Valença de Ontem e de Hoje

CAPÍTULO 4 

VALENÇA CIDADE 

(1857-1952)

PARTE 1

Documentos históricos

Alfredo Moreira Pinto, no seu “Dicionário Geográfico, Topográfico e Histórico do Império do Brazil”, transcreve do escritor francês Saint Adolphe o seguinte documento:

 

                                                “Valenca. Villa da provincia do Rio de Janeiro, entre o rio Parahyba e o Preto, a 5 legoas da juncção d’este ultimo com o rio Barros d’onde começa o Parahybuna a correr com este nome. Os indíos chamados coroados, por terem as cabeças tonsuradas, dominavam na serra da Mantiqueira, e faziam frequentes entradas nas freguezias de Sacra­Familia, de Roça-do-Alferes e de São-Pedro-e-São-Paulo; para pôr cobro nestes excessos e rapinas, mandou o vice-rei Luiz de Vasconcellos e Souza passar o capitão Ignacio de Souza Werneck ás suas aldêas, o que este poz em effeito, e juntando-se com José Rodrigues da Cruz, erigiram nellas uma igreja a N. S. e deram por este modo principio, em 1789, a civilização d’aquelles daninhos e importunos vizinhos. D. Fernando José de Portugal, sexto vice-rei do Rio de Janeiro, nomeou para a vigaria d’aquella igreja o padre Manoel Gomes Leal, o qual doutrinou na religIão catholica grande quantidade d’Indios das tríbus Purú, pequenos de estatura e de pelle morena, e d’Araris, quasi brancos, bem feitos, desembaraçados nos movimentos, e mais numerosos. Deo-se a nome de Valença a esta aldeia em bonra e memoria do vice-rei, por isso que era da casa dos marquezes de Valença, e se tinha esmerado em promover o adiantamento d’aquella população. Como a primeíra igreja se tivesse arruinado, edificou-se outra de pedra, a qual foi elevada á categoria de parochía do Brazil com o orago de N. S. da Gloria, título em que foi definitivamente confirmada por decisão regia de 19 d’Agosto de 1807, pela qual se lhe deo por termo toda a terra que jaz entre o rio Preto e o Parahyba, pegando, ao occídente, com as freguezías de Rezende e de Santa-Anna-de-Pirahi, e ao oriente, com a vílla da Parahíba-do-Sul. Uma decisão imperial de 17 d’Outubro de 1823 conferio a esta aldeia o titulo e honras de villa, dando-lhe por patrimonio 2 legoas quadradas de terra, com condição que os habitantes farião todas as despezas indispensaveis para a creação d’uma villa. Em 1838, fundou-se um hospital por meio d’uma subscripção; porém, como lhe não pudessem dar um rendimento suffíciente, mantem-se com summa dífficuldade. A villa da Valença é cabeça d’um collegio eleitoral que, em 1843, constou de 21 eleitores, a d’uma legião de guarda nacional. Seu districto consta de sua propria freguezia e da de Santo-Antonio-de-Rio-Bonito. Uma lei provincial de 7 d’Abril de 1841 lhe deo por confrontação com o da villa da Parahiba-do-Sul a fazenda d’Ubá, a de Boa-Vista até uma linha passada pela extremidade da fazenda de Santa-Justa. Sua confrontação, com a de São-Fidelis, vai até a margem direita do rio Preto. Em 1814, era a sua população de 688 brancos e 1400 Indios, hoje porém é avaliada em 5.000 habitantes. homens de negocio e lavradores, que colhem café, milho, mandioca, feijões e outros viveres. Attribue-se o augmento extraordinário da população ao grande numero de estrangeiros que ali se estabelecerão.” (29)

 

(29) Dicionário Geográfico do Brasil — Paris — 1863 — págs. 753 e 754.

 

Moreira Pinto, mais uma vez, no seu Dicionário Geográfico do Brctzil, publicado em 1899, registra, com maiores detalhes, documentos históricos sobre VaIença:

 

“VALENÇA. — Cidade e municipio do Estado do Rio de Janeiro, séde da comarca do seu nome, a 157 kils. da. Capital Federal, a 25 da estação de Desengano, a 18 de Santa Thereza e a 38 da cidade do Rio Preto nas divisas do Estado de Minas, ligada á estação de Desengano pela E. F. União Valenciana, a 560 metros de altura sobre o nivel do mar, na lat. de 220 42’ 30” e long. E. de 0 12’ 20’ do Rio de Janeiro, nas fraldas da serra Velha ou do Mascate, atravessada pelo corrego das Larangeiras, que desagua no rio das Flores. Não é uma cidade destituída de belleza, mas a sua colocação entre serras impede que, á distancia seja observada por inteiro. Possue 25 ruas, uma travessa e cinco praças, tendo duas destas magníficos parques artisticamente ajardinados. Quasí todas as ruas são de regular largura e o typo da calçada é o chamado de alvenaria.

 

A maior parte das casas são terreas, mas tambem bonitos sobrados se fazem notar. Entre seus edifícios notam-se a Camara Municipal, cuja fachada é uma composição classica, simples. mas não mediocre, nella funccionam a Camara, o Jury, os Tríbunaes e a Bibliotheca, que conta entre as preciosidades litterarias a collecção completa da Revista dos Dous Mundos” que pertenceu ao grande Guizot e que foi arrematada em Pariz e offerecida pelo Dr. Carlos Augusto de Oliveira Figueiredo; a cadêa, que é um edifício de solida construcção; o Forum, a Casa de Miserícordia, fundada em 2 de julho de 1838, situada na praça da Misericordía, é um edifício amplo, satisfazendo as principaes condições de hygiene nozocomial. especialmente no que diz respeito ao arejamento das enfermarias; o theatro da Gloria, um dos primeiros do Estado; a Matriz, situada em um alto é de fachada medíocre; capellas do Rosario, da Mi­sericordia, de N. 5. Apparecida e de Santo Antonio do Carambita; Lazareto; e seus lin­dissimos parques, ficando o maior na praça Municipal e o outro na praça Visconde do Rio Preto.

 

A cidade tem 550 predios e uma população de 3.000 habitantes. O terreno do município é em geral accidentado, porém as serras que nelle se encontram são de pequena elcvação e de seus pontos mais altos nenhum attinge mil metros acima do nivel do mar. Em todo o municipío ezistem mattas, ao lado das quais se observam cafesaes e terrenos de pasto. Entre os principaes rios que o atravessam notam-se o Parahyba, o Bonito, o Flores, o Quirino, além de outros. Orago: N. S. da Cloria e diocese de Niteroi. Monsenhor Pizarro em suas Memorias Historicas, tomo V cap. III, pag. 290, diz a respeito de Valença o seguinte: “Foi em sua origem uma aldêa de índios Coroados fundada entre os rios Preto e Parahvba pelo zelo e actividade de José Rodrigues da Cruz, de seu sobrinho João Rodrigues Pereira de Almeida e do capitão Ignacio de Souza Werncck. Estabelecida a aldeia, erguêo o vigario de Sacra Família, Manoel Comes Leal, nomeado pela portaria de 5 de fevereiro de 1803, em conformidade da Ordem Regia de 7 de março de 1800, capellão curado dos indios, uma capellinha sob a invocação de N. S. da Gloría; tomando a aldeia o nome de Valença em honra a D. Fernando José de Portugal, depois marquez de Aguiar, descendente dos nobres de Valença”.

 

A fertilidade dos terrenos da nova aldeia bem depressa divulgou-se, attrahindo para alli grande numero de estrangeiros, que dentro em pouco tornaram-se superiores aos indigenas, já muito dizimados pela peste das bexigas. Foi a aIdeia decahindo e a população branca augmentando, tornando-se de mister novo templo, que começou a levantar-se a esforços daquelle capellão com a faculdade que concedeu-lhe a Provisão de 23 de janeiro de 1812, oriunda da Resolução de 16 de agosto de 1810, tomada em consulta da mesa da consciencia e ordens. Visitado pelo bispo D. José Caetano de Azeredo Coutinho, que então reconheceu a necessidade de uma nova freguezia em beneficio de uma população sempre crescente, foi o novo templo elevado á categoria de parochia pela Carta Régia de 19 de agosto de 1807, sendo seu primeiro parocho o padre Joaquim Claudio de Mendonça, por haver fallecido quem fundara tão auspiciosa povoação. Os infelizes selvagens, primeiros alicerces dessa aldeia, hoje importante cidade, perseguidos e maltratados dispersaram-se, estabelecendo pequenas aldeias em outros lugares. A freguezia de Valença destinada á villa desde 25 de agosto de 1801 e creada cm 1819, como se deduz do Decreto de 26 de março só foi erecta em 1823 pelo Alvará de 17 de outubro em virtude da Resolução de 3 de fevereiro, tomada em consulta da mesa do desembargo do paço de 13 de janeiro do mesmo ano, que a desmembrou do então districto da Córte e das Villas de S. João do Principe e de Rezende. Installada a vílla em 12 de novembro de 1826 foi pelo art. I da Deliberação Presidencial de 15 de julho de 1836, creada cabeça de districto para as eleições do Regente do Império, Senadores e Deputados á Assembléa Geral, e elevada á categoria de cidade pelo art. I da Lei Prov. n. 961 de 29 de setembro de 1857. Era a cidade de Valença uma das mais populosas do Estado do Rio de Janeiro; infelizmente está hoje em contristadora decadencia. Lavoura de café e canna.

