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Ode para ler no cárcere

Sento-me- hoje e sempre
à mesma mesa.

Diz um teu amigo que
tu faltas- e eu não acredito.

Quando vou pelas ruas por aonde
nós andámos juntos,

Quando leio os jornais e os livros,

Quando paro em qualquer parte, atraído
por qualquer coisa que igualmente te encantava,

Quando me deito só e penso em ti,
quando misturo ao que digo palavras tuas,
quando me lembro da frialdade das paredes
que te cercam,

Quando me arrependo
das vezes em que não soube
evitar-te as lágrimas,

Quando sei mais algumas
razões da tua tristeza,

Quando leio os teus versos, sem comoção,
à espera em mim
dum lugar mais puro
para eles,

Quando me convenço de que isto
é mentira:
esta dolorosa Primavera,
que chega, estamos tu ausente,
este ar que pica os pulmões e a vista,
que multiplica as folhas e os versos,
que traz cá para fora
as formosas, e simples, e felizes
coisas de que tu gostas,

Quando me deixo possuir
por qualquer desejo insatisfeito
e distingo, na rua,
a pessoa mais jovem,

Quando à cabeça e ao coração me sobem
as tuas esperanças no futuro,
tua necessidade de amizade,
tua verdadeira confiança
no Amor,

Quando, pendurado pelo arame
farpado do egoísmo,
por ele desço se te ouço
dizendo que acreditas
na água,

Quando vejo na face dos amigos,
nos olhos das crianças,
nas reproduções
dos pintores que tu amas,
dividida e presente
a tua face,

Quando me dizem que
a Primavera, que chegou,
não perguntou por ti,
não te visita na prisão,
não te leva "os cravos roxos para o teu amor",

Quando reconcilio teus olhos com os meus
e a luz, assim aumentada, é maior,
é capaz de atravessar
a noite e o cárcere,

Quando te sinto à minha volta,
quente e lúcido, generoso e triste, abandonado e bom...

Não acredito, ah, não acredito
que os teus olhos já não sejam
a passagem para o Sol!

 

Amiúde


No vale dos afectos
ninguém está seguro:
Mingua a lembrança
esquece-se o rosto,
retorna-se ao eu,
os lábios secam,as palavras dormem,os sonhos dispersam-se a presença
ausenta-se,há o lago de que não se vê o fundo-
E apenas as pequenas ilusões
-um café,o cigarro,a limonada-
imitam dois corações unidos...

 

Isso até me agrada. Que me deitem fora
Que me deixem livre de compromissos afectivos.
Ficar ligeiro por dentro; ser como casca só.
Não tropeçar nos detritos humanos
Que me cercam,
Não ter altivez nenhuma nisso.
Ser simplesmente um andante.
Ter o caminho livre.

 

Raul de Carvalho

 

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