Terça-feira, 13 de fevereiro de 2001
 
 
O falso federalismo brasileiro
SÉRGIO G. LAZZARINI e SYLVIO LAZZARINI NETO

   O governador Itamar Franco é um visionário. Do seu próprio jeito, mas é. No início da década de 90, forçou a volta do Fusca por motivos populistas e antecipou por conseqüência uma das estratégias de marketing de maior sucesso do período: a criação de produtos "populares". Mais recentemente está chamando a nossa atenção para um dos problemas mais crônicos da economia brasileira: conflitos de interesse entre esferas governamentais, má alocação de recursos em nível local e indisciplina fiscal, os quais resultam fundamentalmente do que chamaríamos do "falso federalismo brasileiro".

  O federalismo é basicamente uma hierarquia de governos (ou esferas governamentais) que mantêm um grau elevado de autonomia. Os acadêmicos Ronald McKinnon e Barry Weingast, de Stanford, trouxeram uma contribuição fundamental ao estudo de sistemas federalistas por considerarem que tais sistemas devem ser auto-sustentáveis. Sistemas que são definidos apenas por imposição constitucional acabam sendo apenas sistemas federalistas de jure, mas não de facto.

  Auto-sustentação em sistemas federalistas é garantida por três restrições adicionais. Primeiro, as esferas governamentais devem ter responsabilidade sobre as suas economias regionais. Segundo, deve haver livre mercado entre os subgovernos, para evitar protecionismos locais. Terceiro, os subgovernos devem ter auto-sustentação orçamentária: uma esfera superior (exemplo:governo federal) não pode ajudar de forma incondicional esferas inferiores (exemplo: governos estaduais) sempre que estes últimos encontrarem dificuldades orçamentárias, nem se submeter a pressões de coalizões políticas para privilegiar certos subgovernos em detrimento de outros, como aconteceu recentemente com o casuísmo da nova lei da informática.

  É fácil notar que o federalismo brasileiro é um federalismo de jure, mas não de facto. Este é o falso federalismo. Os Estados, por exemplo, têm muita pouca responsabilidade sobre suas economias regionais.

  Disparidades em termos de desenvolvimento regional, por exemplo, são sempre atribuídas a uma falta de política desenvolvimentista supranacional, em vez da falta de ações locais inovadoras e pró-eficiência. Em 1999, a soma das transferências constitucionais e voluntárias para Estados e municípios somou cerca de R$ 52,9 bilhões ou 25% da arrecadação federal. Em suma, os Estados e municípios são mais centros de custo do que propriamente centros de receita.

  Este é um ponto-chave: a ausência de um sistema federalista de facto causa uma ineficiência sistêmica na economia nacional que se repercute em déficit fiscal, alto risco percebido por investidores externos, e elevadas taxas de juros em conseqüência. Além disso, como os Estados têm pouca responsabilidade sobre suas economias locais, criam-se incentivos para governantes alocarem a maior parte do seu tempo e esforço político mais para conseguir verbas e vantagens do governo federal do que para desenhar e realizar projetos visando a ganhos de eficiência e inovação em nível local.

  A decorrente escassez de recursos por parte dos Estados acaba trazendo dificuldades em instituir reduções em impostos que contribuem com parte considerável das receitas estaduais, mas que trazem ineficiências sistêmicas como conseqüência.

  Mais ainda, a ausência de auto-sustentação orçamentária, nas entidades federativas, estimula ações populistas por parte de governantes para manter burocracias locais e bloquear projetos de privatização, mesmo que isso resulte em oportunidades perdidas de investimentos em educação, saúde e outros projetos potencialmente capazes de gerar mais rendas. A falta de incentivos pró-eficiência em Estados que mais se aproveitam da falta de um federalismo de facto resulta em apreensão por parte de empresas com respeito à segurança dos seus investimentos, além de uma crônica falta de atratividade de determinadas regiões pela capacidade reduzida dos governos locais em investirem em educação e infra-estrutura.

  É bem verdade que a Lei de Responsabilidade Fiscal trouxe avanços significativos no tocante à disciplina fiscal de Estados e municípios. Mas é preciso muito mais, especialmente porque tais leis e acordo entre esferas governamentais são fáceis de serem quebrados ao sabor de ações populistas, como demonstram os recentes casos envolvendo Minas Gerais.

  Se os Estados não tiverem plenos incentivos pró-eficiência, sempre haverá um jeito "nobre" de justificar rombos orçamentários. É necessário, na verdade, um amplo esforço de alterar as relações contratuais entre as várias esferas governamentais, para tentar imprimir maiores incentivos para que Estados e municípios almejem disciplina fiscal e aloquem seus recursos de forma apropriada. A criação de mercados com rating para títulos municipais e estaduais, tal como ocorre nos Estados Unidos (um país com federalismo de facto), pode ser um pontapé inicial. Tal ação deve beneficiar unidades federativas que operem com as finanças equilibradas e busquem transparência na divulgação da contabilidade e do equilíbrio atuarial da previdência pública. Uma medida complementar seria a criação de limitações constitucionais para a atuação do governo federal como avalista de Estados e municípios.

  Muitos países em desenvolvimento, cujos sistemas federalistas foram copiados de outros países (notadamente Estados Unidos e Inglaterra), mas sem o devido respaldo sociopolítico, já estão reconhecendo tal problema e buscando soluções. A recente crise enfrentada pela Argentina decorre em grande parte de transferência entre governos trazida por um falso federalismo similar ao brasileiro. Necessariamente, o Brasil vai ter de avançar nesse campo. O governador Itamar nos ilumina novamente sobre o caminho do futuro, para demonstrar que se deve seguir justamente o lado oposto do que habitualmente ele apregoa: o atraso corporativo, o nacionalismo utópico e o falso dilema entre desenvolver núcleos regionais ou centralizar esferas governamentais de baixa eficiência.

 

    TEXTO  DO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO, INTERNET.

Sérgio G. Lazzarini é doutorando da Washington University (EUA).  Sylvio Lazzarini Neto é empresário. Este artigo se beneficiou de discussões com Yoshiaki Nakano e Clóvis Panzarini.

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