A Pérola Branca do Axé



 
 


 

Vamos encontrar a cantora e compositora Daniela Mercury,
34 anos, num final de tarde paulistano no Salão Xingu, subsolo do imponente Hotel Maksoud Plaza, onde desde a manhã ela recebe jornalistas de todo o país em torno do seu novo álbum, Sol da liberdade, produção de "quase R$1 milhão" que marca
a sua estréia na gravadora BMG. Lá fora, o céu nublado prenuncia a tradicional garoa sobre o estressante trânsito de 
São Paulo. Um clima que não condiz com o nome do CD e o astral de Daniela, co-produtora do trabalho ao lado de Emilio Estefan Jr (marido da pop-star Gloria Estefan e midas da invasão pop latina nos EUA), Juan Vicente Zambrano (parceiro de Emilio), Will Mowat (suíço-inglês revelado no Soul II Soul) e Andres Levin (venezuelano radicado nos EUA colaborador de Arto Lindsay).

 

A Daniela Mercury que nos recebe para uma exclusiva de 40 minutos (e uma coletiva para 30 repórteres ainda à espera) guarda pouco daquela garota - vacilante - que lançou seu primeiro disco-solo em 1991 (do hit Suingue da cor), após ter abandonado a dança e estreado profissionalmente no Carnaval de 1986, cantando num trio elétrico. Entre aquela iniciante e a cantora de hoje, temos a melhor intérprete da geração axé, profissionalíssima e segura da sua arte e do papel que representa para a musicalidade pop gerada na Bahia a partir da criação do samba reggae (sem esquecer os pioneiros), com cerca de cinco milhões de discos vendidos (entre o Brasil e o exterior) e credibilidade da crítica (conquistada com Feijão com arroz/1996).
Algo porém parece não ter mudado em Daniela Mercury - o espírito de superação. E sucesso para ela não significa ostentação banal ou acomodação através de fórmulas repetitivas. "O meu critério não é o sucesso por si só. Vários sucessos já passaram pelas minhas mãos e outras pessoas gravaram, mas eu não os quis. Não senti tesão pelas canções. Preciso de algo que me realize, que a música me encante, porque eu não sou um instrumento de ganhar dinheiro. Vou cantar algo que não gosto? Não tenho uma cara-de-pau tão grande assim", afirma sorrindo. Sol da liberdade, que conta com participações especiais de Milton Nascimento, Angelique Kidjo (cantora africana radicada em Paris) e Dominguinhos, sai com 500 mil cópias vendidas antecipadamente e bem planejada estratégia de chegada ao mercado internacional, devendo contar com versões em espanhol e inglês de várias faixas. Entre maio e junho, Daniela Mercury estréia o show Sol da liberdade no Brasil. Não faltará o atual flerte da cantora com a música eletrônica (aliás, responsável pelo momento mais cool do Carnaval baiano nos últimos anos - o trio techno). Em seguida, o show passará pela Europa (julho, com um possível trio techno na Love Parede, em Berlim), EUA (setembro) e América Latina.

