Valença
de Ontem e de Hoje
CAPÍTULO 4
VALENÇA CIDADE
(1857-1952)
Alfredo Moreira Pinto, no
seu “Dicionário Geográfico, Topográfico e Histórico do Império do Brazil”,
transcreve do escritor francês Saint Adolphe o seguinte documento:
“Valenca.
Villa da provincia do Rio de Janeiro, entre o rio Parahyba e o Preto, a 5 legoas
da juncção d’este ultimo com o rio Barros d’onde começa o Parahybuna a
correr com este nome. Os indíos chamados coroados, por terem as cabeças
tonsuradas, dominavam na serra da Mantiqueira, e faziam frequentes entradas nas
freguezias de SacraFamilia, de Roça-do-Alferes e de São-Pedro-e-São-Paulo;
para pôr cobro nestes excessos e rapinas, mandou o vice-rei Luiz de
Vasconcellos e Souza passar o capitão Ignacio de Souza Werneck ás suas aldêas,
o que este poz em effeito, e juntando-se com José Rodrigues da Cruz, erigiram
nellas uma igreja a N. S. e deram por este modo principio, em 1789, a civilização
d’aquelles daninhos e importunos vizinhos. D. Fernando José de Portugal,
sexto vice-rei do Rio de Janeiro, nomeou para a vigaria d’aquella igreja o
padre Manoel Gomes Leal, o qual doutrinou na religIão catholica grande
quantidade d’Indios das tríbus Purú, pequenos de estatura e de pelle morena,
e d’Araris, quasi brancos, bem feitos, desembaraçados nos movimentos, e mais
numerosos. Deo-se a nome de Valença a esta aldeia em bonra e memoria do
vice-rei, por isso que era da casa dos marquezes de Valença, e se tinha
esmerado em promover o adiantamento d’aquella população. Como a primeíra
igreja se tivesse arruinado, edificou-se outra de pedra, a qual foi elevada á
categoria de parochía do Brazil com o orago de N. S. da Gloria, título em que
foi definitivamente confirmada por decisão regia de 19 d’Agosto de 1807, pela
qual se lhe deo por termo toda a terra que jaz entre o rio Preto e o Parahyba,
pegando, ao occídente, com as freguezías de Rezende e de Santa-Anna-de-Pirahi,
e ao oriente, com a vílla da Parahíba-do-Sul. Uma decisão imperial de 17
d’Outubro de 1823 conferio a esta aldeia o titulo e honras de villa, dando-lhe
por patrimonio 2 legoas quadradas de terra, com condição que os habitantes
farião todas as despezas indispensaveis para a creação d’uma villa. Em
1838, fundou-se um hospital por meio d’uma subscripção; porém, como lhe não
pudessem dar um rendimento suffíciente, mantem-se com summa dífficuldade. A
villa da Valença é cabeça d’um collegio eleitoral que, em 1843, constou de
21 eleitores, a d’uma legião de guarda nacional. Seu districto consta de sua
propria freguezia e da de Santo-Antonio-de-Rio-Bonito. Uma lei provincial de 7
d’Abril de 1841 lhe deo por confrontação com o da villa da Parahiba-do-Sul a
fazenda d’Ubá, a de Boa-Vista até uma linha passada pela extremidade da
fazenda de Santa-Justa. Sua confrontação, com a de São-Fidelis, vai até a
margem direita do rio Preto. Em 1814, era a sua população de 688 brancos e
1400 Indios, hoje porém é avaliada em 5.000 habitantes. homens de negocio e
lavradores, que colhem café, milho, mandioca, feijões e outros viveres.
Attribue-se o augmento extraordinário da população ao grande numero de
estrangeiros que ali se estabelecerão.” (29)
(29)
Dicionário Geográfico do Brasil —
Paris — 1863 — págs. 753 e 754.
Moreira
Pinto, mais uma vez, no seu Dicionário
Geográfico do Brctzil, publicado em 1899, registra, com maiores detalhes,
documentos históricos sobre VaIença:
“VALENÇA.
— Cidade e municipio do Estado do Rio de Janeiro, séde da comarca do seu
nome, a 157 kils. da. Capital Federal, a 25 da estação de Desengano, a 18 de
Santa Thereza e a 38 da cidade do Rio Preto nas divisas do Estado de Minas,
ligada á estação de Desengano pela E. F. União Valenciana, a 560 metros de
altura sobre o nivel do mar, na lat. de 220 42’ 30” e long. E. de 0 12’
20’ do Rio de Janeiro, nas fraldas da serra Velha ou do Mascate, atravessada
pelo corrego das Larangeiras, que desagua no rio das Flores. Não é uma cidade
destituída de belleza, mas a sua colocação entre serras impede que, á
distancia seja observada por inteiro. Possue 25 ruas, uma travessa e cinco praças,
tendo duas destas magníficos parques artisticamente ajardinados. Quasí todas
as ruas são de regular largura e o typo da calçada é o chamado de alvenaria.
A
maior parte das casas são terreas, mas tambem bonitos sobrados se fazem notar.
Entre seus edifícios notam-se a Camara Municipal, cuja fachada é uma composição
classica, simples. mas não mediocre, nella funccionam a Camara, o Jury, os Tríbunaes
e a Bibliotheca, que conta entre as preciosidades litterarias a collecção
completa da Revista dos Dous Mundos” que pertenceu ao grande Guizot e que foi
arrematada em Pariz e offerecida pelo Dr. Carlos Augusto de Oliveira Figueiredo;
a cadêa, que é um edifício de solida construcção; o Forum, a Casa de Miserícordia,
fundada em 2 de julho de 1838, situada na praça da Misericordía, é um edifício
amplo, satisfazendo as principaes condições de hygiene nozocomial.
especialmente no que diz respeito ao arejamento das enfermarias; o theatro da
Gloria, um dos primeiros do Estado; a Matriz, situada em um alto é de fachada
medíocre; capellas do Rosario, da Misericordia, de N. 5. Apparecida e de
Santo Antonio do Carambita; Lazareto; e seus lindissimos parques, ficando o
maior na praça Municipal e o outro na praça Visconde do Rio Preto.
A
cidade tem 550 predios e uma população de 3.000 habitantes. O terreno do município
é em geral accidentado, porém as serras que nelle se encontram são de pequena
elcvação e de seus pontos mais altos nenhum attinge mil metros acima do nivel
do mar. Em todo o municipío ezistem mattas, ao lado das quais se observam
cafesaes e terrenos de pasto. Entre os principaes rios que o atravessam notam-se
o Parahyba, o Bonito,
o Flores, o Quirino, além
de outros. Orago: N. S. da Cloria e diocese de Niteroi. Monsenhor Pizarro em
suas Memorias Historicas, tomo V cap. III, pag. 290, diz a respeito de
Valença o seguinte: “Foi em sua origem uma aldêa de índios Coroados fundada
entre os rios Preto e Parahvba pelo zelo e actividade de José Rodrigues da
Cruz, de seu sobrinho João Rodrigues Pereira de Almeida e do capitão Ignacio
de Souza Werncck. Estabelecida a aldeia, erguêo o vigario de Sacra Família,
Manoel Comes Leal, nomeado pela portaria de 5 de fevereiro de 1803, em
conformidade da Ordem Regia de 7 de março de 1800, capellão curado dos indios,
uma capellinha sob a invocação de N. S. da Gloría; tomando a aldeia o nome de
Valença em honra a D. Fernando José de Portugal, depois marquez de Aguiar,
descendente dos nobres de Valença”.
A
fertilidade dos terrenos da nova aldeia bem depressa divulgou-se, attrahindo
para alli grande numero de estrangeiros, que dentro em pouco tornaram-se
superiores aos indigenas, já muito dizimados pela peste das bexigas. Foi a
aIdeia decahindo e a população branca augmentando, tornando-se de mister novo
templo, que começou a levantar-se a esforços daquelle capellão com a
faculdade que concedeu-lhe a Provisão de 23 de janeiro de 1812, oriunda da
Resolução de 16 de agosto de 1810, tomada em consulta da mesa da consciencia e
ordens. Visitado pelo bispo D. José Caetano de Azeredo Coutinho, que então
reconheceu a necessidade de uma nova freguezia em beneficio de uma população
sempre crescente, foi o novo templo elevado á categoria de parochia pela Carta
Régia de 19 de agosto de 1807, sendo seu primeiro parocho o padre Joaquim
Claudio de Mendonça, por haver fallecido quem fundara tão auspiciosa povoação.
Os infelizes selvagens, primeiros alicerces dessa aldeia, hoje importante
cidade, perseguidos e maltratados dispersaram-se, estabelecendo pequenas aldeias
em outros lugares. A freguezia de Valença destinada á villa desde 25 de agosto
de 1801 e creada cm 1819, como se deduz do Decreto de 26 de março só foi
erecta em 1823 pelo Alvará de 17 de outubro em virtude da Resolução de 3 de
fevereiro, tomada em consulta da mesa do desembargo do paço de 13 de janeiro do
mesmo ano, que a desmembrou do então districto da Córte e das Villas de S. João
do Principe e de Rezende. Installada a vílla em 12 de novembro de 1826 foi pelo
art. I da Deliberação Presidencial de 15 de julho de 1836, creada cabeça de
districto para as eleições do Regente do Império, Senadores e Deputados á
Assembléa Geral, e elevada á categoria de cidade pelo art. I da Lei Prov. n.