 

O munícipio comprehende os distríctos da cidade, Desengano, Conservatória, Ipiabas, Santa Izabel do Rio Preto e S. Sebastião do Rio Bonito e os povoados Rancho Novo, Cobras, Barroso, Quinau, Ribeirão, Patriarcha, além de outros. . Foi creada comarca pela Lei Prov. n. 1.734 de 26 de novembro de 1872. Valença é assim designada em honra de D. Fernando José de Portugal, descendente dos nobres de Valença. Sobre a origem dessa cidade podemos colher o seguinte: Até os fins do século passado era o município de Valença um sertão desconhecido e ignorado no Estado do Rio de Janeiro. Suas densas matas virgens nunca abatidas pelo machado, nem destruidas pelo fogo eram habitadas por varias tribus de índios bravios que os portuguezes designavam pelo nome de Coroados. Eram assim denominados em razão da maneira, por que cortavam o cabe!lo; porquanto tinham por costume cortal-o no alto da cabeça, ficando os cabellos, longos e corridos. espargídos pelos hombros. Naquella época estes selvagens talaram as lavouras dos moradores da raça civilizada, que habitavam os sertões comprehendidos no valle do Parahyba e suas ímediações, incommodando-os seriamente, e forçando alguns delles a abandonarem os seus estabelecimentos recentemente abertos. Debalde o governo portuguez, que tanto se interessava pela colonização do Brazil, procurava pelas armas obstar a estas correrias, mas sem nada conseguir de effícaz. Os pobres colonos, que se obstinavam em permanecer em suas sesmarias, constantemente sobresaltados, só podiam trabalhar com as armas ao alcance de suas mãos. José Rodrigues da Cruz, dono da fazenda do Páo Grande, no munícipio de Vassouras, senhor de engenho e vastos canaviaes, e a quem o nosso município deve o seu desenvolvimento, homem intrepido e empreendedor, dotado de philantropia e animado de verdadeira caridade christá, procurou, por meios differentes dos empregados até então por seus compatriotas, fazer desapparecer este estado de cousa, tão afflictivo quão desesperador. Pondo-se em communicação com estes indios no anno de 1790, soube pela doçura de seu trato captar-lhes a confiança e inspirar-lhes respeito, prodigalisando-lhes immensos benefícios, e promovendo-lhes com o mais decidido afinco e maior desinteresse a sua catechese. Este benemerito cidadão em suas explorações ás margens setenptrionaes do rio Parahyba, acompanhado por seus escravos, atravessava essas invias florestas em picadas que mandava abrir, e levava para os indíos o sustento, as ferramentas para os seus rusticos trabalhos e remedios; entrava em suas choupanas e aproveitava para resolvel-os a receberem o baptismo, da confiança que lhes havia inspirado. Era ministro dos negocios ultramarinos no reinado de D. Maria 1a um notavel estadista D. Rodrigo de Souza Coitinho, depois conde de Linhares, um dos poucos fidalgos daquelle rempo apontados como illustrados e intelligentes. Era dotado de muita penetração e agudeza de espírito, protector e amigo dos brazíleiros. Chegando ao seu conhecimento os serviços relevantes que estava prestando José Rodrígues a bem da catechese dos Coroados, dirigiu-lhe o honroso officío cuja integra abaixo transcrevemos:

 

‘Sendo presente a S. M. que Vmce não só é um grande agricultor e tem com as mais louvaveís fadigas sido util ao Estado, mas também que Vmce. tem concorrido muito para promover a civilização dos índios, para que elles disponham á abraçar as santas luzes do Evangelho e igualmente se tem esmerado em fazer descobrimentos ao longo do rio Parahyba do Sul, é a mesma senhora servida que Vmce. informe a S. M. por esta secretaría de estado dos negocios da marinha e domínios ultramarinos, dos meios que possa ter descoberto: 1o, para facilitar e ampliar a civilização dos índios ao longo do sobredito rio Parahyba do Sul; 2o, para tentar estabelecer ou a navegação do mesmo rio, ou ao menos, a flutuação de madeiras em jangadas ao longo de todo o seu curso até a sua embocadura no mar: 3o, para poder estabelecer córtes de madeiras por todo o seu curso; 4o, e finalmente, para segurar todas as suas margens de qualquer invasão de índios bravos, ainda antes de serem civilísados. E a mesma senhora confia que Vmce. se dístínga em procurar-lhes todos os precisos e interessantes esclarecimenros que se desejam em semelhantes materias, não deixará de dar-lhe as mais decididas provas do seu reconhecimento mostrando-se Vmce. digno da confiança que tem inspirado a informação que ha que Vmce. tem até aqui obrado. Deus guarde a Vmce. Palacío de Queluz, em 22 de outubro de 1798. D. Rodrigo José de Souza Coitinho, Sr. José Rodrigo da Cruz”.

 

José Rodrigues, de sua fazenda, em data de 31 de outubro do anno seguinte, respondeu o officio do sabio ministro dos negocios ultramarinos, satisfazendo os esclarecimentos pedidos e solicitando auxilios do governo para em um plano mais vasto poder proseguir em sua empreza de domar e civilisar os índios. Não se esqueccu de propor ao governo um alvitre de grande ponderação, que era a concessão de sesmarias naquellas regiões, como meio profícuo de se povoar as margens superiores do rio Panahyba, em cujas aguas, não sendo praticavel a navegação por causa de suas cachoeiras, era todavia possível a flutuação de madeiras em jangadas. Expediu o governo portuguez o seguinte aviso, de 7 de março de 1800. dirigido ao vice-rei do Brazil, D. José Luiz de Castro, conde de Rezende:

 

“Illm. e Exm. Sr. — O principe regente, nosso senhor, manda remetter a V. Ex. a cópia inclusa da carta de officio que em data de 31 de outubro do anno proximo preterito de 1799 me dirigiu da Para­byba do Sul José Rodrigues da Cruz, a qual certamente foi de grande, satisfaçao para sua alteza real, que se dignou mandar remetter a V. Ex. a dita cópia, recommendando muito especialmente a V. Ex. que não só conceda ao sobredito José Rodrigues da Cruz o que nella pede, mas também, que auxiliem e promovam as suas idéas, procurando, pelos meios que elle propõem, o estender-se e adiantar-se a civilização e administração dos indios e a sua conversão ás luzes do Evangelho, animando-se igualmente por meio de sesmarias a povoação das margens superiores do rio Parahyba, devendo-se outrossim, tentar pela sua corrente á fluctuação das madeiras em jangadas, para cujo effeito dentro de pouco tempo se hão de remetter exemplares de uma obra que actualmente se está traduzindo, na qual se ensinam o methodo de se poderem fazer navegaveís os rios em que ha cachoeíras. Em consequencía do sobredito ordena S. A. Real que V. Ex. de accordo com o bispo dessa diocese envie á Parahyba do Sul missionarios doutos e que sejam igualmente fieis e zelosos ministros da pregação evangelica, os quaes catechisando e attrahindo com doçura e suavidade de sua doutrina e com a compostura de seu religioso e christáo comportamento de dignos e virtuosos exemplos, procurem converter ao gremío da santa igreja tantas mil almas pagans que entregues ao gentilismo vivem embrenhadas nos vastos sertões sem a luz e o conhecimento do verdadeiro Deus. Finalmente V. Ex. procurará em cumprimento destas reais ordens dar toda a possivel extensão aos dignos trabalhos e diligencias de um vassalo tão benemerito e de quem S. A. Real faz o maior e o mais justo apreço. Deus guarde a V. Ex. Palácio de Queluz, em 7 de março de 1 800. Dom Rodrigo de Souza Coitinho, Sr. Conde de Rezende, dom José de Castro. Está conforme, Dr. Manoel Jesus Valdetaro.”

 

 Em vista do citado Aviso e de um officio que o referido ministro da mesma data endereçara a José Rodrigues, fazendo-lhes certas estas communicações, dirigiu-se este á cidade do Rio de Janeiro, conseguindo á muito custo resolver que os índios mandassem quatro dentre os seus príncipaes, em companhia delle, tendo-lhe para este effeito offerecido em garantia a sua mulher e filhos. Alli chegados foram ter com o vice-rei conde de Rezende, afim do perante elle os indios reconhecerem a rainha D. Maria 1a por sua soberana, o que de feito fizeram, sendo nessa occasião apresentados com requerimentos, que José Rodrigues entregou ao vice-rei, cujas necessidades dos indios alli indicadas deixaram, contra a expressa e terminante determinação do já mencionado aviso, de ser attendidas. Regressando com os quatro caciques indios á sua fazenda, sem embargo do vice-rei deixar de dar cumprimento ás ordens que em nome do principe regente lhe foram transmittidas, José Rodrigues não sentiu-se desanimado. Com os recursos de que dispunha e ajudado por seu sobrinho João Rodrigues Pereira de Almeida, dono da fazenda de Ubá. continuou o seu afanoso emprehendimento. Entretanto, tornou-se bastante critica a sorte dos infelizes indíos por haver-se declarado entre elles a invasão da epidemia de bexigas. Durante quatro mezes José Rodrigues e toda a escravatura de sua fazenda não cuidaram de outra cousa senão de tratar doentes, caçar para lhes dar de comer, tendo-se então esgotado os seus mandiocaes e bananaes. A safra de sua lavoura ficou reduzida a uma terça parte.

