses anos todos com o Carnaval, com o trio elétrico, com os ritmos regionais nordestinos. Eu tenho colocado tudo dentro de uma referência de muita qualidade.
ISTOÉ - Você não lê partitura, mas mesmo assim tem um controle completo dos arranjos e da performance dos músicos. Isso é nítido quando se acompanha um de seus ensaios. O que vale nesse caso é a intuição?
Daniela - Às vezes não compreendo como isso acontece e fico meio desconfiada do meu conhecimento. É claro que eu tenho uma vivência muito grande. Ouço música desde menina muito em função da dança. Como bailarina dancei Bach, Villa Lobos Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Egberto Gismonti, Pink Floyd. Para dançar, eu era obrigada a entender de melodia, de cada detalhe rítmico. Na dança, cada gesto é reflexo de um instrumento.
ISTOÉ - Quer dizer que toda essa musicalidade você adquiriu com a dança?
Daniela - Foi. Quando eu me vi como intérprete já tinha eferência de onde vinham aquelas harmonias. Se não entendo algo, pergunto aos músicos. Na verdade, eu tento fazer do meu trabalho um grande laboratório onde cada um dos músicos participa, e muito. Eu arranho o piano e o violão, e me viro muito mal na percussão..
ISTOÉ - A maioria das pessoas coloca você dentro da axé music, enquanto alguns músicos baianos a definem como uma cantora de samba-reggae. Em qual destes rótulos você se encaixa?
Daniela - O samba-reggae é música pop aliada a uma batida que lembra muito o samba de roda. É pop porque é muito fácil para qualquer povo do mundo dançar. Não tem aquela complexidade da maioria dos ritmos africanos, que são cheios de variações de compassos. Então, não faz diferença se eu disser que sou uma sambista pop e falarem que eu faço samba-reggae. Agora esse rótulo de axé foi feito para desmerecer a música daqui. É meio pejorativo, é uma forma de separar a música baiana do resto do País. É claro que tem axé ruim. Mas também tem muito rock e MPB ruins. Não é fácil fazer música no Brasil. A meninada só conhece o que toca na rádio e isso vira uma escravidão para o artista.
ISTOÉ - Salvador continua para você uma fonte inesgotável de ritmos?
Daniela - Foi aqui que eu me achei. O Carnaval é onde todos os ritmos vêm à tona, do samba-reggae passando pelo frevo até o galope, que é uma batida nordestina que está nesse disco na faixa Rapunzel. Eu me alimento com tudo isso. E o fato de eu ter nascido em Salvador me faz uma cidadã da cidade. Eu posso conviver com mais simplicidade com o povo. Posso falar com propriedade dos problemas sociais, das questões raciais. São situações que eu convivo desde menina, quando era bailarina e não ganhava dinheiro. Nunca imaginei que ia virar cantora. Virei cantora por acaso.
ISTOÉ - Quais foram suas principais identificações com a Bahia?
Daniela - Foi a partir da dança que eu me identifiquei com a Bahia. Minha mãe era assistente social, viajava com ela pelo interior do Estado. Na época da seca via gente morta no meio da estrada e essas imagens me comovem até hoje. Além disso, vivi 12 anos cantando em trio elétrico, fiz teatro amador. Toda essa experiência do passado me influencia muito.
ISTOÉ - Você já contou que teve uma vida dura, e hoje desfruta de um grande conforto. Seus filhos têm uma situação Financeira previlégiada. Como é que você faz para educá-los?
Daniela - Eles viveram na dureza até os cinco, seis anos. Eu fazia universidade de manhã, dançava e dava aula de dança à tarde e à noite cantava nos barzinhos. Também cantava na banda do (Gilberto) Gil. Nos fins de semana fazia os trios elétricos e ainda lavava roupa, cozinhava, cuidava dos filhos e da casa em parceria com meu ex-marido, que sempre foi uma pessoa superdedicada. Nos casamos muito cedo, vivemos numa dureza brava, não tínhamos carro. Eu costumava brincar que tivemos filhos cedo porque não tínhamos televisão. Mas eu estava lutando por uma coisa concreta que era dançar, e que me realizava muito. Depois, naturalmente comecei a cantar.
