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Shelley sem anjos e sem pureza,
aqui estou à tua espera nesta praça,
onde não há pombos mansos mas tristeza
e uma fonte por onde a água já não passa.

Das árvores não te falo pois estão nuas;
das casas não vale a pena porque estão
gastas pelo relógio e pelas luas
e pelos olhos de quem espera em vão.

De mim podia falar-te,mas não sei
que dizer-te desta história de maneira
que te pareça natural a minha voz.

Só sei que passo aqui a tarde inteira
tecendo estes versos e a noite
que te há-de trazer e nos há-de de deixar sós

de As Mãos e os Frutos

 

As Mãos

Que tristeza tão inútil essas mãos
que nem sequer são flores
que se dêem:
abertas são apenas abandono,
fechadas são pálpebras imensas
carregadas de sono.

de Os Amantes Sem Dinheiro

 

Adeus

Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;
como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.

Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.

Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.

de As Palavras Interditas

 

Urgentemente

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

de Até Amanhã

 

Pequena elegia de setembro

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

de Coração de Dia

 

Que diremos ainda?

Vê como de súbito o céu se fecha
sobre dunas e barcos,
e cada um de nós se volta e fixa
os olhos um no outro,
e como deles devagar escorre
a última luz sobre as areias.

Que diremos ainda? Serão palavras,
isto que aflora aos lábios?
Palavras?,este rumor tão leve
que ouvimos o dia desprender-se?
Palavras,ou luz ainda?

Palavras,não.Quem as sabia?
Foi apenas lembrança doutra luz.
Nem luz seria,apenas outro olhar.

de Mar de Setembro

 

Cristalizações

1.
Com palavras amo.

2.
Inclina-te como a rosa
só quando o vento passe.

3.
Despe-te
como o orvalho
na concha da manhã.

4.
Ama
como o rio sobe os últimos degraus
ao encontro do seu leito.

5.
Como podemos florir
ao peso de tanta luz?

6.
Estou de passagem: ama o efémero.

7.
Onde espero morrer
será amanhã ainda?

de Ostinato Rigore

 

Casa na chuva

A chuva,outra vez a chuva sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
se minha mãe já se foi embora,
já não vem à varanda para a ver cair,
já não levanta os olhos da costura
para perguntar:Ouves?
Oiço,mãe,é outra vez a chuva,
a chuva sobre o teu rosto.

de Escrita da Terra

 

Desde a aurora

Como um sol de polpa escura
para levar à boca,
eis as mãos:
procuram-te desde o chão,

entre os veios do sono
e da memória procuram-te:
à vertigem do ar
abrem as portas:

vai entrar o vento ou o violento
aroma de uma candeia,
e subitamente a ferida
recomeça a sangrar:

é tempo de colher: a noite
iluminou-se bago a bago:vais surgir
para beber de um trago
como um grito contra o muro.

Sou eu,desde a aurora,
eu-a terra-que te procuro.

de Obscuro Domínio

 

Três ou quatro sílabas

Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.

É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas

Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.

de Véspera da Água

 

II

O muro é branco
e bruscamente
sobre o branco do muro cai a noite.

Há uma cavalo próximo do silêncio,
uma pedra fria sobre a boca,
pedra cega de sono.

Amar-te-ia se viesses agora
ou inclinasses
o teu rosto sobre o meu tão puro
e tão perdido,
ó vida.


III

Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula.Ignorada.

Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.

Do fundo do tempo,
martelava.
contra o muro.

Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.

de Matéria Solar

 

Oiço correr a noite pelos sulcos
do rosto-dir-se-ia que me chama,
que subitamente me acaricia,
a mim,que nem sequer sei ainda
como juntar as sílabas do silêncio
e sobre elas adormecer.

de O Peso Da Sombra

 

Ignoro o que seja a flor da água
mas conheço o seu aroma:
depois das primeiras chuvas
sobe ao terraço,

entra nu pela varanda,
o corpo inda molhado
procura o nosso corpo e começa a tremer:
então é como se na sua boca

um resto de imortalidade
nos fosse dado a beber,
e toda a música da terra,
toda a música do céu fosse nossa,

até ao fim do mundo,
até amanhecer.


de Branco No Branco

 

O Sorriso

Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro,apetecia
entrar nele,tirar a roupa,ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr,navegar,morrer naquele sorriso.

de O Outro Nome da Terra

 

Mulheres de preto

Há muito que são velhas,vestidas
de preto até à alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome?Ninguém
pergunta,ninguém responde.
A língua,pedra também.

de Rente ao Dizer

 

A Sílaba

Toda a manhã procurei uma sílaba.
É pouca coisa,é certo:uma vogal,
uma consoante,quase nada.
Mas faz-me falta.Só eu sei
a falta que me faz.
Por isso a procurava com obstinação.
Só ela me podia defender
do frio de janeiro,da estiagem
do verão.Uma sílaba.
Uma única sílaba.
A salvação.

de Ofício de Paciência

 

Não sei

Não sei porque diabo escolheste
janeiro para morrer: a terra
está tão fria.
É muito tarde para as lentas
narrativas do coração,
o vento continua
a tarefa das folhas:
cobre o chão de esquecimento.
Eu sei:tu querias durar.
Pelo menos durar tanto como o tronco
da oliveira que teu avô
tinha no quintal.Paciência,
querido,também Mozart morreu.
Só a morte é imortal.

de O Sal da Língua

 

O amigo

Não voltará - o que dele me ficou
é como no inverno entre cortinas
de chuva um tímido fio de sol:
ilumina mas não aquece as mãos.

de Pequeno Formato

 

Há dias

Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.

de Os lugares de Lume

 

Eugénio de Andrade

 

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