 

Existiam então no seu engenho, casa de morada, olaria e mais casas rusticas, 154 indios entre homens e mulheres. Diante desta difficil e desesperada conjunctura não poude mais José Rodrígues proseguir além, sentiu desfallecer a sua coragem e energia, vendo exhaustos os seus escassos recursos. Dirigiu-se a D. Rodrigo de Souza Coitinho, fazendo-lhe o seu ultimo appello: e em carta de 26 de abril de 1801, levando-lhe ao conhecimentq estas tristes occurrencias e dando-lhe parte do resultado de seus esforços, terminava dizendo-lhe, que era impossivel continuar em boa harmonia e paz com os gentios á sua custa, por estar exhaurido e empenhado com dispendios desde 11 annos, e principalmente ha dous, que até tinha deixado de cuidar de sua lavoura. O ministro D. Rodrigo, que sempre se dedicara com particular desvello aos negocios do Brasil, e pelos seus assignalados serviços o nosso paíz tributa-lhe saudosa memoria, não podia deixar de attender ao justo reclamo de José Rodrigues e em officio de 25 de agosto de 1801 não só louvou o zelo e actividade com que elle se houve nas diligencias empregadas em benefício da incumbencia que lhe fôra confiada, como tambem agradeceu os seus serviços e os de seu sobrinho João Rodrigues Pereira d’Almeida.

 

Naquella mesma data escreveu ao vice rei e capitão general do estado, D. Fernando José de Portugal, depois conde e marquez de Aguiar (que vinha render no governo ao taciturno e sombrio conde de Rezende) para tratar com José Rodrigues sobre a civilisação dos Coroados e dos mais índios que a seu exemplo quizessem vir aldear, autorisando a este ultimo logo que o vice-rei chegasse á capitania, procural-o em nome delle ministro, afim de combinarem sobre as providencias que se devesse tomar para o melhor acerto e bom exito de tão interessante negocio. O mesmo ministro naquela occasião mandou apromptar os generos pedidos por José Rodrigues para na primeira opportunidade se remetterem á junta de fazenda da capitania do Rio de Janeiro para elle fazer distribuição pelos índios, e por Portaria de 31 do mesmo mez ordenou a referida junta que na parte que lhe tocasse houvesse de concorrer com todas as providencias que fossem nccessarias a bem do aldeamento dos índios, afim de servir de estimulo aos que voluntariamente se quizessem aldear, cooperando ella com todos os esforços para o bom resultado de um projeto de tão uteis consequencias como era o augmento da população, do territorio da agricultura e do commercio em geral, de que tão pouco se havia sabido aproveitar na America, e concluía lembrando á junta, que o principe regente tomaria por muito bom serviço tudo o que ella prestasse a este respeito, e que tambem do contrarie lhe estranharia severamente o procedimento. O vice-rei D. Fernando José de Portugal assumiu em 14 de outubro de 1801 o exercicío do governo do Rio de Janeiro, depois de ter deixado o governo da capitania da Bahia. Descendente da mui illustre casa dos marquezes de Valença no exacto cumprimento da seus deveres soube grangear em ambos os governos aquella estima e amor e bom renome, de que se fazem dignos os homens illustres por nascimento e muito mais por acções proprias, acompanhadas de virtudes pessoais, como as que elle possuia.

 

Comprehendendo o alcance das idéas adminístrativas do honrado ministro dos negocios ultramarinos, tratou de pol-as immediatamente em pratica. Expediu a Portaria de 21 de novembro de 1801 dirigIda a José Rodrigues, ordenando-lhe que passasse a aldear os índios Coroados nas margens superiores do rio Parahyba, no logar que lhe parecesse mais commodo, assignando-lhes o terreno estabelecido por lei para o cultivarem. Para esse fim tendo presente o Aviso de 7 de março de 1800, e conformando-se com o que o mesmo José Rodrigues lhe havia proposto, mandou publicar por editaes no logares publicos que as pessoas que no terreno daquellas margens pertencentes a esta capitania já tivessem obtido datas por sesmarias déssem principio á cultura dellas no termo de tres mezes, e não o fazendo lh’as podessem requerer outras quaesquer pessoas. Ao capitão das ordenanças da villa de Rezende, Henrique Vicente Louzada de Magalhães, ordenou para remetter da aldea de S. Luiz Beltrão ao referido José Rodrígues seis casaes de indios cívilisados e trabalhadores para ensinarem e applicarem ao trabalho os indios que iam aldear, e ao chefe de esquadra intendente da marinha determinou entregasse na cidade do Rio de Janeiro ao sobrinho de José Rodrigues, o capitão e depois commendador João Rodriguës Pereita de Almeida, para remetter á aquelle, os generos precisos para o mesmo estabelecimento. Tambem ordenou ao capitão das ordenanças da freguezia do Paty do Alferes, Ignacio de Souza Werneck, auxiliasse a abertura dos caminhos que fossem precisos para este estabelecimento do modo que fosse possivel, sem vexame dos povos, e que o mesmo auxilio prestasse para qualquer outra cousa que occorresse conduzente ao bom exito deste negocio, assim como para a compra dos generos com que José Rodrigues devia no primeiro anno por conta da fazenda real supprir para a sustentação dos índios.

 

Recomendou a José Rodrigues o avisasse quando fosse occasião opportuna, para elle fazer ir os missionarios para catechisar, instruir e administrar sacramentos aos mesmos índios. Dando execução á Portaria do vice-rei José Rodrígues, tratou de promover os meios indispensaveis de aldear os índios Coroados no centro do sertão d’alem Parahyba, no logar onde já vivia uma de suas tríbus, os Mitiris, que desejaram que fosse ali a séde de sua aldêa. Para chegar-se até aquelle ponto era preciso romper-se uma estrada pelo meio de sertão e que ao mesmo tempo que servisse de cornmunicação para os indios se prestasse igualmente a facilitar a cultura das terras, que por ordem real se repartiam pelo povo por títulos de sesmarias. Era bem de ver, que todos os interessados se reunissem de commum accordo, e levassem a effeíto a factura da indicada estrada, o que effectivamente conseguiram no anno de 1802, depois de José Rodrígues ter congregado n’aquelle serviço os indígenas, e os possuidores de sesmarias que ali tinham de estabelecer-se, a sua escravatura. A requerimento de José Rodrigues, o governo portuguez teve de concorrer com o sustento dos escravos, tendo despendído cerca de 500$ a 600$, por causa da grande extensão de leguas de que constara a estrada. Foi aberta esta estrada sobre uma picada anteriormente feita por José Rodrigues na occasiáo em que foi celebrar a paz entre os Coroados e os primeiros moradores da actual cidade de Rio Preto, que viviam em renhidas hostilidades.

 

Esta picada se estendia desde aquelle ponto até a fazenda do Páo Grande, que distava da séde da freguezia do Paty do Alferes, a que pertencia, duas leguas. Esta nova estrada, atravessando em todo o seu percurso um terreno constantemente accidentado e coberto de mattas virgens, tinha por ponto de partida aquella fazenda. Passara primeiramente pela de Ubá, sita no rio Parahyba, depois de se transpor do Porto Velho em canoas á outra margem, cujo territorio já faz parte do município de Valença, recomeçara d’ali a estrada demandando a fazenda da Forquilha, as actuaes povoações de Santa Thereza e Taboas, vindo surgir nessa cidade no bairro do Benfica. D’ali tomara a direcção da rua da Uruguayana, antiga dos Mineiros, e seguindo para a fazenda de José Rodrigues, que por este motivo recebeu o nome de Passagem, penetrara em mattas banhadas pelos rios das Flores e Bonito, sempre proseguindo até ligar esta cidade á do Rio Preto.

 

Este caminho, que havia estabelecido uma nova communicação entre o Estado de Minas e a cidade do Rio de Janeiro pelo antigo do Iguassú, servia igualmente de estrada central desse município a que os sesmeiros foram unindo varios ramaes, que conduziam às suas fazendas. Concluído este caminho, José Rodrigues, nos termos da Portaria do vice-rei, de 21 de novembro de 1801, tomou posse para os indios da sesmaria de sua aldeã, que antes em nome delles havia requerido, tendo obtido a concessão. Antes, porém, de construir a aldêa definitivamente, requisitou do vice-rei um director para os índios, isto é, um homem em que estes depositassem confiança, e lhes servissem de apoio e protecção á qualquer receio ou desconfiança; visto elle não poder exercer tal encargo, porque a sua estáda entre elles era constantemente interrompida, umas vezes indo á cidade do Rio de Janeiro para entender-­se com o mesmo vice-rei sobre o serviço e as necessidades do aldeamento, outras vezes á sua fazenda, onde logo que chegara se ajuntaram 200 ou 300 índios, e só entrando elle para o sertão é que elles tambem o faziam. Lembrara para preencher este logar do padre Manoel Gomes Leal, que já tinha sido nomeado capellão dos indios, e só esperava os paramentos e ornamentos da capella para fazer a sua entrada no sertão.