961 de 29 de setembro de 1857. Era a cidade de Valença uma das mais populosas
do Estado do Rio de Janeiro; infelizmente está hoje em contristadora decadencia.
Lavoura de café e canna.
O
munícipio comprehende os distríctos da cidade, Desengano, Conservatória, Ipiabas,
Santa Izabel do Rio Preto e S. Sebastião do Rio Bonito e os povoados Rancho
Novo, Cobras, Barroso, Quinau, Ribeirão, Patriarcha, além de outros. . Foi
creada comarca pela Lei Prov. n. 1.734 de 26 de novembro de 1872. Valença é
assim designada em honra de D. Fernando José de Portugal, descendente dos
nobres de Valença. Sobre a origem dessa cidade podemos colher o seguinte: Até
os fins do século passado era o município de Valença um sertão desconhecido
e ignorado no Estado do Rio de Janeiro. Suas densas matas virgens nunca abatidas
pelo machado, nem destruidas pelo fogo eram habitadas por varias tribus de índios
bravios que os portuguezes designavam pelo nome de Coroados. Eram assim
denominados em razão da maneira, por que cortavam o cabe!lo; porquanto tinham
por costume cortal-o no alto da cabeça, ficando os cabellos, longos e corridos.
espargídos pelos hombros. Naquella época estes selvagens talaram as lavouras
dos moradores da raça civilizada, que habitavam os sertões comprehendidos no
valle do Parahyba e suas ímediações, incommodando-os seriamente, e forçando
alguns delles a abandonarem os seus estabelecimentos recentemente abertos.
Debalde o governo portuguez, que tanto se interessava pela colonização do
Brazil, procurava pelas armas obstar a estas correrias, mas sem nada conseguir
de effícaz. Os pobres colonos, que se obstinavam em permanecer em suas sesmarias,
constantemente sobresaltados, só podiam trabalhar com as armas ao alcance de
suas mãos. José Rodrigues da Cruz, dono da fazenda do Páo Grande, no munícipio
de Vassouras, senhor de engenho e vastos canaviaes, e a quem o nosso município
deve o seu desenvolvimento, homem intrepido e empreendedor, dotado de
philantropia e animado de verdadeira caridade christá, procurou, por meios
differentes dos empregados até então por seus compatriotas, fazer desapparecer
este estado de cousa, tão afflictivo quão desesperador. Pondo-se em communicação
com estes indios no anno de 1790, soube pela doçura de seu trato captar-lhes a
confiança e inspirar-lhes respeito, prodigalisando-lhes immensos benefícios, e
promovendo-lhes com o mais decidido afinco e maior desinteresse a sua catechese.
Este benemerito cidadão em suas explorações ás margens setenptrionaes do rio
Parahyba, acompanhado por seus escravos, atravessava essas invias florestas em
picadas que mandava
abrir, e levava para os indíos o sustento, as ferramentas para os seus rusticos
trabalhos e remedios; entrava em suas choupanas e aproveitava para resolvel-os a
receberem o baptismo, da confiança que lhes havia inspirado. Era ministro dos
negocios ultramarinos no reinado de D. Maria 1a um notavel estadista
D. Rodrigo de Souza Coitinho, depois conde de Linhares, um dos poucos fidalgos
daquelle rempo apontados como illustrados e intelligentes. Era dotado de muita
penetração e agudeza de espírito, protector e amigo dos brazíleiros.
Chegando ao seu conhecimento os serviços relevantes que estava prestando José
Rodrígues a bem da catechese dos Coroados, dirigiu-lhe o honroso officío cuja
integra abaixo transcrevemos:
‘Sendo presente a S. M.
que Vmce não só é um grande agricultor e tem com as mais louvaveís fadigas
sido util ao Estado, mas também que Vmce. tem concorrido muito para promover a
civilização dos índios, para que elles disponham á abraçar as santas luzes
do Evangelho e igualmente se tem esmerado em fazer descobrimentos ao longo do
rio Parahyba do Sul, é a mesma senhora servida que Vmce. informe a S. M. por
esta secretaría de estado dos negocios da marinha e domínios ultramarinos, dos
meios que possa ter descoberto: 1o, para facilitar e ampliar a
civilização dos índios ao longo do sobredito rio Parahyba do Sul; 2o,
para tentar estabelecer ou a navegação do mesmo rio, ou ao menos, a flutuação
de madeiras em jangadas ao longo de todo o seu curso até a sua embocadura no
mar: 3o, para poder estabelecer córtes de madeiras por todo o seu
curso; 4o, e finalmente, para segurar todas as suas margens de
qualquer invasão de índios bravos, ainda antes de serem civilísados. E a
mesma senhora confia que Vmce. se dístínga em procurar-lhes todos os precisos
e interessantes esclarecimenros que se desejam em semelhantes materias, não
deixará de dar-lhe as mais decididas provas do seu reconhecimento mostrando-se
Vmce. digno da confiança que tem inspirado a informação que ha que Vmce. tem
até aqui obrado. Deus guarde a Vmce. Palacío de Queluz, em 22 de outubro de
1798. D. Rodrigo José de Souza Coitinho, Sr. José Rodrigo da Cruz”.
José Rodrigues, de sua
fazenda, em data de 31 de outubro do anno seguinte, respondeu o officio do sabio
ministro dos negocios ultramarinos, satisfazendo os esclarecimentos pedidos e
solicitando auxilios do governo para em um plano mais vasto poder proseguir em
sua empreza de domar e civilisar os índios. Não se esqueccu de propor ao
governo um alvitre de grande ponderação, que era a concessão de sesmarias
naquellas regiões, como meio profícuo de se povoar as margens superiores do
rio Panahyba, em cujas aguas, não sendo praticavel a navegação por causa de
suas cachoeiras, era todavia possível a flutuação de madeiras em
jangadas. Expediu o governo portuguez o seguinte aviso, de 7 de março de 1800.
dirigido ao vice-rei do Brazil, D. José Luiz de Castro, conde de Rezende:
“Illm. e Exm. Sr. — O
principe regente, nosso senhor, manda remetter a V. Ex. a cópia inclusa da
carta de officio que em data de 31 de outubro do anno proximo preterito de 1799
me dirigiu da Parabyba do Sul José Rodrigues da Cruz, a qual certamente foi
de grande, satisfaçao para sua alteza real, que se dignou mandar remetter a V.
Ex. a dita cópia, recommendando muito especialmente a V. Ex. que não só
conceda ao sobredito José Rodrigues da Cruz o que nella pede, mas também, que
auxiliem e promovam as suas idéas, procurando, pelos meios que elle propõem, o
estender-se e adiantar-se a civilização e administração dos indios e a sua
conversão ás luzes do Evangelho, animando-se igualmente por meio de sesmarias
a povoação das margens superiores do rio Parahyba, devendo-se outrossim,
tentar pela sua corrente á fluctuação das madeiras em jangadas, para cujo
effeito dentro de pouco tempo se hão de remetter exemplares de uma obra que
actualmente se está traduzindo, na qual se ensinam o methodo de se poderem
fazer navegaveís os rios em que ha cachoeíras. Em consequencía do sobredito
ordena S. A. Real que V. Ex. de accordo com o bispo dessa diocese envie á
Parahyba do Sul missionarios doutos e que sejam igualmente fieis e zelosos
ministros da pregação evangelica, os quaes catechisando e attrahindo com doçura
e suavidade de sua doutrina e com a compostura de seu religioso e christáo
comportamento de dignos e virtuosos exemplos, procurem converter ao gremío da
santa igreja tantas mil almas pagans que entregues ao gentilismo vivem
embrenhadas nos vastos sertões sem a luz e o conhecimento do verdadeiro Deus.
Finalmente V. Ex. procurará em cumprimento destas reais ordens dar toda a
possivel extensão aos dignos trabalhos e diligencias de um vassalo tão
benemerito e de quem S. A. Real faz o maior e o mais justo apreço. Deus guarde
a V. Ex. Palácio de Queluz, em 7 de março de 1 800. Dom Rodrigo de Souza
Coitinho, Sr. Conde de Rezende, dom José de Castro. Está conforme, Dr. Manoel
Jesus Valdetaro.”
Em
vista do citado Aviso e de um officio que o referido ministro da mesma data endereçara
a José Rodrigues, fazendo-lhes certas estas communicações, dirigiu-se este á
cidade do Rio de Janeiro, conseguindo á muito custo resolver que os índios
mandassem quatro dentre os seus príncipaes, em companhia delle, tendo-lhe para
este effeito offerecido em garantia a sua mulher e filhos. Alli chegados foram
ter com o vice-rei conde de Rezende, afim do perante elle os indios reconhecerem
a rainha D. Maria 1a por sua soberana, o que de feito fizeram, sendo
nessa occasião apresentados com requerimentos, que José Rodrigues entregou ao
vice-rei, cujas necessidades dos indios alli indicadas deixaram, contra a expressa
e terminante determinação do já mencionado aviso, de ser attendidas.
Regressando com os quatro caciques indios á sua fazenda, sem embargo do
vice-rei deixar de dar cumprimento ás ordens que em nome do principe regente
lhe foram transmittidas, José Rodrigues não sentiu-se desanimado. Com os
recursos de que dispunha e ajudado por seu sobrinho João Rodrigues Pereira de
Almeida, dono da fazenda de Ubá. continuou o seu afanoso emprehendimento.
