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Serradura

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante ,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la,a mona ,lá está,
Estendida ,a perna traçada ,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada .

Pois é assim:a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés,pede um bock,
Lê o "Matin" de castigo ,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo!

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa ,mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da "Capital"
Pelo o nosso Júlio Dantas -
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual …

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!…

Qualquer dia ,pela certa ,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate ,
Se encontra uma porta aberta…

Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
-P´ra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil -partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar "Viva a Alemanha"…
Mas a minha Alma,em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade.

Vou deixá-la-decidido-
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um final mais raffiné.

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que,desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Além-Tédio

Nada me espira já,nada me vive-
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera ,enfim d'alma esquecida,
Dormir em paz num leito d'hospital...
Cansei dentro de mim,cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo,fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti.Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu...Tudo era igual:
A quimera,cingida,era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio,a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo,endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que ,de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes,mais esguios...

Último Soneto

Que rosas fugitivas foste ali:
Requeriam-te os tapetes – e vieste...
– Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste –
Como fui de percal quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço –
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava...

E fugiste... Que importa ? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste
Onde a minha saudade a Cor se trava?...

Crise Lamentável

Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou – mas de poder tocar-lhe...
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.

Viver em casa como toda a gente
Não ter juízo nos meus livros – mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente.

Não Ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas –
À minha Torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra, e não fazer mais cenas.

Ter força um dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai.
– Não mandar telegramas ao meu Pai,
– Não andar por Paris, como ando, às moscas.

Levantar-me e sair – não precisar
De hora e meia antes de vir prà rua.
– Pôr termo a isto de viver na lua,
– Perder a frousse das correntes de ar.

Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento –
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento

Que tudo em é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete
Por meu Azar ou minha Zoina suada...

 

Mário de Sá-Carneiro

 

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