 

O vice-rei sem deferir a requisição de José Rodrigues, fez continuar a vigilancia dos indios sob sua direcção, durante toda sua vida. O padre Manoel Gomes Leal, que antes tinha sido vigario encomendado da freguezia de Sacra Familia em conformidade do citado Aviso de 7 de março de 1800, que determinara, que se mandasse para o aldeamento sacerdotes instruidos e moralizados para doutrinar os indíos nos principios da nossa religião e administrar-lhe os devidos sacramentos, fói nomeado pelo vice-rei por Portaria de 5 de fevereiro de 1803, capellão curado dos índios. O bispo D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castello Branco, por despacho de 2 de março do mesmo anno, a que se seguio a Portaria de tres do dito mez, conferiu-lhe a necessaria jurisdicção para construir, edificar ou levantar altar em sitio conveniente, benzer a capella, ou egreja que erigisse, precedendo-lhe faculdade régia, para administrar todos os sacramentos aos indios sem exceção de matrimonio, e finalmente de construir e benzer cemiterio. Vencia aquelle capellão a côngrua annual de 150$000.

 

Logo que o padre Manoel Gomes e os sesmeiros se dispuzeram a fazer a sua entrada no sertão, José Rodrigues preparou-se para fazer a edificação da aldêa, por isso requereu a junta da fazenda um barril de polvora e chumbo respectivo, oito arrobas de fumo ordinário, além de nova ordem ao commandante e de uma porção de jornaleiros para ajudarem e dirigirem os serviços com os indios, até que êstes tivessem as suas roças plantadas. O que foi favoravelmente deferido pela junta á 5 de maio de 1803, ficando José Rodrígues e o capitão do districto Ignacio de Souza Werneck autorisados á sustentarem os indíos por mais de seis mezes. Em consequencia do que passou José Rodrigues a constituir a aldêa, trabalhando neste serviço, os proprios indios e os escravos dos sesmeiros; assim, foi levantada a capella, feito o cemitério e foram construidas as choupanas dos índios. Foi a aldea, installada no anno de 1803, ficando conhecida com o nome de Valença, em obsequio ao vice-rei D. Fernando José de Portugal, sob cujos auspícios foi elIa fundada, o qual, como dissemos era descendente da illustríssima família de Valença.

 

A datar dessa épocha é que começa a operar-se a emigração das famílias dos primeiros povoadores de raça superior desse município; erão todos agricultores, pela mór parte antigos moradores das freguezias do Pati do Alferes e de Sacra Familía, os quaes vinham abrir os seus estabelecimentos nas primeiras sesmarias que foram concedidas n’esse senão. N’este numero contava-se a sesmaria da fazenda da Passagem que confinava com a aldêa, cujo primeiro dono foi José Rodrígues. A emigração das famílias vindas do Estado de Minas começou mais tarde. Assentava-se a aldea dos indios Coroados sobre uma das meias collínas, que se erguem na área hoje occupada pela cidade de Valença, na visinhança do sitio d’onde se destacava donairosa a actual egreja matriz. Segundo o Annuario do Observatorio do Rio de Janeiro do anno de 1835, a posição astronomica da cidade de Valença é de 22 gráos 14’ de latitude meridional e de 32’ de longitude occidental do Rio de Janeiro; sendo a sua longitude expressa em tempo, tambem referida ao sobredíto observatorio, de 2’ e 8”. A sua altura acima do nivel do mar é de 475 metros. Constava a aldêa de uma pequena capella erigida á Mãi de Deus sobre a invocação de N. S. da Gloria, firmada sobre toscos esteios de madeira com paredes de palmitos e ripas ligadas por cipó ímbé, embossadas por ligeiras camadas de barro e cobertas com ramos de palmeiras. Era o fanal que chamava á civilisação milhares de almas; as vozes argentinas de seo sino vibradas nos ares ecoavão pela primeira vez embebendo-se no sertão como a voz do Senhor penetrando no deserto. Ao lado da capella, protegido por uma cerca, um pequeno espaço de terreno servia de cemitério, em cujo centro elevava-se uma modesta cruz de madeira.

 

Este estreito recinto sagrado estava destinado a receber em seu seio os restos mortaes dos primeiros habitantes d’esta cidade. Rodeavam a capella pobres choupanas dispersas. Em toda a parte da aldêa, cheia de tócos e madeiras derribadas, em grande parte carbonisadas pela queimada e alastradas pelo chão, viam-se os vestígios da palhada destroçada de uma recente roça de milho, que ainda indicava a feracidade do solo que a sustentára. Lançando os primeiros fundamentos da aldêa, havia José Rodrigues mandado plantar esta roça para os indios, os quaes com a sua notoria imprevidencia não podendo resistir aos impetos de sua voracidade devoravam todo o milho ainda verde. Fechava todo o contorno uma matta sombria e cerrada, que mal dava passagem ao caminho, pouco antes aberto, e que punha em communicação a aldêa com outros pontos. E por toda circumvisinhança contavam-se poucos estabelecimentos ruraes, entremeados por todo aquelle sertão de magestosas e densas mattas virgens, e de ubérrimos terrenos de cultura. Assim, pois, a capella servia de centro á aldêa, e a aldêa servindo de centro á população agricola, oppunhão a invasão dos gentios não domados e asseguravam aos seos moradores dias de paz e de prosperidade. O padre Manoel Gomes, pelas funcções de seo cargo, devia tomar sobre si a direcção espiritual dos índios; mas este sacerdote deslembrado de sua elevada missão, pastor infiel, abandonara o seu rebanho para só dedicar-se á cultura das terras, que obtivera em sesmaria.

 

Por infelicidade dos índios. José Rodrigues achava-se alquebrado pelas fadigas, enfraquecido pelos annos, e acabrunhado pela molestía de que veio a fallecer. Com a sua morte, que teve logar em 1804, perderam os indios o seo protector e bemfeitor. Lastimaram os índios com sobejos motivos a sua perda. Durante todo o tempo que com elle conviverão, sempre manifestou-lhes a maior predilecção; como deu provas, formando a mais generosa resolução de civilisal-os e fazel-os abraçar o cbristianismo. N’este grandioso commettimento não poupou fadigas, nem sacrifícios alguns. Chegou a despender sommas consideraveis, em detrimento do futuro de sua mulher e filhos, para grangear-lhes a confiança. Apezar dos auxilios, que poude obter do governo portuguez por intermédio do ministro de Estado, conde de Linhares, os seos incansaveis esforços no que respeitava a catechese, ficaram completamente esterilisados depois de sua morte. Só por um systema seguido e sem interrupção é que se poderia fazer aos indigenas desse municipio um beneficio duradouro; fora mister que todos os brancos que se resolveram a viver entre elles fossem animados do mesmo espirito e tendessem ao mesmo fim. A realisação, pois, de sua idéa nunca seria a obra de um homem isolado, por mais nobre que fosse o seu caracter, por mais absoluta que fosse a sua dedicação.

Os relevantes serviços, porém, por elle prestados a esse município, quer com seo descobrimento, quer desarmando os indios de suas hostilidades contra os seos primeiros habitantes, quer attrahíndo para este canto do Estado do Rio de Janeiro as primeiras familias, que para ahi emigravam, fazem com que o seo vulto venerando, aureolado pelas mais nobres virtudes, se destaque imponente para ser collocado na altura dos seos mais benemeritos cidadãos, tornando-se credor da gratidão da posteridade, No entanto começaram a affluir de toda a parte para a aldêa, attrahidos pela fertilidade de suas terras, varios habitantes de raça européa, os quaes foram pouco a pouco assenhoreando-se de seos terrenos. Os filhos das selvas, porém, entregues a si mesmos, por todos abandonados, sem a menor educação religiosa, sem nenhuma instrucção, pois que não tinham quem lh’a dessem, inclinados á indolencia e á ociosidade, depois de misturados com os colonos, que invadiram a aldêa, só d’elles iam aprendendo os seos vicios. Bem depressa entraram a embriagar-se pelas tavernas, que alli se crearão. Reappareceo a parte das bexigas em sua aldêa, que segundo reza a tradição foi-lhes transmitida pela perversidade e cobiça de um advena que tinha interesse em extinguil-os para melhor apoderar-se de suas terras.

