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Génesis

De mim não falo mais :não quero nada.
De Deus não falo:não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir,que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver,que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça ...-Ai quantos que eram novos
em vâo a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade...Ó transfusâo dos povos!

Não há verdade:O mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais,todos mentiram.

de Coroa da Terra (1946)

 

Os paraísos artificiais

Na minha terra,não há terra,há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra,não há árvores nem flores.
As flores,tão escassas,dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

Os cânticos das aves-não há cânticos,
mas só canários de 3.ºandar e papagaios de 5.º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra,porém,não há perdieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.

de Pedra Filosofal (1950)

 

Glosa à chegada do outono

O corpo não espera.Não.Por nós
ou pelo amor.Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede,uma memória,tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera;este pousar
que não conhece,nada vê,nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo!E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

de Fidelidade(1958)

 

Tendo lido uma carta acerca de um seu livro de poemas ,que oferecera

Por que entristeço ao ler o que de meus
versos escrevem,se não é de mim
que escrevem?
Será que chora em mim o que meus versos foram
antes de ser meus?
Por que pergunto,se já sei por quê?

Escuto longamente,leio,espero,
e o poema é voz de toda a gente,todos eles,que,
não se tendo ouvido,não a sabem sua.
E vêm chorar em mim o coração traído,
a música perdida em distracções urgentes,
uma palavras que ninguém falou.

Não entristeço,pois.Apenas sou pergunta,
e,sendo eu,me esqueço ao perguntar.

de Post-Scriptum(1960)

 

Camões dirige-se aos seus contemporâneos

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós. sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

de Metamorfoses(1963)

 

Escrito em Verona

As coisas não se vêem por metade.
Ou passas e as fitas de repente
pousando um longo olhar de eternidade
que logo vai aos fumos da memória,
ou viverás com elas,nelas vendo-
te como em espelho que te sobrevive.

Mas o passar como quem visse tudo
e ali ficasse não ficando a vida
faz que as coisas se cubram de um cristal
opaco e as diluindo em corpo falso,
aquele que é quanto então mereces.

de Exorcismos(1972)

 

"Conheço o sal..."


Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca,o sal
o sal da tua língua,o sal dos teus mamilos,
e o da cintura se encurvando das ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti,ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

de Conheço o Sal...E Os Outros Poemas(1974)

 

Jorge Sena

 

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