Entretanto, tornou-se bastante critica a sorte dos infelizes indíos por
haver-se declarado entre elles a invasão da epidemia de bexigas. Durante quatro
mezes José Rodrigues e toda a escravatura de sua fazenda não cuidaram de outra
cousa senão de tratar doentes, caçar para lhes dar de comer, tendo-se então
esgotado os seus mandiocaes e bananaes. A safra de sua lavoura ficou reduzida a
uma terça parte.
Existiam então no seu
engenho, casa de morada, olaria e mais casas rusticas, 154 indios entre homens e
mulheres. Diante desta difficil e desesperada conjunctura não poude mais José
Rodrígues proseguir além, sentiu desfallecer a sua coragem e energia, vendo
exhaustos os seus escassos recursos. Dirigiu-se a D. Rodrigo de Souza Coitinho,
fazendo-lhe o seu ultimo appello: e em carta de 26 de abril de 1801, levando-lhe
ao conhecimentq estas tristes occurrencias e dando-lhe parte do resultado de
seus esforços, terminava dizendo-lhe, que era impossivel continuar em boa
harmonia e paz com os gentios á sua custa, por estar exhaurido e empenhado com
dispendios desde 11 annos, e principalmente ha dous, que até tinha deixado de
cuidar de sua lavoura. O ministro D. Rodrigo, que sempre se dedicara com
particular desvello aos negocios do Brasil, e pelos seus assignalados serviços
o nosso paíz tributa-lhe saudosa memoria, não podia deixar de attender ao
justo reclamo de José Rodrigues e em officio de 25 de agosto de 1801 não só
louvou o zelo e actividade com que elle se houve nas diligencias empregadas em
benefício da incumbencia que lhe fôra confiada, como tambem agradeceu os seus
serviços e os de seu sobrinho João Rodrigues Pereira d’Almeida.
Naquella mesma data escreveu
ao vice rei e capitão general do estado, D. Fernando José de Portugal, depois
conde e marquez de Aguiar (que vinha render no governo ao taciturno e sombrio
conde de Rezende) para tratar com José Rodrigues sobre a civilisação dos
Coroados e dos mais índios que a seu exemplo quizessem vir aldear, autorisando
a este ultimo logo que o vice-rei chegasse á capitania, procural-o em nome
delle ministro, afim de combinarem sobre as providencias que se devesse tomar
para o melhor acerto e bom exito de tão interessante negocio. O mesmo ministro
naquela occasião mandou apromptar os generos pedidos por José Rodrigues para
na primeira opportunidade se remetterem á junta de fazenda da capitania do Rio
de Janeiro para elle fazer distribuição pelos índios, e por Portaria de 31 do
mesmo mez ordenou a referida junta que na parte que lhe tocasse houvesse de
concorrer com todas as providencias que fossem nccessarias a bem do aldeamento
dos índios, afim de servir de estimulo aos que voluntariamente se quizessem
aldear, cooperando ella com todos os esforços para o bom resultado de um
projeto de tão uteis consequencias como era o augmento da população, do
territorio da agricultura e do commercio em geral, de que tão pouco se havia
sabido aproveitar na America, e concluía lembrando á junta, que o principe
regente tomaria por muito bom serviço tudo o que ella prestasse a este
respeito, e que tambem do contrarie lhe estranharia severamente o procedimento.
O vice-rei D. Fernando José de Portugal assumiu em 14 de outubro de 1801 o
exercicío do governo do Rio de Janeiro, depois de ter deixado o governo da
capitania da Bahia. Descendente da mui illustre casa dos marquezes de Valença
no exacto cumprimento da seus deveres soube grangear em ambos os governos
aquella estima e amor e bom renome, de que se fazem dignos os homens illustres
por nascimento e muito mais por acções proprias, acompanhadas de virtudes
pessoais, como as que elle possuia.
Comprehendendo o alcance das
idéas adminístrativas do honrado ministro dos negocios ultramarinos, tratou de
pol-as immediatamente em pratica. Expediu a Portaria de 21 de novembro de 1801
dirigIda a José Rodrigues, ordenando-lhe que passasse a aldear os índios
Coroados nas margens superiores do rio Parahyba, no logar que lhe parecesse mais
commodo, assignando-lhes o terreno estabelecido por lei para o cultivarem. Para
esse fim tendo presente o Aviso de 7 de março de 1800, e conformando-se com o
que o mesmo José Rodrigues lhe havia proposto, mandou publicar por editaes no
logares publicos que as pessoas que no terreno daquellas margens pertencentes a
esta capitania já tivessem obtido datas por sesmarias déssem principio á
cultura dellas no termo de tres mezes, e não o fazendo lh’as podessem
requerer outras quaesquer pessoas. Ao capitão das ordenanças da villa de
Rezende, Henrique Vicente Louzada de Magalhães, ordenou para remetter da aldea
de S. Luiz Beltrão ao referido José Rodrígues seis casaes de indios cívilisados
e trabalhadores para ensinarem e applicarem ao trabalho os indios que iam aldear,
e ao chefe de esquadra intendente da marinha determinou entregasse na cidade do
Rio de Janeiro ao sobrinho de José Rodrigues, o capitão e depois commendador
João Rodriguës Pereita de Almeida, para remetter á aquelle, os generos
precisos para o mesmo estabelecimento. Tambem ordenou ao capitão das ordenanças
da freguezia do Paty do Alferes, Ignacio de Souza Werneck, auxiliasse a abertura
dos caminhos que fossem precisos para este estabelecimento do modo que fosse
possivel, sem vexame dos povos, e que o mesmo auxilio prestasse para qualquer
outra cousa que occorresse conduzente ao bom exito deste negocio, assim como
para a compra dos generos com que José Rodrigues devia no primeiro anno por
conta da fazenda real supprir para a sustentação dos índios.
Recomendou a José Rodrigues
o avisasse quando fosse occasião opportuna, para elle fazer ir os missionarios
para catechisar, instruir e administrar sacramentos aos mesmos índios. Dando
execução á Portaria do vice-rei José Rodrígues, tratou de promover os meios
indispensaveis de aldear os índios Coroados no centro do sertão d’alem
Parahyba, no logar onde já vivia uma de suas tríbus, os Mitiris, que desejaram
que fosse ali a séde de sua aldêa. Para chegar-se até aquelle ponto era
preciso romper-se uma estrada pelo meio de sertão e que ao mesmo tempo que servisse
de cornmunicação para os indios se prestasse igualmente a facilitar a cultura
das terras, que por ordem real se repartiam pelo povo por títulos de sesmarias.
Era bem de ver, que todos os interessados se reunissem de commum accordo, e
levassem a effeíto a factura da indicada estrada, o que effectivamente
conseguiram no anno de 1802, depois de José Rodrígues ter congregado n’aquelle
serviço os indígenas, e os possuidores de sesmarias que ali tinham de
estabelecer-se, a sua escravatura. A requerimento de José Rodrigues, o governo
portuguez teve de concorrer com o sustento dos escravos, tendo despendído cerca
de 500$ a 600$, por causa da grande extensão de leguas de que constara a
estrada. Foi aberta esta estrada sobre uma picada anteriormente feita por José
Rodrigues na occasiáo em que foi celebrar a paz entre os Coroados e os
primeiros moradores da actual cidade de Rio Preto, que viviam em renhidas hostilidades.
Esta picada se estendia
desde aquelle ponto até a fazenda do Páo Grande, que distava da séde da
freguezia do Paty do Alferes, a que pertencia, duas leguas. Esta nova estrada,
atravessando em todo o seu percurso um terreno constantemente accidentado e
coberto de mattas virgens, tinha por ponto de partida aquella fazenda. Passara
primeiramente pela de Ubá, sita no rio Parahyba, depois de se transpor do Porto
Velho em canoas á outra margem, cujo territorio já faz parte do município de
Valença, recomeçara d’ali a estrada demandando a fazenda da Forquilha, as
actuaes povoações de Santa Thereza e Taboas, vindo surgir nessa cidade no
bairro do Benfica. D’ali tomara a direcção da rua da Uruguayana, antiga dos
Mineiros, e seguindo para a fazenda de José Rodrigues, que por este motivo
recebeu o nome de Passagem, penetrara em mattas banhadas pelos rios das Flores e
Bonito, sempre proseguindo até ligar esta cidade á do Rio Preto.
Este caminho, que havia
estabelecido uma nova communicação entre o Estado de Minas e a cidade do Rio
de Janeiro pelo antigo do Iguassú, servia igualmente de estrada central desse
município a que os sesmeiros foram unindo varios ramaes, que conduziam às suas
fazendas. Concluído este caminho, José Rodrigues, nos termos da Portaria do
vice-rei, de 21 de novembro de 1801, tomou posse para os indios da sesmaria de
sua aldeã, que antes em nome delles havia requerido, tendo obtido a concessão.