 

Grande mortandade, acompanhada de verdadeiro terror, estendeo-se sobre as miserrimas tribus indianas. Os índios acometidos d’esta terrivel enfermidade pelo contagio, no desespero e delírio de febre procuraram allívio atirando-se ás aguas dos rios, que lhes serviam de sepulturas. Assim tudo parecia conspirar-se para fazer desapparecer da face da terra os desgraçados índios. Sentindo-se elles por todos desamparados e repellidos, começaram a procurar novos asylos fóra de sua aldêa. Os Mitiris, como já vimos, occupavam a principio a aldêa de Valença, aos quaes José Rodrigues reuniu os Pitás, seos visínhos que viviam nas margens do rio Bonito e os Araris nas do rio das Flôres. Os primeiros passaram-se para os lados do Cambota e das Tabôas, e os segundos internaram-se na serra do Tunifel, formando lá a aldêa do Manoel Pereira, assim conhecida pelo nome d’este chefe, que para alli os encaminhou. Nas cabeceiras do rio das Flores, sua primitiva morada, estanciavam os Araris. Além destes indios, ainda existiam outras tribus não catechisadas, e vinham a ser, os Heminius, que povoaram as margens superiores do rio Bonito, e deram a aldêa posteriormente conhecida pelo nome de Conservatoria; e os Taypurús. que habitaram as margens do ribeirão de S. Fernando formando tanto a aldêa deste nome, como uma outra denominada do Tanguá.

 

Vamo-nos occupar um pouco com estes indios. Estas tribus tinham um typo commum, bem accentuado, todas procediam de um só tronco, os Goytacazes. Aos traços da raça americana tão differentes da branca, elles reuniam a fealdade peculiar de sua nação; Eram de estatura baixa, tinham a cabeça summamente grande, achatada no alto, e enterrada nas espáduas. Seus cabellos eram negros, compridos e desgrenhados. Ultimamente já não usavam cortal-os no alto da cabeça, como em outro logar dissemos. A pelle era de côr de bistre que elles costumavam a pintar com urucú. O peito e o ventre eram dilatados, as coxas e as pernas finas, as pontas dos pés eram largas e os calcanhares estreitos. Apezar da indolencia, que caracterisa todos os indios, os Coroados faziam pequenas plantações. Para satisfazer a paixão que tinham pela aguardente, resolviam algumas vezes trabalhar nas habitações dos colonos; mas apenas ganhavam com que embriagar-se, descansavam. Eram excellentes derribadores, bons canoeiros, e intrepidos conductores de balsas carregadas de madeiras atravez das cachoeíras do Parahyba. Faziam com bastante habilidade arcos e flechas; sabiam tirar estopa dos ramos novos de cecropia (embauba), e della fabticavam rêde de um tecido encrusado mui forte, mas grosseiro, com que faziam tangas; com argila cosida preparavam vasos d’agua, urnas funerarias, panellas etc. nisto limitava-se a sua industria. Vendiam o producto de sua caça, constante de aves e animaes sylvestres; assim como arcos e flechas, que faziam. Quando appareciam nos logares em que moravam os colonos, trajavam a roupa, que estes ou lhes davam gratuitamente, ou em troca de seu trabalho; em suas aldeolas tiravam-na para tomar as suas tangas.

 

Dentre elles alguns haviam recebido o baptismo; mas eram estranhos á religião christã. Os Coroados reconheciam um chefe eleito entre elles; mas a sua autoridade sobre homens que viviam dispersos nas florestas, devia necessariamente ser extremamente limitada. Podiam mudar de mulher quando bem lhes aprouvessem, e assegurava-se que a polygamia era usada entre elles. A mulher seguia o seu marido na caça, era ella que levava a pequena equipagem, como geralmente acontece entre os selvagens. Encerravam os seus defunctos em vasos de barro cosidos á maneira de grandes talhas, que depois enterravam no chão. Ha cerca de cinco annos foi descoberta na serra do Tunifel, (antiga aldêa do Manoel Ferreira) uma destas urnas funerárias, a qual sendo cuidadosamente desenterrada, teve pouca duração logo que esteve exposta á acção do ar; porquanto foi pouco a pouco dando estalidos e quebrando-se em pequeninos pedaços, ficando o vaso de todo desfeito. Dentro deste foram encontrados envoltos em terra trez ossos de cadaveres humanos, um de uma das cannelas e os outros de duas ccstellas. A população branca, porém, continuara a augmentar-se na aldêa de Valença. O padre Manoel Gomes prevendo, que, em breve, a sesmaria pertencente á aquella aldêa seria apossada pelos novos habitantes, antes que isso acontecesse, elle entendeu dever annexal-a á sua fazenda da qual era limitrophe. Mas como não pudesse requerel-a em nome proprio, porque a lei lh’o vedava, serviu-se do nome de um fâmulo seu que havia criado em sua casa, Florisbello Augusto de Macedo, figurando como procurador delle.

 

Foi apresentado este requerimento ao vice-rei em 1805, e no anno seguinte dada a informação de estylo pelo senado da camara do Rio de Janeiro, que foi favoravel á pretenção do requerente, por haver-se baseado em uma declaração escripta do capitão Werneck, que asseverava estar inculto e devoluto o terreno pedido, e por isso no caso de ser dada a sesmaria. Pelo que foi esta concedida ao peticionárío em 13 de novembro de 1808, passando-se-lhe provisão para se proceder a demarcação e medição judicial, e como nunca fosse apresentada a respectiva sentença, nunca se lhe passou carta. O padre Werneck, porém, que é o sobredito capitão, em um attestado de data posterior procurando melhor explicar-se sobre este assumpto, affirma que aquella sesmaria tinha sido outrora concedída aos indíos á requerimento do finado José Rodrigues, não se verificando por titulos legitimos, talvez por falta de agente que seguisse os seus termos. Se sua primeira informação fosse assim concebida, por certo que esta sesmaria não teria sido dada, como foi, á Florisbello; nem daria logar á Eleuterio Delfim Silva, cobiçal-a e procural-a usurpar á todo transe de Valença como teremos occasião de ver. O desenvolvimento sempre crescente, que foi tendo a aldêa de Valença com o correr dos tempos, fez logo sentir a necessidade de ser elevada á freguezía. Á requerimento do capellão padre Manoel Comes, por consulta da Mesa da Consciencia e Ordens e Resol. de 16 de agosto de 1810, concedeu-lhe a Provisão de 13 de Janeiro de 1812 a faculdade de alli levantar um templo á N. S. da Gloria, onde com decencia, e mais respeito se celebrassem os offícios divinos, e fossem administrados os santos sacramentos. Á esforços daquelle capellão, auxiliado pelos fieis, foi começado em 18l3 o referido templo, que é actual egreja matriz, cujas obras foram, terminadas muitos amos depois; e comquanto esta egreja não estivesse prompta, todavia já se celebravam nella os offícios divinos.

 

O reverendo bispo D. José Caetano da Silva Coutinho, por occasião de sua visita á esse logar, reconheceu a urgencía de se estabelecer nelle a séde de uma freguezía, em razão da posição vexatoria a que estavam expostos os seus habitantes, no que respeitava ao pasto espiritual; porquanto conforme eram os seus domicílios ou estabelecimentos ruraes situados neste ou naquelle ponto do terrítorio, assim ficaram uns sujeitos ao parocho da freguezia de Sacra Familia, outras ao da do Paty do Alferes, e outros finalmente ao da de Parahyba do Sul, achando-se, porém, todas á longas distancias das sédes d’estas freguezias. Por isso, e para que ao mesmo tempo servisse de promover o augmento da população. resolveu aquelle íllustre e piedoso prelado crear uma nova freguezia, o que fez pela Provisão de 15 de agosto de 1813 dada naquella aldêa, determinando-lhe os limites desde o rio Parahyba até o rio Preto, e’ desde as divisas da freguezía do Pirahy até ás do Parahyba do Sul. Para dirigir e servir a nova parochia, foi nomeado o mesmo capellão por aquella Provisão de 15 de agosto, com a qual requereu á Sua M. a sua confirmação. E tendo, em virtude do Aviso de 15 de dezembro de 1813, informado o reverendo bispo em 31 de janeiro do anno seguinte a favor da perpetuidade da egreja e do provimento dela no seu capellão, por outro Aviso de 21 de março do mesmo anno foi mandado o tribunal da Mesa da Conscíencía e Ordens consultar este negocio, que a Real Resolução de 19 de agosto de 1817 confirmou e autorisou, dando á parochialidade antiga a natureza de beneficio collativo e perpetuo. Foi primeiro proposto para parocho proprio em 1819 o padre Joaquim Claudio de Mendonça, por haverem fallecido o padre Manoel Comes em 1814 e o seu successor Fr. Paulo da Cunha em 1817.