  FOLHA - Em função da agenda (apertadíssima) de Emilio Estefan, que deveria produzir todo o disco, mas acabou produzindo apenas duas faixas, o CD demorou a sair. Isso, no entanto, fez com que Ilê pérola negra estourasse antes do lançamento, mudando a atual estratégia fonográfica. Foi bom?
DANIELA MERCURY - Foi. Inclusive, o processo deveria ser sempre assim. Já tive uma canção (À primeira vista, de Chico César) que, por ter entrado numa novela, saiu bem primeiro do que o disco (Feijão com arroz). E não era uma canção dançante de Verão. Eu não me preocupei muito agora porque o disco não está restrito ao Carnaval. Meus discos, de modo geral, não são restritos ao Carnaval. Mesmo porque, eles já não dependem tanto de Salvador.
F - Dá mais liberdade artística poder se desvencilhar de uma estação festiva do ano e, mesmo, de um mercado regional?
DM - É natural que uma música nascida em Salvador tenha a sua base lá, claro. Mas, com o tempo, você vai vendo que é possível fazer as coisas de outras formas. Essa liberdade é boa. Aprendi uma coisa: não faço mais discos pressionada por tempo. Lógico que você deve objetivar um prazo, senão sempre você vai querer estar mudando algo o tempo todo. Mas já adiei lançamentos porque não estava satisfeita, achava que o repertório não estava adequado. E repertório é algo essencial.
F - Você começou regional, conquistou o Brasil e, há quatro anos, vem tornando-se cada vez mais internacional. Inclusive, vendendo bem em alguns países da Europa. Como virar uma artista pop global sem perder o feeling com as raízes?
DM - A Bahia talvez seja o lugar mais difícil para manter esse feeling. A Bahia é muito exigente, com características únicas e com muitos artistas que sabem fazer música do tipo que o povo gosta. Desde cedo, eu não quis me restringir ao universo carnavalesco. Não desmerecendo, mas porque ele não me realizava. Comecei a carreira num tempo em que todo mundo cantava como banda de baile, ninguém arriscava nada. Achava aquilo muito chato, todos cantando o mesmo repertório, sem valorizar as diferenças. Eu briguei muito pelo meu espaço. Sei que, diferentemente de trio independente, se você sai dentro de um bloco a liberdade de cantar qualquer coisa fica limitada. Mesmo assim, implantei uma cultura de repertório dentro do Crocodilo, de que eles respeitem o que coloco para o bloco. Acho muito louco essa ditadura do público (risos).
F - Fale mais sobre essa ditadura...
DM - Acho que o público está aí para o artista propor coisas para ele e não, o inverso. No mínimo, interagir. Ficou doido essa coisa de que o que vem do povo é o que toca no rádio e o que toca no rádio é o que vem do povo. E as rádios, não propõem nada? Não tem que ser necessariamente desse jeito. O papel de quem está ligado à mídia não é esperar que o público sempre dite o que quer, mesmo que em Salvador, às vezes, surjam coisas inesperadas. Como foi o próprio samba reggae.
F - Num momento de reacomodação mercadológica para a axé music, como o atual, qual um possível exemplo de Sol da liberdade para a cena baiana?
DM - Fiz um disco para a Bahia, que está muito fechada em algumas coisas. Talvez, ainda muito vinculada ao Carnaval. Mesmo após já ter proposto várias coisas, ainda não sei - na verdade, é mais uma dúvida do que uma certeza - direito como o baiano me vê, o que o povo espera de mim. Quer uma cantora de Carnaval também no disco ou aceita as minhas propostas, o meu estilo? Já podia até estar mais tranqüila com isso, acho. Em termos de disco, claro, porque na avenida, é diferente, tenho propriedade carnavalesca para isso.
F - Engraçado, parece um tipo de insegurança a serviço de uma ambição artística...
DM - Não suporto repetir o que já fiz. No caso de Ilê pérola negra, por exemplo, aconteceu de ela ter sido produzida por Emilio Estefan. Para ele, o samba reggae é algo muito novo. Além do mais, a música me encantou, foi inevitável. Mesmo assim, Emilio deu um toque meio cubano. Foi ótimo trabalhar com ele, que é um cara com um background incrível. Adorei saber que ele e Gloria têm todos os meus discos.
F - Você usou alguns elementos da linguagem eletrônica no disco e ousou botar um trio techno no Carnaval baiano. Como surgiu o interesse pela música eletrônica?
DM - Acompanho as Love Parade(s) - maior rave do mundo, que acontece em julho, em Berlim - há muito tempo. Fui ficando fascinada pelo modo dos DJs trabalharem, vendo o que gostava ou não naquilo. Fiz umas experiências em casa e propus a novidade para a minha banda. Quanto ao Carnaval, foi uma aventura tão espetacular que me sinto renovada até hoje. Não foi ou é melhor do que o habitual no Carnavalbaiano, é diferente. Os artistas baianos podiam ousar mais. É um erro que alguns empresários e produtores queiram que os seus artistas e grupos façam sempre a mesma coisa. Ficam tão na mesmice que não enxergam a possibilidade dos artistas serem mais importantes do que realmente são. Não deixam que eles tentem coisas novas, se arrisquem. Por isso é que a liberdade é essencial. Nesta hora em que estão duvidando se a axé music vai ficar ou vai passar, é que é preciso mostrar - com qualidade, inovação - que o axé será a nossa contribuição para o legado da música popular brasileira. E sem risco não há avanço. Quando a música é bela ela toca qualquer público. Para a gente chegar até aqui, ninguém teve medo de nada e ralou muito.

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