ISTOÉ - E hoje o que você ensina para seus filhos?
Daniela - Eu faço questão de reforçar para as crianças que o importante é que elas construam algo delas. O que eu tenho construí e eu sei como meu dinheiro foi ganho. Então para mim cada coisinha que tenho na minha casa tem um valor imenso. O Gabriel, 11 anos, e a Giovana, dez, são pessoas superdisciplinadas. O Gabriel faz hipismo, é vice-campeão baiano. Eles não levam uma vida luxuosíssima. Obviamente têm acesso a uma série de informações, viajam o mundo todo comigo, mas é importante que eles tenham uma dimensão de como é a vida do País. Eu já preparei para eles uma turnê de ônibus por Salvador. Eles vão pegar ônibus apertado, vão conhecer a cidade onde vivem. Até já arrumei um nome para isso. Chama-se roteiro da consciência pelos bairros pobres.
ISTOÉ - Você é muito religiosa. Tem algum guru, alguém que recorra nas horas difíceis?
Daniela - Tenho alguns padres que são meus amigos, são pessoas inteligentíssimas com quem eu converso sempre. Também tem a mãe Cleusa, que é importantíssima no candomblé da Bahia. Independentemente do posto que ela ocupa é uma pessoa muito sensível, e como mulheres nós trocamos muitas idéias. O candomblé já é aceito como religião e isso só fortalece a relação do baiano com Deus. Eu acredito em Deus e tenho a oração como algo que me reforça muito para encarar as provações da vida, porque eu acho a vida cruel. Eu não sou romântica em relação à vida, embora conserve essa alegria comum a todos os baianos.
ISTOÉ - Às vezes essa alegria é mal interpretada. Há quem critique alguns fenômenos baianos como É o Tchan, por exemplo. O que você acha da Carla Perez? Dizem que ela passa uma idéia de sensualidade muito precoce para as crianças.
Daniela - Eu acho isso uma bobagem. E o que a televisão mostra às sete da noite? Quer saber, eu acho até o short dela decente demais, grande demais em relação aos biquínis que são usados por aí. Além disso, ela é uma pessoa muito doce, simpática, que está vivendo o momento dela. A mídia a está colocando lá no alto e ela está aproveitando. Eu acho muito difícil alguém abrir mão de seu reinado. Eu sei como é isso. Não me elegeram a rainha do axé? Nós temos a sensualidade à flor da pele. A mulher brasileira está sempre com um vestido curtinho. Afinal, temos um litoral maravilhoso que contribui para essa imagem. Mas eu não gosto de ver a mulher brasileira depreciada fora do País. Porque parece que a mulher brasileira é prostituta. Se existe turismo sexual no Brasil é uma consequência da miséria, da pobreza e da impunidade.
ISTOÉ - O Carnaval da Bahia ésem dúvida mais aberto e participativo que o carioca. Mas mesmo assim existem restrições. Os blocos chegam a cobrar mais de R$ 400 por uma fantasia. Isso é democrático?
Daniela - Eu até fiz uma música com o Carlinhos Brown que questionava isso. Sem dúvida é um fator de exclusão. Eu puxo o bloco Crocodilo. Todos os blocos têm uma corda para separar os participantes do resto das pessoas. Eu me pergunto: se não for assim, como trazer os trios elétricos, como patrocinar os artistas? Até os blocos afros fazem isso, eles precisam vender suas fantasias, mesmo que sejam mais baratas. Mas eu acho que o Carnaval da Bahia não é democrático. Eu tenho 11 anos de trio elétrico, subi pela primeira vez num trio em 1986 e cantei num bloco bem fuleirinho. Nessa época havia uma separação entre os blocos de classe média e os afros. Até os horários eram diferentes. Essa separação por poder econômico continua viva. Além disso, os donos dos blocos lotearam a avenida e definem tudo. Nós artistas estamos submetidos à vontade desses donos de blocos. Mas acima de qualquer questionamento eu amo muito o Carnaval da Bahia.
ISTOÉ - Como é enfrentar essa maratona de trios?
