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O céu

Assoam-se-me à alma,quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.

Retrato

A pele era o que de mais solitário havia no seu corpo.
Há quem, tendo--a metida
num cofre até às mais fundas raízes,
simule não ter pele, quando
de facto ela não está
senão um pouco atrasada em relação ao coração.
Com ele porém não era assim.
A pele ia imitando o céu como podia.
Pequena, solitária, era uma pele metida
consigo mesma e que servia
de poço, onde além de água ele procurara protecção.

Sem outro intuito

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

O tímpano e a pupila

Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos
se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora

que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora

que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,

mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.

Virgínia

Embora o sol fosse alto ainda, àquela hora
já dali desertara, as sombras iam
saindo aos poucos de debaixo dos armários.
De vez em quando as mãos, completamente absortas,
detinham-se no ferro, sobre a tábua, ao lado
do gigo agora esvaziado e dos pesados
tabuleiros de verga, onde se erguia a roupa.
Tornavam-se mais nítidos, assim, os seus
contornos recortados contra a luz.
Dali podia-se avistar o mundo inteiro.
Ao longo dos telhados, por onde um ou outro gato
corria atrás das pombas, oscilava
ligeiramente a corda, onde a cidade, o céu
e os montes pareciam pendurados.

Teatro

Na selva dos meus órgãos,sobre a qual foi desde sempre a pele o firmamento,ao coração coube o papel de rei da criação. Ignoro de que peça é todo este meu corpo a encenação perversa,onde se vê o sangue rebentar contra os rochedos. Do inferno,aonde às vezes o sol vai buscar as chamas,sobre ele impediosamente jorram os projectores.

O abismo

Com a sua pele de poço,pele comprometida com o medo que no fundo fede e a que,digamos,toda ela adere de uma forma resoluta,dir-se-ia que se engancha,se pendura,o branco da memória a alastrar pelo corpo,um branco tão branco como o das noites em branco e sobre o qual a idade,exorbitada,hiante,se insinua,pensos,ligaduras,impregnados de memória,uma memória onde fulgura a lava dos sentidos que entram em actividade e lhe disputam os dias idos,assim ergue a balança,onde sustém o abismo.


A noite

A noite veio de dentro, começou a surgir do interior de cada um dos objectos e a envolvê--los no seu halo negro. Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias entranhas, quase que assobiavam ao cruzar--nos os poros. Seriam uam duas ou três da tarde e nós sentíamo--las crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a perspectiva, as trevas bifurcavam--na: daí a sensação de que, apesar de a noite também se desprender das coisas, havia nela algo de essencialmente humano, visceral. Como instantes exteriores que procurassem integrar--se na trama do tempo, sucediam--se os relâmpagos: era a luz da tarde, num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz e, após complicadíssimos processos, imprimiam--se nos olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo a treva nasalada.


Um Prego

Cravava cuidadosamente um prego na parede, quando pressentiu que, como água dum cano que se rompesse, o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância na aparência cristalina mas em cujo seio as formas do presente se diluiriam todas, como se, com os seus contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol se deslocasse, por pouco que fosse, do presente para o futuro, se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si uma cicatriz imensa.


Outro Rio

Um rio extravasou--me da memória, a que o mantinham preso as forças do passado. Nas suas margens, o meu corpo divide--se entre a História e a atmosfera, tomando assim o peso à realidade que através de todos os meus poros se procura incorporar na marcha dos sentidos. Alguma coisa nele toma por transporte a luz, outra as metáforas que cuidadosamente vou tentando encaminhar para um terreno mais seguro. Um pão aguarda entre os escombros que a solidão venha devorá--lo. Sei que existe algures um espelho onde a imagem do meu rosto incorpora a eternidade, mas os olhos de que por enquanto vou dispondo não me permitem vislumbrá--lo. Parece trepidar a toda a minha volta um mecanismo de que a História fosse o combustível. Da memória abro veredas para as partes do meu corpo mais expostas à devastação das águas.

 

Luís Miguel Nava

 

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