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A infância de Herberto Helder


No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas

Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos

Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva

Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito

Eu era quase um anjo
escrevi relatórios
precisos
acerca do silêncio

Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios

Isso foi antes
de aprender a álgebra

 

Reconhecimento dos laços


aos meus pais
por todas as razões


agora as tuas mãos estranhas ao medo
procuram um brilho mais puro, o lume
agora o tempo se mede por búzios
e os nomes flutuam mais leves que
as algas

podia abrigar duas formigas
e contar-te a história do mundo
desde que foi criado

podia se deixasses
escrever aquela história
da filha louca dos Matildes
a falar horas seguidas
da lucidez assustadora
deste poema

tudo podia
já que
os anjos do vento desenham na água
o fulgor inesperado
do teu gesto

de Os Dias Contados(1990)

 

A mão, o muro, o mundo


A mão preferida pelo silêncio
evoca sobre o muro
um alfabeto sem vincos

não é mão é uma luz que sobe pela colina
um atalho entre as estevas
um incêndio na mata
a rapariga louca,grita contra a noite
na enseada

A mão preferida pelo silêncio
folheia o livro dos incêndios
torna-se irremediavelmente suja
sobre o muro traça os vincos
os primeiros versos

A mão preferida pelo silêncio
não conhece repouso
quando atravessa a noite da enseada

é a mão trémula
pobre
assinalada pela escassez extrema dos nomes

 

Caminho do forte,machico


No caminho onde aprendi o outono
sob o azul magoado
os pescadores cruzavam ainda linhas
províncias clareiras
e esse gesto masculino de apagar a dor

chegava pelos percalços da terra
o carro do gelo
e os miúdos tiravam bocados para comer às dentadas
em retrato selvagem mas,juro-vos,havia encanto
havia qualquer coisa,outra coisa
nesse instante em perda

as mulheres sentavam-se à porta com os bordados
quando passavam estrangeiros
ficavam sempre a sorrir nas suas fotografias


Quando ainda se ignora a morte


Se agitares tesouras numa fogueira
não esqueças que me feres
um avesso de lume é o meu único
segredo
no impreciso avanço das lâminas
um anjo o descobriria

Tira a faca da gaveta
mas não esqueças
se a cravares na água
como altas vagas o mar me sepultará
dentro da casa abandonada

Não lamentes serem os versos
saberes tão frágeis
as flores mais belas são as que se colhem
quando ainda se ignora a morte.

de Longe Não Sabia(1997)

 

 

A casa onde às vezes regresso

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes,estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos

Durmo no mar ,durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo

Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração

Murmúrios do mar


"Paga-me um café e conto-te
a minha vida"

o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
de uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu ,não,nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas ,acreditas?
E temos saudades desse mar
que derruba primeiro no nosso corpo
tudo o que seremos depois

"pago-te um café se me contares
o teu amor"


Compaixão


Vi pela primeira vez o mar
era muito difícil frente a mim
compreender esse território absoluto
falámos só de coisas inúteis
e o mundo inteiro se escondia

somos novos. Lemos nos olhos fechados
precauções,derrotas,recusas
quando a intimidade sugere
a maior compaixão


A presença mais pura


Nada no mundo mais próximo
mas aqueles a quem negamos a palavra
o amor, certas enfermidades, a presença mais pura
ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
“a que distância da língua comum deixaste
o teu coração?”

a altura desesperada do azul
no teu retrato de adolescente há centenas de anos
a extinção dos lírios no jardim municipal
o mar desta baía em ruínas ou se quiseres
os sacos do supermercado que se expandem nas gavetas
as conversas ainda surpreendentemente escolares
soletradas em família
a fadiga da corrida domingueira pela mata
as senhas da lavandaria com um “não esquecer” fixado
o terror que temos
de certos encontros de acaso
porque deixamos de saber dos outros
coisas tão elementares
o próprio nome

ouve o que diz a mulher vestida de sol
quando caminha no cimo das árvores
“a que distancia deixaste
o coração?”