 

Como Florisbello falecesse, e era exposto e não deixasse herdeiros conhecidos, lembrou-se Eleuterio Delphim da Silva, esperançado na facilidade com que aquelle havia conseguido a concessão da sesmaria da aldéa de Valença, de tambem requerel-a para si, o que de facto fez em 1815, tendo obtido identica concessão em 14 de outubro do anno seguinte. Por esta fórma, um individuo, que em nada se recommendava, e que só se distinguia pela sua audaciosa ambição e falta de escrupulos, por meios tortuosos impolgara a maior suavidade a sesmaria pertencente a uma povoação. Bem pouco faltou para que esta povoação nascente deixasse de existir, para com suas terras passar a pertencer a Eleuterio Delphim, que arrogara sobre ella o seu dominio. Si não fora o forte e poderoso apoio dado pelo genoroso diocesano, que tomara tanto a peito a defesa da nova freguezia, que ella havia inaugurado, e que a morosidade do expediente do governo tardara em confirmal-a, talvez a sorte de Valença tivesse sido muito diversa. Por influencia e conselhos seus subiram em nome dos índios aldeados sucessivos requerimentos á presença d’el-rei reivindicando os seus direitos; viva e tenaz resistencia foi opposta pelo capellão dos índios, e vigarío da freguezia, Fr. Paulo da Cunha, offerecendo por occasíão da medição judicial da sesmaria, já o seu protesto, já os seus embargos contra semelhante usurpação, e confiado na justiça da causa que defendia, aguardava tranquillo a decisão de D. João 6o. No emtanto Eleuterio Delphim, zombando de tudo e de todos, procedia á medição das terras de sua pretendida sesmaria, conseguida subbrepticiamente, sendo os respectivos autos julgados a seu favor, por sentença de 25 de janeiro de 1817, servindo de juiz o bacharel Joaquim Gaspar de Almeida.

 

A tão esperada justiça d’el-rei deu afinal mostras de si para attender de modo incompleto ao que lhe requeriam os indios, e pela Provisão de 20 de agosto ordenou, que elles fossem conservados nos terrenos que necessitassem para as suas culturas. Os executores desta ordem real procuraram mystifical-a em proveito de Eleuterio. Este cada vez mais acoroçoado não desanimou de seus intuitos, e lançou mão dos meios de que costumava servir-se. Promoveu contra os indios falsas representações, assignadas pela mór parte em nome de pessoas analphabetas, e fez notificar pelos meirinhos, com um fantasiado mandado do juiz almottacé no Rio de Janeiro e seu termo, os moradores da aldea com casas de vivenda e negocio para embargo de cultura de terrenos e obras na sua sesmaria.

 

Em vista desta attitude ameaçadora assumida por Eleuterio Delpbim, os colonos moradores na aldea de Valença dirigiram ao rei, em dezembro de 1817, o seu requerimento reclamando contra esta violencía; figuravam neste requerimento 33 assignaturas. Não podendo manter-se por mais tempo este estado de cousas, D. João 6o tratou de resolver este negocio de modo decisivo, expedindo o Decreto de 26 de março de 1819, que declarava que a aldea de Valença dos indios Coroados, estando destinada para villa dos mesmos indios por ordem regia de 25 de agosto de 1801, fora pedida de sesmaria como terreno devoluto por Florisbello Augusto de Macedo e depois por Eleuterio Delphim Silva e concedida com notoria obrigação, pois não se devia considerar devoluto um terreno marcado para a aldêa dos indios, com a egreja já edificada e alguns moradores na mesma aldêa. Pelo que declarava nulla a sobredita concessão feita a Eleuterío Delpbim Silva, e que o sobredito terreno pela recente demarcação, que tinha de um quarto de legua de testada e meia legua de fundos, fosse restituido aos mesmos indios para nelle se aldearem e cultivarem os terrenos que se lhes distinassem. Declarava mais que nomeava para director delles ao capitão Miguel Rodrigues da Costa, que devia observar o mesmo que tinha sido ordenado a José Rodrigues da Cruz, na sobredita ordem regia e portaria do vice-rei D. Fernando José de Portugal, de 21 de novembro ele 1801, e o mais que a este respeito além disto estava estabelecido para a civilisação dos indios. Determinava que nas referidas terras não se poderia mais fazer alienação alguma; e os moradores que ahi já se achavam com casas ou culturas fossem conservados e pagassem foros que se arbitrasse para a camara da vila dos mesmos indíos, que seria estabelecido na conformidade dos antigos usos aprovados pelas mesmas reaes ordens.

 

E o ouvidor da comarca como conservador dos indios fizesse registrar as sobreditas ordens e a recente demarcação do terreno e titulos de posse dos moradores nos livros competentes; auxiliasse o sobredito director e procedesse aos estabelecimentos necessarios, fazendo supprir do cofre as despezas precisas e dando conta pela Meza do Desembargo do Paço das mais aldêas poderiam estabelecer-se de indios nos lugares em que se achassem arranchados e dos terrenos que se lhes devessem marcar para ellas, pela preferencia que deviam ter nas ditas terras. A Mesa do Desembargo do Paço dando cumprimento a este decreto dirigiu ao ouvidor da comarca do Rio dc Janeiro, o desembargador Joaquim José de Queiroz, a Provisão de 8 de julho do mesmo anno, transmittindo as reaes determinações que lhe eram feitas. Este por sua vez deu immediata execução ao que lhe fora ordenado; remetteu ao director dos indios o capitão Miguel Rodrigues da Costa, grande quantidade de enxadas, machados, panellas, aço e ferro para foíces afim de se repartirem com aquelles indios, e o avisou para lhe participar os descobrimentos que fizesse nas outras povoações e informasse dos terrenos necessarios para se estabelecerem nelles outras aldêas em conformidade da Provisão de 8 de julho.

 

Deu outras providencias no sentido do arranjamento da aldêa de Valença, combinando o bom tratamento dos meios com a conservação dos actuaes possuidores para o que expedio editaes. O director dos indíos, porém, officiava á 12 de agosto, ao desembargador ouvidor da comarca, accusando o recebimento de tudo quanto lhe havia mandado, e pedindo-lhe alguns vestuarios para alguns indios attento o seu estado de nudez. Declarava que havia feito o reconhecimento dos indios e suas habitações e examinado os lugares mais commodos para os seus aldeamentos. Verificou serem das nações Ximinim e Pitás os indios que faziam parte das aldeias do rio Bonito, e de nação Taypurú as das aldeas do ribeirão S. Fernando, tributario do rio Preto; que além dos já bem conhecidos da aldêa de Valença, das nações Mirítís e Pitás, só restava-lhe reconhecer uma aldêa ainda brava, que se achava entre os índios de S. Fernando, e os do Bonito, nas grandes serras do mesmo S. Fernando.

 

Opinara que devia mandar medir no rio Bonito uma legoa de terras, onde os indios tinham já as suas aldêas, e encarecia a bondade d’aquellas terras, banhadas de varíos ribeirões e que achavam devolutas. Instara para que esta medição fosse logo feita afim de acommodar com a possivel brevidade os ditos indios. Quanto á aldêa de Valença dizia elle, devia ser destinada para aldêar os indios de nação Míriti, a qual já está acostumada com o povo da Freguesia, e não queria por forma alguma viver com as outras nações, nem estas com aquella. Em vista d’estas informações, que o ouvidor em data de 20 de setembro levou ao conhecimento da Mesa do Desembargo do Paço, dando seo parecer, declarou que se fazia preciso que medisse e demarcasse para aquelles indios uma legoa de terra nos descobrimentos que havia feito, ou o que comprehendesse suas povoações, afim de se reduzir os aldeamentos devolutos e desaproveitados, fornecendo-lhes ao principio algumas ferramentas para essa cultura facilitando-lhes a communicação com os povos visinhos para os ir civilisando. Sendo ouvido a respeito o procurador da coroa a 17 de janeiro do anno seguinte, conformou-se com a informação e parecer do ouvidor da comarca conservador dos indíos, sendo de parecer, que devia-se n’esta conformidade conceder os terrenos pelo ouvidor apontados, para os estabelecimentos e aldeiamentos dos novos indios, que descobrio o director capitão Miguel, segundo constava de seo offício; e proceder nas medições e demarcações apontadas pelo referido ouvidor n’esta sua informação e representação.

 

A Mesa do Desembargo do Paço por despacho de 29 de maio do mesmo anno mandou proceder na forma da informação e resposta, ordenando-lhe que se passasse ordem ao ouvidor da comarca para fazer as medições e demarcações da divisão do terreno de que tratava, submettendo-se depois tudo a aquella mesa para espedirem os títulos competentes. Assim nas margens do rio Bonito fundou-se uma nova aldêa, cuja capella curada, dedicada a Santo Antonio foi, por alguns annos filial da matriz de N. S. da Gloría, sendo doada aos indios uma de legua de terras em quadro ainda hoje conhecida pelo nome de Conservatória. Acha-se a povoação de Conservatoria, séde da freguezia de Santo Antonio do Rio Bonito á 22 gráos 16’ de latitude meridional e 400 de longitude occidental do Rio de Janeiro. A sua longitude expressa em tempo e referida ao meridiano do Ohservatorío Astronomico d’aquella cidade é de 2’ e 40” (Annuario do Imp. Observatorio do Rio de Janeiro do anno de 1855). Eleuterio Delphim, porém, não desistio de suas antigas pretenções á sesmaria da aldeia de Valença; prevalecendo-se da creação de nova aldêa de Conservatoria, sob o auspicioso pretexto de haverem extinguido os indios, ou terem sido removidos para o Rio Bonito, onde haviam aldeado os Ximinins requereu novamente as terras devolutas, por haver cessado a razão que o havia privado de semelhante graça. Os seos esforços não foram de todo mal succedidos, porque pelo Decreto de 5 de julho de 1827 ficou sem effeíto o de 26 de março de 1819, mandando-se que Eleuterio Delphim ficasse de posse da mesma sesmaria. Mas semelhante revalídação tão manifestadamente obrepticia não podia subsistir por muito tempo, porque não só o constituía verdadeiro donatario para exigir fóros dos moradores, aos quaes se havia reconhecido o direito do domínio util, como tambem offendia o direito da camara municipal respectiva, que como teremos occasião de ver, tinha sido creada e installada, e a quem se garantia o dominio directo. Portanto o Decreto de 19 de julho de 1828 declarava o de 5 de julho do anno anterior irrito, nullo e de nenhum effeito, e em seo inteiro vigor o de 26 de março de 1819.

