Vamos encontrar a cantora e compositora Daniela Mercury,
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FOLHA - Em função da agenda (apertadíssima)
de Emilio Estefan, que deveria produzir todo o disco, mas acabou produzindo
apenas duas faixas, o CD demorou a sair. Isso, no entanto, fez com que
Ilê pérola negra estourasse antes do lançamento, mudando
a atual estratégia fonográfica. Foi bom?
DANIELA MERCURY - Foi. Inclusive, o processo deveria ser sempre
assim. Já tive uma canção (À primeira vista,
de Chico César) que, por ter entrado numa novela, saiu bem primeiro
do que o disco (Feijão com arroz). E não era uma canção
dançante de Verão. Eu não me preocupei muito agora
porque o disco não está restrito ao Carnaval. Meus discos,
de modo geral, não são restritos ao Carnaval. Mesmo porque,
eles já não dependem tanto de Salvador.
F - Dá mais liberdade artística poder se desvencilhar
de uma estação festiva do ano e, mesmo, de um mercado regional?
DM - É natural que uma música nascida em Salvador
tenha a sua base lá, claro. Mas, com o tempo, você vai vendo
que é possível fazer as coisas de outras formas. Essa liberdade
é boa. Aprendi uma coisa: não faço mais discos pressionada
por tempo. Lógico que você deve objetivar um prazo, senão
sempre você vai querer estar mudando algo o tempo todo. Mas já
adiei lançamentos porque não estava satisfeita, achava que
o repertório não estava adequado. E repertório é
algo essencial.
F - Você começou regional, conquistou o Brasil
e, há quatro anos, vem tornando-se cada vez mais internacional.
Inclusive, vendendo bem em alguns países da Europa. Como virar uma
artista pop global sem perder o feeling com as raízes?
DM - A Bahia talvez seja o lugar mais difícil para manter
esse feeling. A Bahia é muito exigente, com características
únicas e com muitos artistas que sabem fazer música do tipo
que o povo gosta. Desde cedo, eu não quis me restringir ao universo
carnavalesco. Não desmerecendo, mas porque ele não me realizava.
Comecei a carreira num tempo em que todo mundo cantava como banda de baile,
ninguém arriscava nada. Achava aquilo muito chato, todos cantando
o mesmo repertório, sem valorizar as diferenças. Eu briguei
muito pelo meu espaço. Sei que, diferentemente de trio independente,
se você sai dentro de um bloco a liberdade de cantar qualquer coisa
fica limitada. Mesmo assim, implantei uma cultura de repertório
dentro do Crocodilo, de que eles respeitem o que coloco para o bloco. Acho
muito louco essa ditadura do público (risos).
F - Fale mais sobre essa ditadura...
DM - Acho que o público está aí para o
artista propor coisas para ele e não, o inverso. No mínimo,
interagir. Ficou doido essa coisa de que o que vem do povo é o que
toca no rádio e o que toca no rádio é o que vem do
povo. E as rádios, não propõem nada? Não tem
que ser necessariamente desse jeito. O papel de quem está ligado
à mídia não é esperar que o público
sempre dite o que quer, mesmo que em Salvador, às vezes, surjam
coisas inesperadas. Como foi o próprio samba reggae.
F - Num momento de reacomodação mercadológica
para a axé music, como o atual, qual um possível exemplo
de Sol da liberdade para a cena baiana?
DM - Fiz um disco para a Bahia, que está muito fechada
em algumas coisas. Talvez, ainda muito vinculada ao Carnaval. Mesmo após
já ter proposto várias coisas, ainda não sei - na
verdade, é mais uma dúvida do que uma certeza - direito como
o baiano me vê, o que o povo espera de mim. Quer uma cantora de Carnaval
também no disco ou aceita as minhas propostas, o meu estilo? Já
podia até estar mais tranqüila com isso, acho. Em termos de
disco, claro, porque na avenida, é diferente, tenho propriedade
carnavalesca para isso.
F - Engraçado, parece um tipo de insegurança a
serviço de uma ambição artística...
DM - Não suporto repetir o que já fiz. No caso
de Ilê pérola negra, por exemplo, aconteceu de ela ter sido
produzida por Emilio Estefan. Para ele, o samba reggae é algo muito
novo. Além do mais, a música me encantou, foi inevitável.
Mesmo assim, Emilio deu um toque meio cubano. Foi ótimo trabalhar
com ele, que é um cara com um background incrível. Adorei
saber que ele e Gloria têm todos os meus discos.
F - Você usou alguns elementos da linguagem eletrônica
no disco e ousou botar um trio techno no Carnaval baiano. Como surgiu o
interesse pela música eletrônica?
DM - Acompanho as Love Parade(s) - maior rave do mundo, que
acontece em julho, em Berlim - há muito tempo. Fui ficando fascinada
pelo modo dos DJs trabalharem, vendo o que gostava ou não naquilo.
Fiz umas experiências em casa e propus a novidade para a minha banda.
Quanto ao Carnaval, foi uma aventura tão espetacular que me sinto
renovada até hoje. Não foi ou é melhor do que o habitual
no Carnavalbaiano, é diferente. Os artistas baianos podiam ousar
mais. É um erro que alguns empresários e produtores queiram
que os seus artistas e grupos façam sempre a mesma coisa. Ficam
tão na mesmice que não enxergam a possibilidade dos artistas
serem mais importantes do que realmente são. Não deixam que
eles tentem coisas novas, se arrisquem. Por isso é que a liberdade
é essencial. Nesta hora em que estão duvidando se a axé
music vai ficar ou vai passar, é que é preciso mostrar -
com qualidade, inovação - que o axé será a
nossa contribuição para o legado da música popular
brasileira. E sem risco não há avanço. Quando a música
é bela ela toca qualquer público. Para a gente chegar até
aqui, ninguém teve medo de nada e ralou muito.