Antes, porém, de construir a aldêa definitivamente, requisitou do vice-rei um
director para os índios, isto é, um homem em que estes depositassem confiança,
e lhes servissem de apoio e protecção á qualquer receio ou desconfiança;
visto elle não poder exercer tal encargo, porque a sua estáda entre elles era
constantemente interrompida, umas vezes indo á cidade do Rio de Janeiro para
entender-se com o mesmo vice-rei sobre o serviço e as necessidades do
aldeamento, outras vezes á sua fazenda, onde logo que chegara se ajuntaram 200
ou 300 índios, e só entrando elle para o sertão é que elles tambem o faziam.
Lembrara para preencher este logar do padre Manoel Gomes Leal, que já tinha
sido nomeado capellão dos indios, e só esperava os paramentos e ornamentos da
capella para fazer a sua entrada no sertão.
O vice-rei sem deferir a
requisição de José Rodrigues, fez continuar a vigilancia dos indios sob sua
direcção, durante toda sua vida. O padre Manoel Gomes Leal, que antes tinha
sido vigario encomendado da freguezia de Sacra Familia em conformidade do citado
Aviso de 7 de março de 1800, que determinara, que se mandasse para o aldeamento
sacerdotes instruidos e moralizados para doutrinar os indíos nos principios da
nossa religião e administrar-lhe os devidos sacramentos, fói nomeado pelo
vice-rei por Portaria de 5 de fevereiro de 1803, capellão curado dos índios. O
bispo D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castello Branco, por despacho de 2
de março do mesmo anno, a que se seguio a Portaria de tres do dito mez,
conferiu-lhe a necessaria jurisdicção para construir, edificar ou levantar
altar em sitio conveniente, benzer a capella, ou egreja que erigisse,
precedendo-lhe faculdade régia, para administrar todos os sacramentos aos
indios sem exceção de matrimonio, e finalmente de construir e benzer cemiterio.
Vencia aquelle capellão a côngrua annual de 150$000.
Logo que o padre Manoel Gomes
e os sesmeiros se dispuzeram a fazer a sua entrada no sertão, José Rodrigues
preparou-se para fazer a edificação da aldêa, por isso requereu a junta da
fazenda um barril de polvora e chumbo respectivo, oito arrobas de fumo ordinário,
além de nova ordem ao commandante e de uma porção de jornaleiros para
ajudarem e dirigirem os serviços com os indios, até que êstes tivessem as
suas roças plantadas. O que foi favoravelmente deferido pela junta á 5
de maio de 1803, ficando José Rodrígues e o capitão do districto Ignacio
de Souza Werneck autorisados á sustentarem os indíos por mais de seis mezes.
Em consequencia do que passou José Rodrigues a constituir a aldêa, trabalhando
neste serviço, os proprios indios e os escravos dos sesmeiros; assim, foi
levantada a capella, feito o cemitério e foram construidas as choupanas dos índios.
Foi a aldea, installada no anno de 1803, ficando conhecida com o nome de Valença,
em obsequio ao vice-rei D. Fernando José de Portugal, sob cujos auspícios foi
elIa fundada, o qual, como dissemos era descendente da illustríssima família
de Valença.
A datar dessa épocha é que
começa a operar-se a emigração das famílias dos primeiros povoadores de raça
superior desse município; erão todos agricultores, pela mór parte antigos
moradores das freguezias do Pati do Alferes e de Sacra Familía, os quaes vinham
abrir os seus estabelecimentos nas primeiras sesmarias que foram concedidas
n’esse senão. N’este numero contava-se a sesmaria da fazenda da Passagem
que confinava com a aldêa, cujo primeiro dono foi José Rodrígues. A emigração
das famílias vindas do Estado de Minas começou mais tarde. Assentava-se a
aldea dos indios Coroados sobre uma das meias collínas, que se erguem na área
hoje occupada pela cidade de Valença, na visinhança do sitio d’onde se
destacava donairosa a actual egreja matriz. Segundo o Annuario do Observatorio
do Rio de Janeiro do anno de 1835, a posição astronomica da cidade de Valença
é de 22 gráos 14’ de latitude meridional e de 32’ de longitude occidental
do Rio de Janeiro; sendo a sua longitude expressa em tempo, tambem referida ao
sobredíto observatorio, de 2’ e 8”. A sua altura acima do nivel do mar é
de 475 metros. Constava a aldêa de uma pequena capella erigida á Mãi de Deus
sobre a invocação de N. S. da Gloria, firmada sobre toscos esteios de madeira
com paredes de palmitos e ripas ligadas por cipó ímbé, embossadas por
ligeiras camadas de barro e cobertas com ramos de palmeiras. Era o fanal que
chamava á civilisação milhares de almas; as vozes argentinas de seo sino
vibradas nos ares ecoavão pela primeira vez embebendo-se no sertão como a voz
do Senhor penetrando no deserto. Ao lado da capella, protegido por uma cerca, um
pequeno espaço de terreno servia de cemitério, em cujo centro elevava-se uma
modesta cruz de madeira.
Este estreito recinto
sagrado estava destinado a receber em seu seio os restos mortaes dos primeiros
habitantes d’esta cidade. Rodeavam a capella pobres choupanas dispersas. Em
toda a parte da aldêa, cheia de tócos e madeiras derribadas, em grande parte
carbonisadas pela queimada e alastradas pelo chão, viam-se os vestígios da
palhada destroçada de uma recente roça de milho, que ainda indicava a
feracidade do solo que a sustentára. Lançando os primeiros fundamentos da aldêa,
havia José Rodrigues mandado plantar esta roça para os indios, os quaes com a
sua notoria imprevidencia não podendo resistir aos impetos de sua voracidade
devoravam todo o milho ainda verde. Fechava todo o contorno uma matta sombria e
cerrada, que mal dava passagem ao caminho, pouco antes aberto, e que punha em
communicação a aldêa com outros pontos. E por toda circumvisinhança
contavam-se poucos estabelecimentos ruraes, entremeados por todo aquelle sertão
de magestosas e densas mattas virgens, e de ubérrimos terrenos de cultura.
Assim, pois, a capella servia de centro á aldêa, e a aldêa servindo de centro
á população agricola, oppunhão a invasão dos gentios não domados e
asseguravam aos seos moradores dias de paz e de prosperidade. O padre Manoel Gomes,
pelas funcções de seo cargo, devia tomar sobre si a direcção espiritual dos
índios; mas este sacerdote deslembrado de sua elevada missão, pastor infiel,
abandonara o seu rebanho para só dedicar-se á cultura das terras, que obtivera
em sesmaria.
Por infelicidade dos índios. José Rodrigues achava-se alquebrado pelas fadigas, enfraquecido pelos annos, e acabrunhado pela molestía de que veio a fallecer. Com a sua morte, que teve logar em 1804, perderam os indios o seo protector e bemfeitor. Lastimaram os índios com sobejos motivos a sua perda. Durante todo o tempo que com elle conviverão, sempre manifestou-lhes a maior predilecção; como deu provas, formando a mais generosa resolução de civilisal-os e fazel-os abraçar o cbristianismo. N’este grandioso commettimento não poupou fadigas, nem sacrifícios alguns. Chegou a despender sommas consideraveis, em detrimento do futuro de sua mulher e filhos, para grangear-lhes a confiança. Apezar dos auxilios, que poude obter do governo portuguez por intermédio do ministro de Estado, conde de Linhares, os seos incansaveis esforços no que respeitava a catechese, ficaram completamente esterilisados depois de sua morte. Só por um systema seguido e sem interrupção é que se poderia fazer aos indigenas desse municipio um beneficio duradouro; fora mister que todos os brancos que se resolveram a viver entre elles fossem animados do mesmo espirito e tendessem ao mesmo fim. A realisação, pois, de sua idéa nunca seria a obra de um homem isolado, por mais nobre que fosse o seu caracter, por mais absoluta que fosse a sua dedicação.
Os relevantes serviços, porém,
por elle prestados a esse município, quer com seo descobrimento, quer
desarmando os indios de suas hostilidades contra os seos primeiros habitantes,
quer attrahíndo para este canto do Estado do Rio de Janeiro as primeiras
familias, que para ahi emigravam, fazem com que o seo vulto venerando, aureolado
pelas mais nobres virtudes, se destaque imponente para ser collocado na altura
dos seos mais benemeritos cidadãos, tornando-se credor da gratidão da posteridade,
No entanto começaram a affluir de toda a parte para a aldêa, attrahidos pela
fertilidade de suas terras, varios habitantes de raça européa, os quaes foram
pouco a pouco assenhoreando-se de seos terrenos. Os filhos das selvas, porém,
entregues a si mesmos, por todos abandonados, sem a menor educação religiosa,
sem nenhuma instrucção, pois que não tinham quem lh’a dessem, inclinados á
indolencia e á ociosidade, depois de misturados com os colonos, que invadiram a
aldêa, só d’elles iam aprendendo os seos vicios. Bem depressa entraram a
embriagar-se pelas tavernas, que alli se crearão. Reappareceo a parte das
bexigas em sua aldêa, que segundo reza a tradição foi-lhes transmitida pela
perversidade e cobiça de um advena que tinha interesse em extinguil-os para
melhor apoderar-se de suas terras.