Daniela - É desumano. Eu fico de oito a nove horas em cima do trio elétrico. É muito puxado para a voz. Acho que cinco horas seriam o ideal, até num trajeto mais longo em que o trio pudesse andar numa velocidade agradável. Daria para fazer um trabalho de mais qualidade. Acho que é preciso diminuir esse tempo, mas nunca ninguém da organização pediu minha opinião.
ISTOÉ - Quantas músicas você está ensaiando para o Carnaval?
Daniela - Mais de 100, porque não gosto de repetir. É preciso dispor de vários ritmos. Somos como maestros da multidão. Às vezes quando a excitação aumenta muito, e entramos num lugar apertado, que pode representar algum perigo, eu canto uma música mais lenta para acalmar. E ainda há o problema dos fios de alta tensão. Pelo amor de Deus, como seria bom que a prefeitura desse um jeito nisso. Eu fico rezando para não ser eletrocutada. No meu trio levo dois homens do meu lado só para levantar os fios.
ISTOÉ - Como você se prepara fisicamente?
Daniela - Eu tenho um treinador pessoal. Como estou acostumada a dormir tarde, faço ginástica de madrugada, até as três da manhã, depois capoto na cama. Meu treinador disse que eu tenho preparo físico de um atleta, daqueles que disputam corridas. Eu perco em média três quilos por dia de Carnaval e quase sempre acabo com problemas musculares. Mas não posso reclamar. Meu peso é o mesmo há 15 anos, 55 quilos em 1,62m.
ISTOÉ - Você já foi discriminada entre os puxadores de trio elétrico?
Daniela - Não queriam que mulher cantasse em trio. Sofri um preconceito absurdo e briguei demais por este espaço. Fui uma das pioneiras junto com a Márcia Freire e a Margareth Menezes. Cheguei a ameaçar os diretores de bloco e dizer: ou eu seguro isso aqui sozinha ou estou fora. Eles ficavam enchendo o saco, pedindo para eu dar chance aos cantores homens e eu não dava. Achavam que ninguém ia aguentar dez horas ouvindo a voz esganiçada de uma mulher. Então nós pegamos uma manha, inventamos uma forma de cantar grosso. Quando estou no trio, faço uma voz bem mais grave.
ISTOÉ - Você tem uma visão muito crítica do Carnaval da Bahia. Nunca pensou em ter uma atuação volítica mais forte?
Daniela - Não mesmo. Eu quero ter um afastamento político para poder ficar sempre ao lado da comunidade. Não quero saber de ligações partidárias, nunca faria isso. Eu vou usar o Carnaval deste ano para me engajar na luta contra a Aids e defender a candidatura do Rio de Janeiro para as Olimpíadas de 2004.
ISTOÉ - O Carlinhos Brown tem uma atividade muito engajada junto à comunidade do bairro dele?
Daniela - O Brown foi um excluído. Viveu dificuldades seriíssimas e é lindo como ele busca vínculos com a comunidade, como ele conseguiu espaço e respeito.
ISTOÉ - O que você acha da atuação do senador Antônio Carlos Magalhães?
Daniela - Temos algo muito importante em comum. Eu gosto da Bahia e o ACM também gosta muito.
ISTOÉ - Você tem alguma diferença ideológica com ele?
Daniela - (Silêncio total.)
ISTOÉ - Como está sua vida sentimental?
Daniela - Foram 11 anos de casamento, casei muito cedo e agora vou ter que ajeitar minha vida sozinha. Vou voltar ao começo. Estou num momento muito legal. É ótimo começar a entender as coisas de outra forma. Meu ex-marido, o Zalther (Povoas), sempre foi muito importante. Num certo momento ele abdicou da profissão dele de engenheiro eletrônico para administrar minha produtora e deu muito certo. Ele me ajudou demais, mas agora voltou ao seu caminho. É um empresário muito bem-sucedido na área de telefonia.
ISTOÉ - Recentemente você foi apontada como o pivô da separação de Chico Buarque e Marieta Severo. O que realmente aconteceu?
Daniela - Eu já desmenti isso. Foi uma leviandade o que fizeram, uma irresponsabilidade que causou um grande tumulto na minha vida e na vida dos dois. Foi desagradável demais. Foi uma inconsequência que não fez bem para ninguém. E não quero mais falar sobre isso.

                                                                                                                         Celso Fonseca
 

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