 

Por occasião de acontecimentos occorridos no Estado de Minas, onde o governo provisorio desconfiando dos planos do principe regente, recusara prestar obediencia, D. Pedro de Alcantara, que pouco depois foi chamado primeiro imperador do Brazil, partio para Vílla Rica a 25 de março de 1822. Dentro de poucos dias voltou elle ao Rio de Janeiro deixando tranquillos os animos alli. Em seo regresso áquella capital foi a aldêa de Valença honrada com a sua presença. ahi pernoitou, hospedando-se em casa do vigario Joaquim Claudio de Mendonça. Acompanhava o príncipe o desembargador Estevão Ribeiro de Rezende, depois Barão e Marquês de Valença, na qualidade de seo secretario; e compunha-se o séquito do principe de alguns criados de sua casa. Foi este mesmo monarcha, que elevou esta aldêa á categoria de villa. Teve Valença predicamento de villa no anno immediato á nossa emancipação política, e cerca de um anno antes do pacto fundamental, a creacão d’esta villa se fez em virtude do Alvará com força de lei de 17 de outubro de 1823, como então se praticava. transcrevemos abaixo um documento d’esta materia. Referimo-nos á consulta da Mesa do Desembargo do Paço que servio de fundamento a decisão imperial, pela qual foi creada villa a aldêa de Valença, então districto da comarca do Rio de Janeiro. Eil-o:

 

“Consulta ácerca de uma informação do ouvidor da comarca do Rio de Janeiro sobre a erecção e creação da aldêa e freguezia de Valença em villa a 13 de janeiro de 1823. Tendo ordenado ao ouvidor da camara do Rio de Janeiro informasse com as noções necessarias a bem da creação e erecção da vila de Valença por ordem regia de 25 de Agosto de 1801 enunciada no Decreto de 26 de março de 1819, em consequencia do qual se lhe havia expedido a ordem de 8 de julho do mesmo anno; saptisfez elle pela maneira seguinte: Manda V.M. informar com as noções necessarias a elevação e erecção de uma villa na aldêa de Valença. E em observancia da régia provisão de 8 de julho de 1819 e decreto de 26 de março officiei ao director dos índios da dita aldêa para me informar da sua capacidade e população da freguezia e pela sua resposta e mappa ns. 1 e 2 se vê ter a aldêa 45 moradores e a freguezia 1971 habitantes com setenta e tantas fazendas e tomando proximadamente informações pessoalmente do dito director e outras pessoas. conheci haverem muitos indios para oéste da freguezia que deveriam chamar-se á directoria d’aquella aldêa e por isso ordenei a aquelle director fosse examinar e me informasse com um mappa circumstanciado, ao que satisfez em numero 3 e 4 como pelo alvará de 4 de setembro de 1820 vem a freguezia da Parahyba a pertencer a nova villa do Paty do Alferes, e o termo de Valença ficaria muito limitado e por outra parte convém incorporar neste o mais possivel os indios dispersos pelos sertões da parte do oeste, será conveniente que para esta se estenda aquelle termo além da freguezia, e por isso me parece que este chegue pela margem esquerda do rio Parahyba até o ponto em que neste faz barra o ribeirão do Serro, fig. 6 no mappa, e que desta se tire uma linha a rumo de noroeste 4 gráos a norte até encontrar o ribeirão Patriarcha, fig. 17, e por este abaixo até a sua barra no rio Preto, e pelo Sul o rio Parahyha desmembrando assim aquelle districto dos desta cidade, S. João do Príncipe e Rezende, o que se torna mais vantajoso aos povos daquelles sertões, pela grande longitude em que estavam da capital do distrícto. V.M. porém, mandará o que fôr servido. Rio de Janeiro, 23 de janeiro de 1821. — O ouvidor da comarca, Joaquim José de Queiroz.

 

Da qual informação e documentos que nella se trata e sobem com esta á presença augusta da magestade imperial dando-se vista ao desembargador procurador da corôa, soberania e fazenda nacional, respondeu elle nos termos seguintes:

 

Conformo-me com a informação e parecer do ouvidor da comarca para que tenha logar a erecção da aldêa de Valença, em Villa de Valença, e o termo designado na mesma informação, ficando desde logo separados daquelles outros a que pertenciam os respectivos territorios que constituem o mencionado terreno, juntamente com todas as rendas que lhes são pertencentes: designando-se S.M. conceder mais para patrimonio da dita villa duas sesmarias de meia legua em quadro, conjunctas ou separadas (onde houver), para serem aforadas em pequenas porções e emphateosim perpetuo na forma da lei de 23 de julho de 1766, e ordenar também que sejam creados para a mesma villa os juizes ordinarios e dos orphãos, vereadores, procurador da camara, almotacés e escrivães respectivos, na fórma praticada na creação que de outras se tem feito e consta dos alvarás das suas creações. O que visto, parece á mesa o mesmo que ao ministro informante e ao desembargador procurador da corôa da soberania e fazenda nacional, com os quaes se conforma V. M. Imperial porém, resolverá o que houver por bem. Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1823. — Monsenhor Miranda, Canto, Velloso, Costa. Foram votos desembargador monsenhor Almeida e Antonio Felippe Soares de Brederode. Despacho. — Como parece. Paço, 3 de fevereiro de 1823. Com a rubrica do imperador dom Pedro 1, José Bonifacio de Andrade e Silva”.

 

A installação porém da villa, só teve logar annos depois; porque logo após sua creação deu-se a dissolução da Constituinte pelo primeiro imperador, seguindo-se a deportação dos tres irmãos Andradas e de mais tres deputados, para a França. Esta medida violenta praticada pelo monarca veiu aballar profundamente o nosso paiz, perigando ao norte a integridade do imperio. Emquanto não foi supplantada a celebre Confederação do Equador por meio das sanguinarias commissões militares, não cessou em nosso paiz a perturbação da ordem pu­blica. Por isso só a 12 de novembro de 1826 foi que poude ser installada a villa, sendo este acto feito com todas as solennidades do estylo. O ouvidor da comarca do Rio de Janeiro, posteriormente conselheiro, Dr. Antonio Pereira Barreto Pedroso, que foi encarregado de installar a villa (a cuja jurisdicção pertencia) expediu com a devida antecedencia editaes convidando o povo para assistir a esta solennidade. Mandou levantar debaixo das ordens da Mesa do Desembargo do Paço, e á custa dos moradores da nova villa e seu termo, o pelourinho, casas da camara, cadêa e as officinas do conselho; e organizou as posturas da referjda camara, que foram confirmadas pela respectiva Mesa.

 

O pelourinho que era feito de madeira lavrada com as peças de ferro competentes foi erguido na antiga praça da Cadêa, hoje do Visconde do Rio Preto, assim denominada pela camara como uma grata recordação aos relevantes serviços prestados a essa cidade por aquelle benemerito cidadão de saudosa memoria. Bem proximo do pelourinbo, na mesma praça, levantaram um sobrado de acanhadas proporções, pintado por fóra de óca amarella, em cujo pavimento superior funccionava a camara, as audiencias dos differentes juizos, e as sessões do jury; e o pavimento terreo servia de cadêa. O pelourinho e a cadêa foram destruidos por ordem da camara em 1853, e desta época em diante foram os habitantes desta cidade edificando no largo varios predios, fazendo delle uma das praças mais elegantes dessa cidade. Como a organização das nossas municipalidades antes da lei de 1 de outubro de 1828 diferia do que é hoje, para melhor intelligencia do citado Alvará de 17 de outubro de 1823, vemo-nos forçados a descer a certa ordem de explicações. Para o governo da Camara de Valença, dispunha o Alvará, haverão dous juizes ordinarios, um dos orphãos, tres vereadores, um procurador do conselho, e dous juizes almotacés, e bem assim dous officios de tabellião do publico, judicial e notas, um alcaide e o escrivão de seu cargo; ficando annexo ao offício do 1o tabellião os de escrivão da camara, almotaceria e cizas, e ao segundo tabellião de escrivão de orphãos. Segundo a antiga organização judicial havia em cada termo um juiz de fóra, ou dous ordinarios, conforme determinara o rei. Tinham absolutamente as mesmas funcções quer no civel, quer no crime, e não pouco mais ou menos os ultimos juizes na híerarchia judiciaria. O juiz de fóra de nomeação do rei, não pertencia ao logar para onde era nomeado, dahi lhe vinha este nome; devia ser formado em leis, exercia a sua jurisdicção para onde era nomeado por um trienio, e vencia um ordenado pago pelo governo.