Grande mortandade,
acompanhada de verdadeiro terror, estendeo-se sobre as miserrimas tribus
indianas. Os índios acometidos d’esta terrivel enfermidade pelo contagio, no
desespero e delírio de febre procuraram allívio atirando-se ás aguas dos
rios, que lhes serviam de sepulturas. Assim tudo parecia conspirar-se para fazer
desapparecer da face da terra os desgraçados índios. Sentindo-se elles por
todos desamparados e repellidos, começaram a procurar novos asylos fóra de sua
aldêa. Os Mitiris, como já vimos, occupavam a principio a aldêa de Valença,
aos quaes José Rodrigues reuniu os Pitás, seos visínhos que viviam nas
margens do rio Bonito e os Araris nas do rio das Flôres. Os primeiros
passaram-se para os lados do Cambota e das Tabôas, e os segundos internaram-se
na serra do Tunifel, formando lá a aldêa do Manoel Pereira, assim conhecida
pelo nome d’este chefe, que para alli os encaminhou. Nas cabeceiras do rio das
Flores, sua primitiva morada, estanciavam os Araris. Além destes indios, ainda
existiam outras tribus não catechisadas, e vinham a ser, os Heminius, que
povoaram as margens superiores do rio Bonito, e deram a aldêa posteriormente
conhecida pelo nome de Conservatoria; e os Taypurús. que habitaram as margens
do ribeirão de S. Fernando formando tanto a aldêa deste nome, como uma outra
denominada do Tanguá.
Vamo-nos occupar um pouco
com estes indios. Estas tribus tinham um typo commum, bem accentuado, todas
procediam de um só tronco, os Goytacazes. Aos traços da raça americana tão
differentes da branca, elles reuniam a fealdade peculiar de sua nação; Eram de
estatura baixa, tinham a cabeça summamente grande, achatada no alto, e
enterrada nas espáduas. Seus cabellos eram negros, compridos e desgrenhados.
Ultimamente já não usavam cortal-os no alto da cabeça, como em outro logar
dissemos. A pelle era de côr de bistre que elles costumavam a pintar com urucú.
O peito e o ventre eram dilatados, as coxas e as pernas finas, as pontas dos pés
eram largas e os calcanhares estreitos. Apezar da indolencia, que caracterisa
todos os indios, os Coroados faziam pequenas plantações. Para satisfazer a
paixão que tinham pela aguardente, resolviam algumas vezes trabalhar nas habitações
dos colonos; mas apenas ganhavam com que embriagar-se, descansavam. Eram excellentes
derribadores, bons canoeiros, e intrepidos conductores de balsas carregadas de
madeiras atravez das cachoeíras do Parahyba. Faziam com bastante habilidade
arcos e flechas; sabiam tirar estopa dos ramos novos de cecropia (embauba), e
della fabticavam rêde de um tecido encrusado mui forte, mas grosseiro, com que
faziam tangas; com argila cosida preparavam vasos d’agua, urnas funerarias,
panellas etc. nisto limitava-se a sua industria. Vendiam o producto de sua caça,
constante de aves e animaes sylvestres; assim como arcos e flechas, que faziam.
Quando appareciam nos logares em que moravam os colonos, trajavam a roupa, que
estes ou lhes davam gratuitamente, ou em troca de seu trabalho; em suas aldeolas
tiravam-na para tomar as suas tangas.
Dentre elles alguns haviam
recebido o baptismo; mas eram estranhos á religião christã. Os Coroados
reconheciam um chefe eleito entre elles; mas a sua autoridade sobre homens que
viviam dispersos nas florestas, devia necessariamente ser extremamente limitada.
Podiam mudar de mulher quando bem lhes aprouvessem, e assegurava-se que a
polygamia era usada entre elles. A mulher seguia o seu marido na caça, era ella
que levava a pequena equipagem, como geralmente acontece entre os selvagens.
Encerravam os seus defunctos em vasos de barro cosidos á maneira de grandes
talhas, que depois enterravam no chão. Ha cerca de cinco annos foi descoberta
na serra do Tunifel, (antiga aldêa do Manoel Ferreira) uma destas urnas funerárias,
a qual sendo cuidadosamente desenterrada, teve pouca duração logo que esteve
exposta á acção do ar; porquanto foi pouco a pouco dando estalidos e
quebrando-se em pequeninos pedaços, ficando o vaso de todo desfeito. Dentro
deste foram encontrados envoltos em terra trez ossos de cadaveres humanos, um de
uma das cannelas e os outros de duas ccstellas. A população branca, porém,
continuara a augmentar-se na aldêa de Valença. O padre Manoel Gomes prevendo,
que, em breve, a sesmaria pertencente á aquella aldêa seria apossada pelos
novos habitantes, antes que isso acontecesse, elle entendeu dever annexal-a á
sua fazenda da qual era limitrophe. Mas como não pudesse requerel-a em nome
proprio, porque a lei lh’o vedava, serviu-se do nome de um fâmulo seu que
havia criado em sua casa, Florisbello Augusto de Macedo, figurando como
procurador delle.
Foi apresentado este
requerimento ao vice-rei em 1805, e no anno seguinte dada a informação de
estylo pelo senado da camara do Rio de Janeiro, que foi favoravel á pretenção
do requerente, por haver-se baseado em uma declaração escripta do capitão
Werneck, que asseverava estar inculto e devoluto o terreno pedido, e por isso no
caso de ser dada a sesmaria. Pelo que foi esta concedida ao peticionárío em 13
de novembro de 1808, passando-se-lhe provisão para se proceder a demarcação e
medição judicial, e como nunca fosse apresentada a respectiva sentença, nunca
se lhe passou carta. O padre Werneck, porém, que é o sobredito capitão, em um
attestado de data posterior procurando melhor explicar-se sobre este assumpto,
affirma que aquella sesmaria tinha sido outrora concedída aos indíos á
requerimento do finado José Rodrigues, não se verificando por titulos
legitimos, talvez por falta de agente que seguisse os seus termos. Se sua
primeira informação fosse assim concebida, por certo que esta sesmaria não
teria sido dada, como foi, á Florisbello; nem daria logar á Eleuterio Delfim
Silva, cobiçal-a e procural-a usurpar á todo transe de Valença como teremos
occasião de ver. O desenvolvimento sempre crescente, que foi tendo a aldêa de
Valença com o correr dos tempos, fez logo sentir a necessidade de ser elevada
á freguezía. Á requerimento do capellão padre Manoel Comes, por consulta da
Mesa da Consciencia e Ordens e Resol. de 16 de agosto de 1810, concedeu-lhe a
Provisão de 13 de Janeiro de 1812 a faculdade de alli levantar um templo á N.
S. da Gloria, onde com decencia, e mais respeito se celebrassem os offícios
divinos, e fossem administrados os santos sacramentos. Á esforços daquelle
capellão, auxiliado pelos fieis, foi começado em 18l3 o referido templo, que
é actual egreja matriz, cujas obras foram, terminadas muitos amos depois; e
comquanto esta egreja não estivesse prompta, todavia já se celebravam nella os
offícios divinos.
O reverendo bispo D. José
Caetano da Silva Coutinho, por occasião de sua visita á esse logar, reconheceu
a urgencía de se estabelecer nelle a séde de uma freguezía, em razão da posição
vexatoria a que estavam expostos os seus habitantes, no que respeitava ao pasto
espiritual; porquanto conforme eram os seus domicílios ou estabelecimentos
ruraes situados neste ou naquelle ponto do terrítorio, assim ficaram uns
sujeitos ao parocho da freguezia de Sacra Familia, outras ao da do Paty do
Alferes, e outros finalmente ao da de Parahyba do Sul, achando-se, porém, todas
á longas distancias das sédes d’estas freguezias. Por isso, e para que ao
mesmo tempo servisse de promover o augmento da população. resolveu aquelle íllustre
e piedoso prelado crear uma nova freguezia, o que fez pela Provisão de 15 de
agosto de 1813 dada naquella aldêa, determinando-lhe os limites desde o rio
Parahyba até o rio Preto, e’ desde as divisas da freguezía do Pirahy até ás
do Parahyba do Sul. Para dirigir e servir a nova parochia, foi nomeado o mesmo
capellão por aquella Provisão de 15 de agosto, com a qual requereu á Sua M. a
sua confirmação. E tendo, em virtude do Aviso de 15 de dezembro de 1813,
informado o reverendo bispo em 31 de janeiro do anno seguinte a favor da
perpetuidade da egreja e do provimento dela no seu capellão, por outro Aviso de
21 de março do mesmo anno foi mandado o tribunal da Mesa da Conscíencía e
Ordens consultar este negocio, que a Real Resolução de 19 de agosto de 1817
confirmou e autorisou, dando á parochialidade antiga a natureza de beneficio
collativo e perpetuo. Foi primeiro proposto para parocho proprio em 1819 o padre
Joaquim Claudio de Mendonça, por haverem fallecido o padre Manoel Comes em 1814
e o seu successor Fr. Paulo da Cunha em 1817.
Como Florisbello falecesse,
e era exposto e não deixasse herdeiros conhecidos, lembrou-se Eleuterio Delphim
da Silva, esperançado na facilidade com que aquelle havia conseguido a concessão
da sesmaria da aldéa de Valença, de tambem requerel-a para si, o que de facto
fez em 1815, tendo obtido identica concessão em 14 de outubro do anno seguinte.
