O céu Assoam-se-me à alma,quem Retrato A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo. Sem outro intuito Atirávamos pedras O tímpano e a pupila Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora Virgínia Embora o sol fosse alto ainda, àquela hora Teatro Na selva dos meus órgãos,sobre a qual foi desde sempre a pele o firmamento,ao coração coube o papel de rei da criação. Ignoro de que peça é todo este meu corpo a encenação perversa,onde se vê o sangue rebentar contra os rochedos. Do inferno,aonde às vezes o sol vai buscar as chamas,sobre ele impediosamente jorram os projectores. O abismo Com a sua pele de poço,pele comprometida com o medo que no fundo fede e a que,digamos,toda ela adere de uma forma resoluta,dir-se-ia que se engancha,se pendura,o branco da memória a alastrar pelo corpo,um branco tão branco como o das noites em branco e sobre o qual a idade,exorbitada,hiante,se insinua,pensos,ligaduras,impregnados de memória,uma memória onde fulgura a lava dos sentidos que entram em actividade e lhe disputam os dias idos,assim ergue a balança,onde sustém o abismo. A noite veio de dentro, começou a surgir do interior de cada um dos objectos e a envolvê--los no seu halo negro. Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias entranhas, quase que assobiavam ao cruzar--nos os poros. Seriam uam duas ou três da tarde e nós sentíamo--las crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a perspectiva, as trevas bifurcavam--na: daí a sensação de que, apesar de a noite também se desprender das coisas, havia nela algo de essencialmente humano, visceral. Como instantes exteriores que procurassem integrar--se na trama do tempo, sucediam--se os relâmpagos: era a luz da tarde, num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz e, após complicadíssimos processos, imprimiam--se nos olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo a treva nasalada. Cravava cuidadosamente um prego na parede, quando pressentiu que, como água dum cano que se rompesse, o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância na aparência cristalina mas em cujo seio as formas do presente se diluiriam todas, como se, com os seus contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol se deslocasse, por pouco que fosse, do presente para o futuro, se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si uma cicatriz imensa. Um rio extravasou--me da memória, a que o mantinham preso as forças do passado. Nas suas margens, o meu corpo divide--se entre a História e a atmosfera, tomando assim o peso à realidade que através de todos os meus poros se procura incorporar na marcha dos sentidos. Alguma coisa nele toma por transporte a luz, outra as metáforas que cuidadosamente vou tentando encaminhar para um terreno mais seguro. Um pão aguarda entre os escombros que a solidão venha devorá--lo. Sei que existe algures um espelho onde a imagem do meu rosto incorpora a eternidade, mas os olhos de que por enquanto vou dispondo não me permitem vislumbrá--lo. Parece trepidar a toda a minha volta um mecanismo de que a História fosse o combustível. Da memória abro veredas para as partes do meu corpo mais expostas à devastação das águas.
Luís Miguel Nava
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