 

Pelo contrario os juizes ordinarios, escolhidos pelo povo entre os cidadãos mais recommendaveís, eram leigos, não recebiam vencimentos. Para nomeação dos juizes ordinarios, o ouvidor se transportava em cada termo de sua comarca. O povo não escolhia immediatamente os juizes ordinarios, mas nomeava seis eleitores que escolhiam os juizes. Cada cidadão apto para votar dava o seu voto de viva voz ao ouvidor, que inscrevia os nomes e fazia apuração. Os eleitores nomeados se apontavam em tres pautas de dous eleitores, cada pauta enunciar o voto por escripto. O ouvidor recolhia uma segunda vez os suffragios e proclamava a sua escolha às pessoas contidas em uma das tres linhas. Asseverava-se, que os suffragios eram comprados, e quasi sempre sabia-se previamente quaes aquelles que seriam nomeados. Os cidadãos que sahiam eleitos, tiravam do corregedor ou do desembargo do paço carta da confirmação. Obtida a confirmação, davam os eleitores juramento de bem servir, e tomavam posse, sem o que não podiam fazer acto algum do official. O modo de eleição que acabamos de descrever chamava-se eleição de pelouros.

 

Havia um outro modo que se chamava eleição de barrete; eis em que casos o empregavam. Quando um cidadão tinha sido nomeado da primeira maneira, e que dava razões legitimas para não occupar o lugar, ou quando fallecia. ou tinha impedimento prolongado, verbi gratia, ausencia fora do paiz, a camara se reunia sem que o ouvidor fosse obrigado á ahi comparecer. Recebia os votos dos cidadãos, e o lugar se dava áquele que reunisse o maior numero de suffragios. Os officiaes assim eleitos não precisavam obter cartas de usança, começavam a exercer os seus officios depois de prestarem o juramento, servindo-lhes de titulo a propria eleição e a acta de sua nomeação. Como vimos, não havia para cada termo senão um juiz de fóra ou dois ordinarios. A razão desta differença é facil de perceber-se. Os juizes de fóra tendo vencimentos eram indemnisados dos sacrifícios que exigiam delles os deveres de seu cargo. Os juizes ordinarios, pelo contrario, só recebiam 100 réis de cada sentença e eram nomeados dous ao mesmo tempo, para que alternadamente pudessem, durante um mez, preencher as suas funcções de juiz, e ir-se occupar com os seus negocios particulares. Eram os juizes de fora ou os juizes ordinarios, que presidiam a camara, a qual era estabelecida na sede de cada termo. Os camaristas eram eleitos pelos cidadãos da mesma maneira que os juizes ordinarios. Tres de entre elles tinham o nome de vereadores, e o quarto que era thesoureiro, chamava-se procurador do conselho. Releva observar, que esta eleição se fazia em uma das oitavas do Natal, convocando a camara ao povo, e fazendo eleger as pessoas que haviam de servir nos tres annos seguintes. A autoridade dos vereadores era meramente econômica e administrativa. A camara devia reunir-se duas vezes por semana: deliberava, decidia; mas o poder executivo pertencia ao presidente, isto é, ao juiz de fóra ou ao ordinario. Em cada termo, dous magistrados chamados almotacés preenchiam, sem receberem vencimentos, funcções judiciais e policia administrativa.

 

Eram escolhidos todos os dous mezes pelas camaras, e podiam ser reeleitos muitas vezes seguidamente. Um delles era incumbido da policia na sede do termo, e o outro devia exercer semelhante autoridade nas povoações que faziam parte do mesmo territorio: mas como a jurísdicção de cada villa era extremamente extensa, o ultimo almotacé mal podia inspeccionar as parocbias menos remotas. O alcaide (pequeno) era official de justiça que usava de vara, insignia da autoridade publica. Desempenhava o seu cargo nas diligências em que fazia preciso defender a autoridade judicial e rebater a violencía de alguem como nos autos de penhoras, embargos, prisões, etc. Estes diversos funccionários, dos quaes acabamos de fallar foram extinctos pelas differentes reformas porque tem passado a nossa legislação. Assim, a organização judíciaria do imperio acabou tanto com o juiz de fóra, como com os ordinarios, Cod. do Processo Criminal, art. 8. e Disposição Provisoría, art. 18. Já a constituição, no art. 153 desconhecia os segundos. O alvará de 17 de outubro de 1823 estabeleceu os limites do município de Valença. Em virtude desta lei o seu territorio é o comprehendido na margem esquerda do Parahyba desde o ponto em que este rio faz barra com o ribeirão do Serro, de onde é tirada uma linha recta ao rumo de noroeste quarta a norte até encontrar o ribeirão Patriarcha, e por este abaixo até a sua barra no Rio Preto, cuja linha fica divisoria por oeste; por léste a freguezia da Parahyba do Sul; pelo norte o rio Preto; e pelo sul o mesmo rio Parahyba, ficando assim desmembrado o antigo districto de Valença dos termos do Rio de Janeiro e villas de S. Joáo Marcos e Rezende com todos os respectivos rendimentos, que passaram a pertencer á nova villa. Comquanto o mesmo alvará de 17 de outubro concedesse para patrimonio da nova villa duas sesmarias de meia legua em quadro, conjunctas ou separadas, onde as houvesse devolutas para serem aforadas em pequenas porções e em fateusim perpetuo, e com o laudemio da lei, na forma do alvará de 23 de julho de 1766; todavia só poude constituir esse patrímonio a antiga sesmaria da aldêía de Valença, cuja concessão fôra, destinada á mesma villa por D. João VI pelo alvará de 26 de março de 1819, visto não haver mais no município, ao tempo da creação da villa, terreno algum devoluto.

 

Conforme consta do livro do tombo da Camara Municipal desta cidade, a configuração do terreno desta sesmaria é um trapezio, como se vê do respectivo mappa e medição, cuja testada confronta com as terras que pertenceram a D. Joaquina de Rezende, viuva de José Rodrígues da Cruz e contém correndo pelo angulo de 47o e 30’ no quadrante do sudoeste, segundo a variação da agulha: o lado que confronta com as sesmarias que pertenceram a Hypolito Pimentel e Joanna Maria da Conceição pelo angulo de 41o e 30’ no quadrante sudoeste, 1920 braças; o outro lado parallelo que confronta com a sesmaria que foi do padre Manoel Gomes Leal 1918 braças contadas pela derrota, e o lado perpendicular a estes, que confronta com os terrenos que pertenceram ao Marquei de Baependi, correndo pelo ritmo de léste 780 braças. Pela lei prov. n. 23 de 14 dé abril de 1835 art. 5o o producto da taxa ou fôro annual sobre as terras constitue renda especial da Camara, tendo sido preferidos para foreiros os que nella se achavam estabelecidos. Em virtude do art. 6o da citada lei, a alludida renda devia começar a ser cobrada pela Camara de 1 de julho do mesmo anno.

 

A lei provincial, porém, n. 8 de 30 de outubro de 1837 autorisou a Camara Municipal a dar por aforamento as terras que constituem o seu patrimonio, estipulado nos contractos os preços estabelecidos na citada lei n. 23 de 1835. Depois da creação do municipio de Valença a sua população augmentara-se, compondo-se ella de portuguezes, ou de seus descendentes, de raros outros europeus, de uma raça cruzada, de africanos e de poucos indigenas, os quais iam pouco a pouco desapparecendo. Pereciam estes ultimos em suas aldêas ou ceifados pelas bexigas, que por mais de uma vez os accommeteu, ou por um regimen, que não era aquelle sob que se tinham multiplicado tão extensamente. Comprehende-se que a vida errante, a que estavam antes sujeitos, era pouco compativel com os habitos da vida sedentaria, a que foram compellidos, depois de aldeados. Eram suas aldeas lugares de miseria. Batidas as florestas, esgotados os viveiros, tornavam-se escassas a caça e a pesca, e os índios presos ao solo ficaram reduzidos ás minguadas colheitas de suas roças, que não lhes prestavam uma alimentação abundante e nutritiva, como a de outrora. Com a habitação determinada, sem permissão de transpor as raias de seus aldeamentos, depois que o terrirorio foi todo dividido entre os sesmeiros, os indios eram acommettidos de nostalgia, abandonavam-se á tristeza e a inercía, perdiam seu antigo humor, sua agilidade e primitiva intellígencia. Contribuia ainda para o seu fatal aniquilamento o alcoolismo e toda a sorte de desregramentos, vicios e molestias adquiridas pelo seu contacto com a população oriunda da Europa e da Africa. Assim foi-se extinguindo neste município, até completamente desapparecer em nossos dias, esta raça desventurada, de todo desaproveitada, para ser substituida cxclusivumente, como foi, pela raça civilisada e africana - (30)

 

(30) Dicionário Geográfico do Brazil    P    Z, págs. 707 a 714 – Rio de Janeiro – Imp. Nacional – 1899.

 

 

 

 

 

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