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Sumário Lírico

Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças,
começo devagar a reescrever o mundo quedo
que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo.
Ninguém me deu outras formas que não minhas
mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.

Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa.
E recordo-me dos outros de fora da vidraça, mudos
mas autores cada um no seu frasear, generosos
quando me reconheciam em muitos anos de vida.
Devedora sou, mesmo dos idos, de exangues vozes

caladas para sempre nos livros em que as lera.
Em tantas vidraças que espelharam caras, olhos
de cada olhar de imagens próprias de cada um.
Estava no longínquo fundo o mar redito, o sol,
os barcos na Barra, que também em vidros estavam.

Passa tu, golfinho, piloto cego, depois cadáver,
que talvez me conduzisse entre os barcos da Barra,
quando o dorso de prata e o gume passavam
nas horas visuais das manhãs de Junho e Julho minhas,
de par em par o olhar aberto ao ar do sol do sal.

Imagens que sempre ficais nestas vidraças,
emprestai vosso vidro e revérbero à luz
do farol extinto, em outras vidas que antes
narravam que eu era já nascida,
quando vos vi, farol, e vos guardei, imagens.

A cor de prata dos vultos é hoje negra, manchas
com a noite embebida, tantas vezes co-substancial.
É assim que a vidraça anoitece diante dos olhos,
diariamente somando anos, minutos indivisos.
Mas, cisco no vidro, pela lei da perspectiva, ponto.

 

Os amigos que morrem:Luiza,Carlos de Oliveira

Os amigos que morrem são arbóreos,
plantados e memoráveis como freixos.
Um freixo,que vejo entre árvores
como a aura,o tronco novo
sulcado de rasgões,a raiz curta
comparável à memória viva enterrada.
Têm uma única forma até à morte,
próximos do Sol,que torna as outras
árvores mais ténues que os isolados freixos.

 

Do milénio

Porque havemos de respirar o ar lavado e quente
de Novembro,se esperámos o Inverno,
se o sangue dos nossos pulmões amou o gelo
galáctico outrora,antes de sermos?
A flor,como um suicida,nasceu e imola-se,
porque não ama o belo,o agreste Inverno.
Mas nós,que concebemos o amor e o tempo,
iremos dar a nossa respiração ao Incerto?

 

Depois de traduzir Hélène Dorion


Amar o universo não me traz mágoa.
sobretudo,amar a areia
arrebata-me de júbilo e paixão.
Amar o mar completa a minha vida
com o tacto de um amor imenso.
Mas veio o vento e ,por momentos,
amargurou o meu corpo,a oscilar.
E está o Sol aqui,depois de uns dias
com o jardim obscurecido a beber sombra.
E sei que os átomos zumbem
e dançam como os insectos,
ébrios em redor do pólen.

 

Na Rua Das Mónicas

Nos meus vinte anos,
almoçar em casa de Sofia
era ouvir ferver em cachão,frigir
na cozinha,arfar a cafeteira da poesia.
Era ver a ama de Sofia,
e de todos os filhos,de muitos versos,
cuidar de muitas gerações de memórias,
no lar desses versos tão caseiros.
E era beber,ali,na mesa,uma água
que ,mais do que a da torneira,
concitou o mar para cada copo.
Era olhar um rosto de coral
(o que exorciza as Fúrias,na cozinha)
um rosto de mar novo,de geografia.
Era escutar as palavras da boca
do vocábulo grego para sabedoria,
o que me confirma o poder dos nomes,
ao serem Verbo,sobre os seres e as coisas.
Era sentar-me,lado a lado,
no espaço irradiante da volúvel lareira,
no Outono apagada,na Primavera acesa,
e com o fogaréu alimentado
por papéis venais de outra política
(que não a da sua humanidade),
que a prudência mandava destruir no fogo.
Era entrar e sair pela porta das Mónicas,
a das mulheres congregadas
sob invocação da mãe de Agostinho,
o que para mim celebrava também
o amor de mãe,da velha ama,da Poesia.

 

Fiama Hasse Pais Brandão

 

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