Esplanadas


Um sofrimento parecia revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se perca
o que facilmente se perde
o silêncio as esplanadas da tarde
a confidência dócil de certos arredores
os meses seguidos sem nenhum cálculo

por vezes é tão criminoso
não percebermos
uma palavra, uma jura, uma alegria


Concerto dos Tindersticks


Impossível dizer até que ponto
a rapidez de tudo
atinge as passagens na sua certeza
o significado dos instintos
desde muito cedo
os modos de travessia, os receios
imagens em que não pensamos

pela noite tua voz descreve
isso de nós que não tem defesa
um amor
largado às sombras, irreconhecível
até de perto

dizem que se tratou de
derivas, ingenuidades, ilusões
o teu amor é um nome qualquer
que parte

de A Que distância Deixaste o Coração(1998)

 

Os Versos


Os versos assemelham-se a um corpo
quando cai
ao tentar de escuridão a escuridão
a sua sorte

nenhum poder ordena
em papel de prata essa dança inquieta


A voz solitária do homem


Há palavras que escrevemos mais depressa
o terror dessas palavras derruba
o passado dos homens
são tão pouco: vestígios, índices, poeira
mas nada lhes é desconhecido
as horas em que vigiamos o escuro
os sítios nenhuns das imagens
a ligeira mudança que resgataria
o abandono, todo o abandono


Calle Principe, 25


Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
a conservar
mas levamos anos
a esquecer alguém
que nos olhou apenas



A mulher desconhecida

para Maria Matias,minha avó


É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome

Eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece

e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor.


O teu rosto aos vinte e cinco anos de idade


Numa conversa sobre o destino da arte
lembro o teu rosto
onde os elementos ensaiam
a revelação dos primeiros detalhes
irremediáveis:
a marca da sombra, o recuo das forças,
o alarme da dor

a arte existe apenas
como homenagem (pobre, desolada)
àquilo que cada rosto foi
um dia através da paisagem


Uma Coisa A Menos Para Adorar


Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde um homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar
e de quem não soube nunca nada
nem o nome


Da verdade do amor


Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito

pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados

não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce sem rumor


Sobre um improviso de John Coltrane


Ainda espero o amor
como no ringue o lutador caído
espera a sala vazia

primeiro vive-se e não se pensa em nada
não me digam a mim
com o tempo apenas se consegue
chegar aos degraus da frente:
é didícil
é cada vez mais difícil entrar em casa

não discuto o que fizeram de nós estes anos
a verdade é de outra importância
mas hoje anuncio que me despeço
à procura de um país de árvores

e ainda se me deixo ficar
um pouco além do razoável
não ouvem? O amor é um cordeiro
que grita abraçado à minha canção

Mercado velho,Machico


Uma paisagem muito ao longe
quando se regressa
continuamos a vê-la no escuro

fechamos os olhos,sentimo-nos vivos
na sucessão dos séculos
falamos de súbito
daquilo que nos assusta
um segredo demasiado intenso
o malogro dos códigos
qualquer ideia extrema
que destrói o mundo e não queríamos

mas estamos tão pouco
onde estamos


de Baldios(1999)

 

As casas


As casas habitadas são belas
se parecem ainda uma casa vazia
sem a pretensão de ocupá-las
tornam-se ténues disposições
os sinais da nossa presença:
um livro
a roupa que chegou da lavandaria
por arrumar em cima da cama
o modo como toda a tarde a luz foi
entregue ao seu silêncio

Em certos dias, nem sabemos porquê
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam,no entanto, perdidas
dentro da nossa casa

 

Às escondidas


Os primeiros chuviscos restituem-nos
o incrível cheiro da terra
mas nós estaremos quem sabe longe
do que tem significado

Preenchemos a inscriçõa numa piscina municipal
não sabemos bem o motivo ou não dizemos a ninguém
como os dias nos pedem a dureza
ofegante,instintiva
que têm para os nadadores as braçadas

Uma sombra nos acalma
Uma claridade nos dói

Cedo receamos a felicidade daquelas imagens
que reeencontramos dentro de nós
e não se ligam a nada


Os Girassóis


Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão
De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém
As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens

Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos

de Igual Para Igual(2001)

 

José Tolentino Mendonça

 

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