Por esta fórma, um individuo, que em nada se recommendava, e que só se distinguia
pela sua audaciosa ambição e falta de escrupulos, por meios tortuosos
impolgara a maior suavidade a sesmaria pertencente a uma povoação. Bem pouco
faltou para que esta povoação nascente deixasse de existir, para com suas
terras passar a pertencer a Eleuterio Delphim, que arrogara sobre ella o seu
dominio. Si não fora o forte e poderoso apoio dado pelo genoroso diocesano, que
tomara tanto a peito a defesa da nova freguezia, que ella havia inaugurado, e
que a morosidade do expediente do governo tardara em confirmal-a, talvez a sorte
de Valença tivesse sido muito diversa. Por influencia e conselhos seus subiram
em nome dos índios aldeados sucessivos requerimentos á presença d’el-rei
reivindicando os seus direitos; viva e tenaz resistencia foi opposta pelo capellão
dos índios, e vigarío da freguezia, Fr. Paulo da Cunha, offerecendo por occasíão
da medição judicial da sesmaria, já o seu protesto, já os seus embargos
contra semelhante usurpação, e confiado na justiça da causa que defendia,
aguardava tranquillo a decisão de D. João 6o. No emtanto Eleuterio
Delphim, zombando de tudo e de todos, procedia á medição das terras de sua
pretendida sesmaria, conseguida subbrepticiamente, sendo os respectivos autos
julgados a seu favor, por sentença de 25 de janeiro de 1817, servindo de juiz o
bacharel Joaquim Gaspar de Almeida.
A tão esperada justiça
d’el-rei deu afinal mostras de si para attender de modo incompleto ao que lhe
requeriam os indios, e pela Provisão de 20 de agosto ordenou, que elles fossem
conservados nos terrenos que necessitassem para as suas culturas. Os executores
desta ordem real procuraram mystifical-a em proveito de Eleuterio. Este cada vez
mais acoroçoado não desanimou de seus intuitos, e lançou mão dos meios de
que costumava servir-se. Promoveu contra os indios falsas representações,
assignadas pela mór parte em nome de pessoas analphabetas, e fez notificar
pelos meirinhos, com um fantasiado mandado do juiz almottacé no Rio de Janeiro
e seu termo, os moradores da aldea com casas de vivenda e negocio para embargo
de cultura de terrenos e obras na sua sesmaria.
Em vista desta attitude ameaçadora
assumida por Eleuterio Delpbim, os colonos moradores na aldea de Valença
dirigiram ao rei, em dezembro de 1817, o seu requerimento reclamando contra esta
violencía; figuravam neste requerimento 33 assignaturas. Não podendo manter-se
por mais tempo este estado de cousas, D. João 6o tratou de resolver
este negocio de modo decisivo, expedindo o Decreto de 26 de março de 1819, que
declarava que a aldea de Valença dos indios Coroados, estando destinada para villa
dos mesmos indios por ordem regia de 25 de agosto de 1801, fora pedida de
sesmaria como terreno devoluto por Florisbello Augusto de Macedo e depois por
Eleuterio Delphim Silva e concedida com notoria obrigação, pois não se devia
considerar devoluto um terreno marcado para a aldêa dos indios, com a egreja já
edificada e alguns moradores na mesma aldêa. Pelo que declarava nulla a
sobredita concessão feita a Eleuterío Delpbim Silva, e que o sobredito terreno
pela recente demarcação, que tinha de um quarto de legua de testada e meia
legua de fundos, fosse restituido aos mesmos indios para nelle se aldearem e
cultivarem os terrenos que se lhes distinassem. Declarava mais que nomeava para
director delles ao capitão Miguel Rodrigues da Costa, que devia observar o
mesmo que tinha sido ordenado a José Rodrigues da Cruz, na sobredita ordem
regia e portaria do vice-rei D. Fernando José de Portugal, de 21 de novembro
ele 1801, e o mais que a este respeito além disto estava estabelecido para a
civilisação dos indios. Determinava que nas referidas terras não se poderia
mais fazer alienação alguma; e os moradores que ahi já se achavam com casas
ou culturas fossem conservados e pagassem foros que se arbitrasse para a camara
da vila dos mesmos indíos, que seria estabelecido na conformidade dos antigos
usos aprovados pelas mesmas reaes ordens.
E o ouvidor da comarca como
conservador dos indios fizesse registrar as sobreditas ordens e a recente
demarcação do terreno e titulos de posse dos moradores nos livros competentes;
auxiliasse o sobredito director e procedesse aos estabelecimentos necessarios,
fazendo supprir do cofre as despezas precisas e dando conta pela Meza do
Desembargo do Paço das mais aldêas poderiam estabelecer-se de indios nos
lugares em que se achassem arranchados e dos terrenos que se lhes devessem
marcar para ellas, pela preferencia que deviam ter nas ditas terras. A Mesa do
Desembargo do Paço dando cumprimento a este decreto dirigiu ao ouvidor da
comarca do Rio dc Janeiro, o desembargador Joaquim José de Queiroz, a Provisão
de 8 de julho do mesmo anno, transmittindo as reaes determinações que lhe eram
feitas. Este por sua vez deu immediata execução ao que lhe fora ordenado;
remetteu ao director dos indios o capitão Miguel Rodrigues da Costa, grande
quantidade de enxadas, machados, panellas, aço e ferro para foíces afim de se
repartirem com aquelles indios, e o avisou para lhe participar os descobrimentos
que fizesse nas outras povoações e informasse dos terrenos necessarios para se
estabelecerem nelles outras aldêas em conformidade da Provisão de 8 de julho.
Deu outras providencias no
sentido do arranjamento da aldêa de Valença, combinando o bom tratamento dos
meios com a conservação dos actuaes possuidores para o que expedio editaes. O
director dos indíos, porém, officiava á 12 de agosto, ao desembargador
ouvidor da comarca, accusando o recebimento de tudo quanto lhe havia mandado, e
pedindo-lhe alguns vestuarios para alguns indios attento o seu estado de nudez.
Declarava que havia feito o reconhecimento dos indios e suas habitações e
examinado os lugares mais commodos para os seus aldeamentos. Verificou serem das
nações Ximinim e Pitás os indios que faziam parte das aldeias do rio Bonito,
e de nação Taypurú as das aldeas do ribeirão S. Fernando, tributario do rio
Preto; que além dos já bem conhecidos da aldêa de Valença, das nações Mirítís
e Pitás, só restava-lhe reconhecer uma aldêa ainda brava, que se achava entre
os índios de S. Fernando, e os do Bonito, nas grandes serras do mesmo S.
Fernando.
Opinara que devia mandar medir no rio Bonito uma legoa de terras, onde os indios tinham já as suas aldêas, e encarecia a bondade d’aquellas terras, banhadas de varíos ribeirões e que achavam devolutas. Instara para que esta medição fosse logo feita afim de acommodar com a possivel brevidade os ditos indios. Quanto á aldêa de Valença dizia elle, devia ser destinada para aldêar os indios de nação Míriti, a qual já está acostumada com o povo da Freguesia, e não queria por forma alguma viver com as outras nações, nem estas com aquella. Em vista d’estas informações, que o ouvidor em data de 20 de setembro levou ao conhecimento da Mesa do Desembargo do Paço, dando seo parecer, declarou que se fazia preciso que medisse e demarcasse para aquelles indios uma legoa de terra nos descobrimentos que havia feito, ou o que comprehendesse suas povoações, afim de se reduzir os aldeamentos devolutos e desaproveitados, fornecendo-lhes ao principio algumas ferramentas para essa cultura facilitando-lhes a communicação com os povos visinhos para os ir civilisando. Sendo ouvido a respeito o procurador da coroa a 17 de janeiro do anno seguinte, conformou-se com a informação e parecer do ouvidor da comarca conservador dos indíos, sendo de parecer, que devia-se n’esta conformidade conceder os terrenos pelo ouvidor apontados, para os estabelecimentos e aldeiamentos dos novos indios, que descobrio o director capitão Miguel, segundo constava de seo offício; e proceder nas medições e demarcações apontadas pelo referido ouvidor n’esta sua informação e representação.
A Mesa do Desembargo do Paço por despacho de 29 de maio do mesmo anno mandou proceder na forma da informação e resposta, ordenando-lhe que se passasse ordem ao ouvidor da comarca para fazer as medições e demarcações da divisão do terreno de que tratava, submettendo-se depois tudo a aquella mesa para espedirem os títulos competentes. Assim nas margens do rio Bonito fundou-se uma nova aldêa, cuja capella curada, dedicada a Santo Antonio foi, por alguns annos filial da matriz de N. S. da Gloría, sendo doada aos indios uma de legua de terras em quadro ainda hoje conhecida pelo nome de Conservatória. Acha-se a povoação de Conservatoria, séde da freguezia de Santo Antonio do Rio Bonito á 22 gráos 16’ de latitude meridional e 400 de longitude occidental do Rio de Janeiro. A sua longitude expressa em tempo e referida ao meridiano do Ohservatorío Astronomico d’aquella cidade é de 2’ e 40” (Annuario do Imp. Observatorio do Rio de Janeiro do anno de 1855). Eleuterio Delphim, porém, não desistio de suas antigas pretenções á sesmaria da aldeia de Valença; prevalecendo-se da creação de nova aldêa de Conservatoria, sob o auspicioso pretexto de haverem extinguido os indios, ou terem sido removidos para o Rio Bonito, onde haviam aldeado os Ximinins requereu novamente as terras devolutas, por haver cessado a razão que o havia privado de semelhante graça. Os seos esforços não foram de todo mal succedidos, porque pelo Decreto de 5 de julho de 1827 ficou sem effeíto o de 26 de março de 1819, mandando-se que Eleuterio Delphim ficasse de posse da mesma sesmaria. Mas semelhante revalídação tão manifestadamente obrepticia não podia subsistir por muito tempo, porque não só o constituía verdadeiro donatario para exigir fóros dos moradores, aos quaes se havia reconhecido o direito do domínio util, como tambem offendia o direito da camara municipal respectiva, que como teremos occasião de ver, tinha sido creada e installada, e a quem se garantia o dominio directo. Portanto o Decreto de 19 de julho de 1828 declarava o de 5 de julho do anno anterior irrito, nullo e de nenhum effeito, e em seo inteiro vigor o de 26 de março de 1819.
Por
occasião de acontecimentos occorridos no Estado de Minas, onde o governo
provisorio desconfiando dos planos do principe regente, recusara prestar
obediencia, D. Pedro de Alcantara, que pouco depois foi chamado primeiro
imperador do Brazil, partio para Vílla Rica a 25 de março de 1822. Dentro de
poucos dias voltou elle ao Rio de Janeiro deixando tranquillos os animos alli.
Em seo regresso áquella capital foi a aldêa de Valença honrada com a sua
presença. ahi pernoitou, hospedando-se em casa do vigario Joaquim Claudio de
Mendonça. Acompanhava o príncipe o desembargador Estevão Ribeiro de Rezende,
depois Barão e Marquês de Valença, na qualidade de seo secretario; e
compunha-se o séquito do principe de alguns criados de sua casa. Foi este mesmo
monarcha, que elevou esta aldêa á categoria de villa. Teve Valença
predicamento de villa no anno immediato á nossa emancipação política, e
cerca de um anno antes do pacto fundamental, a creacão d’esta villa se fez em
virtude do Alvará com força de lei de 17 de outubro de 1823, como então se
praticava. transcrevemos abaixo um documento d’esta materia. Referimo-nos á
consulta da Mesa do Desembargo do Paço que servio de fundamento a decisão
imperial, pela qual foi creada villa a aldêa de Valença, então districto da
comarca do Rio de Janeiro. Eil-o:
“Consulta ácerca de uma informação do ouvidor da comarca do Rio de Janeiro sobre a erecção e creação da aldêa e freguezia de Valença em villa a 13 de janeiro de 1823. Tendo ordenado ao ouvidor da camara do Rio de Janeiro informasse com as noções necessarias a bem da creação e erecção da vila de Valença por ordem regia de 25 de Agosto de 1801 enunciada no Decreto de 26 de março de 1819, em consequencia do qual se lhe havia expedido a ordem de 8 de julho do mesmo anno; saptisfez elle pela maneira seguinte: Manda V.M. informar com as noções necessarias a elevação e erecção de uma villa na aldêa de Valença. E em observancia da régia provisão de 8 de julho de 1819 e decreto de 26 de março officiei ao director dos índios da dita aldêa para me informar da sua capacidade e população da freguezia e pela sua resposta e mappa ns. 1 e 2 se vê ter a aldêa 45 moradores e a freguezia 1971 habitantes com setenta e tantas fazendas e tomando proximadamente informações pessoalmente do dito director e outras pessoas. conheci haverem muitos indios para oéste da freguezia que deveriam chamar-se á directoria d’aquella aldêa e por isso ordenei a aquelle director fosse examinar e me informasse com um mappa circumstanciado, ao que satisfez em numero 3 e 4 como pelo alvará de 4 de setembro de 1820 vem a freguezia da Parahyba a pertencer a nova villa do Paty do Alferes, e o termo de Valença ficaria muito limitado e por outra parte convém incorporar neste o mais possivel os indios dispersos pelos sertões da parte do oeste, será conveniente que para esta se estenda aquelle termo além da freguezia, e por isso me parece que este chegue pela margem esquerda do rio Parahyba até o ponto em que neste faz barra o ribeirão do Serro, fig. 6 no mappa, e que desta se tire uma linha a rumo de noroeste 4 gráos a norte até encontrar o ribeirão Patriarcha, fig. 17, e por este abaixo até a sua barra no rio Preto, e pelo Sul o rio Parahyha desmembrando assim aquelle districto dos desta cidade, S. João do Príncipe e Rezende, o que se torna mais vantajoso aos povos daquelles sertões, pela grande longitude em que estavam da capital do distrícto. V.M. porém, mandará o que fôr servido. Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1821. — O ouvidor da comarca, Joaquim José de Queiroz.
Da qual informação e documentos que nella se trata e sobem com esta á presença augusta da magestade imperial dando-se vista ao desembargador procurador da corôa, soberania e fazenda nacional, respondeu elle nos termos seguintes:
Conformo-me com a informação
e parecer do ouvidor da comarca para que tenha logar a erecção da aldêa de
Valença, em Villa de Valença, e o termo designado na mesma informação,
ficando desde logo separados daquelles outros a que pertenciam os respectivos
territorios que constituem o mencionado terreno, juntamente com todas as rendas
que lhes são pertencentes: designando-se S.M. conceder mais para patrimonio da
dita villa duas sesmarias de meia legua em quadro, conjunctas ou separadas (onde
houver), para serem aforadas em pequenas porções e emphateosim perpetuo na
forma da lei de 23 de julho de 1766, e ordenar também que sejam creados para a
mesma villa os juizes ordinarios e dos orphãos, vereadores, procurador da
camara, almotacés e escrivães respectivos, na fórma praticada na creação
que de outras se tem feito e consta dos alvarás das suas creações. O que
visto, parece á mesa o mesmo que ao ministro informante e ao desembargador
procurador da corôa da soberania e fazenda nacional, com os quaes se conforma
V. M. Imperial porém, resolverá o que houver por bem. Rio de Janeiro, 13 de
janeiro de 1823. — Monsenhor Miranda, Canto, Velloso, Costa. Foram votos
desembargador monsenhor Almeida e Antonio Felippe Soares de Brederode. Despacho.
— Como parece. Paço, 3 de fevereiro de 1823. Com a rubrica do imperador dom
Pedro 1, José Bonifacio de Andrade e Silva”.
A installação porém da
villa, só teve logar annos depois; porque logo após sua creação deu-se a
dissolução da Constituinte pelo primeiro imperador, seguindo-se a deportação
dos tres irmãos Andradas e de mais tres deputados, para a França. Esta medida
violenta praticada pelo monarca veiu aballar profundamente o nosso paiz,
perigando ao norte a integridade do imperio. Emquanto não foi supplantada a
celebre Confederação do Equador por meio das sanguinarias commissões
militares, não cessou em nosso paiz a perturbação da ordem publica. Por
isso só a 12 de novembro de 1826 foi que poude ser installada a villa, sendo
este acto feito com todas as solennidades do estylo. O ouvidor da comarca do Rio
de Janeiro, posteriormente conselheiro, Dr. Antonio Pereira Barreto Pedroso, que
foi encarregado de installar a villa (a cuja jurisdicção pertencia) expediu
com a devida antecedencia editaes convidando o povo para assistir a esta
solennidade. Mandou levantar debaixo das ordens da Mesa do Desembargo do Paço,
e á custa dos moradores da nova villa e seu termo, o pelourinho, casas da
camara, cadêa e as officinas do conselho; e organizou as posturas da referjda
camara, que foram confirmadas pela respectiva Mesa.
O pelourinho que era feito
de madeira lavrada com as peças de ferro competentes foi erguido na antiga praça
da Cadêa, hoje do Visconde do Rio Preto, assim denominada pela camara como uma
grata recordação aos relevantes serviços prestados a essa cidade por aquelle
benemerito cidadão de saudosa memoria. Bem proximo do pelourinbo, na mesma praça,
levantaram um sobrado de acanhadas proporções, pintado por fóra de óca
amarella, em cujo pavimento superior funccionava a camara, as audiencias dos
differentes juizos, e as sessões do jury; e o pavimento terreo servia de cadêa.
O pelourinho e a cadêa foram destruidos por ordem da camara em 1853, e desta época
em diante foram os habitantes desta cidade edificando no largo varios predios,
fazendo delle uma das praças mais elegantes dessa cidade. Como a organização
das nossas municipalidades antes da lei de 1 de outubro de 1828 diferia do que
é hoje, para melhor intelligencia do citado Alvará de 17 de outubro de 1823,
vemo-nos forçados a descer a certa ordem de explicações. Para o governo da
Camara de Valença, dispunha o Alvará, haverão dous juizes ordinarios, um dos
orphãos, tres vereadores, um procurador do conselho, e dous juizes almotacés,
e bem assim dous officios de tabellião do publico, judicial e notas, um alcaide
e o escrivão de seu cargo; ficando annexo ao offício do 1o tabellião
os de escrivão da camara, almotaceria e cizas, e ao segundo tabellião de
escrivão de orphãos. Segundo a antiga organização judicial havia em cada
termo um juiz de fóra, ou dous ordinarios, conforme determinara o rei. Tinham
absolutamente as mesmas funcções quer no civel, quer no crime, e não pouco
mais ou menos os ultimos juizes na híerarchia judiciaria. O juiz de fóra de
nomeação do rei, não pertencia ao logar para onde era nomeado, dahi lhe vinha
este nome; devia ser formado em leis, exercia a sua jurisdicção para onde era
nomeado por um trienio, e vencia um ordenado pago pelo governo.
Pelo contrario os juizes
ordinarios, escolhidos pelo povo entre os cidadãos mais recommendaveís, eram
leigos, não recebiam vencimentos. Para nomeação dos juizes ordinarios, o
ouvidor se transportava em cada termo de sua comarca. O povo não escolhia
immediatamente os juizes ordinarios, mas nomeava seis eleitores que escolhiam os
juizes. Cada cidadão apto para votar dava o seu voto de viva voz ao ouvidor,
que inscrevia os nomes e fazia apuração. Os eleitores nomeados se apontavam em
tres pautas de dous eleitores, cada pauta enunciar o voto por escripto. O
ouvidor recolhia uma segunda vez os suffragios e proclamava a sua escolha às
pessoas contidas em uma das tres linhas. Asseverava-se, que os suffragios eram
comprados, e quasi sempre sabia-se previamente quaes aquelles que seriam
nomeados. Os cidadãos que sahiam eleitos, tiravam do corregedor ou do
desembargo do paço carta da confirmação. Obtida a confirmação, davam os
eleitores juramento de bem servir, e tomavam posse, sem o que não podiam fazer
acto algum do official. O modo de eleição que acabamos de descrever chamava-se
eleição de pelouros.
Havia um outro modo que se chamava eleição de barrete; eis em que casos o empregavam. Quando um cidadão tinha sido nomeado da primeira maneira, e que dava razões legitimas para não occupar o lugar, ou quando fallecia. ou tinha impedimento prolongado, verbi gratia, ausencia fora do paiz, a camara se reunia sem que o ouvidor fosse obrigado á ahi comparecer. Recebia os votos dos cidadãos, e o lugar se dava áquele que reunisse o maior numero de suffragios. Os officiaes assim eleitos não precisavam obter cartas de usança, começavam a exercer os seus officios depois de prestarem o juramento, servindo-lhes de titulo a propria eleição e a acta de sua nomeação. Como vimos, não havia para cada termo senão um juiz de fóra ou dois ordinarios. A razão desta differença é facil de perceber-se. Os juizes de fóra tendo vencimentos eram indemnisados dos sacrifícios que exigiam delles os deveres de seu cargo. Os juizes ordinarios, pelo contrario, só recebiam 100 réis de cada sentença e eram nomeados dous ao mesmo tempo, para que alternadamente pudessem, durante um mez, preencher as suas funcções de juiz, e ir-se occupar com os seus negocios particulares. Eram os juizes de fora ou os juizes ordinarios, que presidiam a camara, a qual era estabelecida na sede de cada termo. Os camaristas eram eleitos pelos cidadãos da mesma maneira que os juizes ordinarios. Tres de entre elles tinham o nome de vereadores, e o quarto que era thesoureiro, chamava-se procurador do conselho. Releva observar, que esta eleição se fazia em uma das oitavas do Natal, convocando a camara ao povo, e fazendo eleger as pessoas que haviam de servir nos tres annos seguintes. A autoridade dos vereadores era meramente econômica e administrativa. A camara devia reunir-se duas vezes por semana: deliberava, decidia; mas o poder executivo pertencia ao presidente, isto é, ao juiz de fóra ou ao ordinario. Em cada termo, dous magistrados chamados almotacés preenchiam, sem receberem vencimentos, funcções judiciais e policia administrativa.
Eram escolhidos todos os
dous mezes pelas camaras, e podiam ser reeleitos muitas vezes seguidamente. Um
delles era incumbido da policia na sede do termo, e o outro devia exercer
semelhante autoridade nas povoações que faziam parte do mesmo territorio: mas
como a jurísdicção de cada villa era extremamente extensa, o ultimo almotacé
mal podia inspeccionar as parocbias menos remotas. O alcaide (pequeno) era
official de justiça que usava de vara, insignia da autoridade publica.
Desempenhava o seu cargo nas diligências em que fazia preciso defender a
autoridade judicial e rebater a violencía de alguem como nos autos de penhoras,
embargos, prisões, etc. Estes diversos funccionários, dos quaes acabamos de
fallar foram extinctos pelas differentes reformas porque tem passado a nossa
legislação. Assim, a organização judíciaria do imperio acabou tanto com o
juiz de fóra, como com os ordinarios, Cod. do Processo Criminal, art. 8. e
Disposição Provisoría, art. 18. Já a constituição, no art. 153 desconhecia
os segundos. O alvará de 17 de outubro de 1823 estabeleceu os limites do município
de Valença. Em virtude desta lei o seu territorio é o comprehendido na margem
esquerda do Parahyba desde o ponto em que este rio faz barra com o ribeirão do
Serro, de onde é tirada uma linha recta ao rumo de noroeste quarta a norte até
encontrar o ribeirão Patriarcha, e por este abaixo até a sua barra no Rio
Preto, cuja linha fica divisoria por oeste; por léste a freguezia da Parahyba
do Sul; pelo norte o rio Preto; e pelo sul o mesmo rio Parahyba, ficando assim
desmembrado o antigo districto de Valença dos termos do Rio de Janeiro e villas
de S. Joáo Marcos e Rezende com todos os respectivos rendimentos, que passaram
a pertencer á nova villa. Comquanto o mesmo alvará de 17 de outubro concedesse
para patrimonio da nova villa duas sesmarias de meia legua em quadro, conjunctas
ou separadas, onde as houvesse devolutas para serem aforadas em pequenas porções
e em fateusim perpetuo, e com o laudemio da lei, na forma do alvará de 23 de
julho de 1766; todavia só poude constituir esse patrímonio a antiga sesmaria
da aldêía de Valença, cuja concessão fôra, destinada á mesma villa por D.
João VI pelo alvará de 26 de março de 1819, visto não haver mais no município,
ao tempo da creação da villa, terreno algum devoluto.
Conforme consta do livro do
tombo da Camara Municipal desta cidade, a configuração do terreno desta
sesmaria é um trapezio, como se vê do respectivo mappa e medição, cuja
testada confronta com as terras que pertenceram a D. Joaquina de Rezende, viuva
de José Rodrígues da Cruz e contém correndo pelo angulo de 47o e
30’ no quadrante do sudoeste, segundo a variação da agulha: o lado que
confronta com as sesmarias que pertenceram a Hypolito Pimentel e Joanna Maria da
Conceição pelo angulo de 41o e 30’ no quadrante sudoeste, 1920
braças; o outro lado parallelo que confronta com a sesmaria que foi do padre
Manoel Gomes Leal 1918 braças contadas pela derrota, e o lado perpendicular a
estes, que confronta com os terrenos que pertenceram ao Marquei de Baependi,
correndo pelo ritmo de léste 780 braças. Pela lei prov. n. 23 de 14 dé abril
de 1835 art. 5o o producto da taxa ou fôro annual sobre as terras
constitue renda especial da Camara, tendo sido preferidos para foreiros os que
nella se achavam estabelecidos. Em virtude do art. 6o da citada lei,
a alludida renda devia começar a ser cobrada pela Camara de 1 de julho do mesmo
anno.
A lei provincial, porém, n.
8 de 30 de outubro de 1837 autorisou a Camara Municipal a dar por aforamento as
terras que constituem o seu patrimonio, estipulado nos contractos os preços
estabelecidos na citada lei n. 23 de 1835. Depois da creação do municipio de
Valença a sua população augmentara-se, compondo-se ella de portuguezes, ou de
seus descendentes, de raros outros europeus, de uma raça cruzada, de africanos
e de poucos indigenas, os quais iam pouco a pouco desapparecendo. Pereciam estes
ultimos em suas aldêas ou ceifados pelas bexigas, que por mais de uma vez os
accommeteu, ou por um regimen, que não era aquelle sob que se tinham
multiplicado tão extensamente. Comprehende-se que a vida errante, a que estavam
antes sujeitos, era pouco compativel com os habitos da vida sedentaria, a que
foram compellidos, depois de aldeados. Eram suas aldeas lugares de miseria.
Batidas as florestas, esgotados os viveiros, tornavam-se escassas a caça e a
pesca, e os índios presos ao solo ficaram reduzidos ás minguadas colheitas de
suas roças, que não lhes prestavam uma alimentação abundante e nutritiva,
como a de outrora. Com a habitação determinada, sem permissão de transpor as raias de seus aldeamentos, depois que o terrirorio
foi todo dividido entre os sesmeiros, os indios eram acommettidos de nostalgia,
abandonavam-se á tristeza e a inercía, perdiam seu antigo humor, sua agilidade
e primitiva intellígencia. Contribuia ainda para o seu fatal aniquilamento o
alcoolismo e toda a sorte de desregramentos, vicios e molestias adquiridas pelo
seu contacto com a população oriunda da Europa e da Africa. Assim foi-se
extinguindo neste município, até completamente desapparecer em nossos dias,
esta raça desventurada, de todo desaproveitada, para ser substituida
cxclusivumente, como foi, pela raça civilisada e africana - (30)
(30) Dicionário Geográfico do
Brazil –
P – Z, págs. 707 a 714 – Rio de Janeiro – Imp. Nacional –
1899.