LEONI IÓRIO
CAPÍTULO 2
VALENÇA ALDEIA
PARTE 3
CLICAR SOBRE OS TÍTULOS PARA IR DIRETO AO ASSUNTO:
D. JOÃO VI ESCLARECE A SITUAÇÃO DOS COROADOS
Com
a divisão das terras da região, os selvagens, reduzidos a um pequeno número e
desanimados com a morte de um de seus maiorais — o Bucaman
— começaram a passar para outras hordas, para o lado das florestas de
Santo Antônio do Rio Bonito (Conservatória), à pequena distância da
fazenda de Ubá.
Conquanto
haja uma versão de que os índios foram levados a desertar em face do
estabelecimento de uma colônia suíça, nas proximidades do Rio de Janeiro,
sabe-se, no entanto, que tal colônia nunca existiu, e só havia, nessa época,
descendentes de portugueses.
Joaquim
Norberto de Souza Silva, em sua Memória
Histórica e Documentada das Aldêias de Índios, faz o seguinte comentário:
“A
aldeia de Nossa Senhora da Glória de Valença dá
a conhecer o desleixo na educação dos índios, o abandono de seus interesses
e a sua dispersão; veremos aí a relutancia em se lhes pretender roubar a
sesmaria que possuiam, e onde haviam edificado a sua capela. Enfim, todos êles
oferecem exemplos tristissimos de péssima administração que por um destino
acerbo e infausto lhes coube.”
Com
o falecimento do fazendeiro José Rodrigues da Cruz, cuja falta tornou-se
irremediável, era preciso que se iniciasse uma forte reação.
E
os índios começaram a reagir.
Em
requerimento às autoridades competentes, datado de 1816, os Coroados
faziam decisiva representação contra um tal Eleutério Delfim da Silva que
lhes havia, por meio ilegal, se apossado de uma sesmaria. O pedido era justo,
porque as terras eram aquelas mesmas que, há muitos anos, lhes haviam sido
destinadas para fundação e patrimônio da igreja. Acompanhado dos atestados
de D. José Caetano da Silva Coutinho, bispo do Rio de Janeiro, e de Inácio de
Souza Werneck, o requerimento se apresentava com o seguinte texto: (18)
(18)
—
Rev. Inst. Hist. e Geogr. do Brasil
— pág. 518 •— N. 15 — 1854.
Senhor.
— Aos pés de v. r. magestade se prostam humildemente os indios da aldêa de
Valença entre os rios Parahyba e Preto, que ha vinte annos têm, a honra e
ventura de conhecerem a suave e gloriosa soberania de v. m., sendo até esse
tempo uma tribu da nação dos Coroados, miseraveis selvagens vagabundos pelos
mattos, sem Deos, sem rei e sem lei. Agora confiados na generosa protecção de
v.m. vem, pedir a continuação dos favores e graças, que já se lhes, tem
feito, como lhes prometteram, especialmente na concessão de uma porção de
terreno para o seu estabelecimento, de que até agora gozavão, mas de que forão
esbulhados pela sesmaria que do mesmo terreno se acaba de dar a um Eleuthério
Delfim pelo despacho d’esta côrte.
Ainda
é mais justa a pretenção dos supplicantes pela razão de que o terreno que
pedem é aquelle mesmo que ha muitos annos está designado, para fundação e
patrimonio da igreja matriz, cujas obras vão agora continuando com maior força,
e que se verão embargadas e perdidas no caso de realisar-se a dita sesmaria
obrepticia e subreptíciamente alcançada. Com pouco se contentavão os
supplicantes não pedindo mais para os dous fins do seu estabelecimento e
patrimonio da igreja do que o espaço de um quarto de légua contado do logar da
matriz, como centro, para todas as partes do horizonte.
E
para que esta nova graça se lhes guarde sempre inviolavel para o futuro, livre
de novas pretenções injustas de homens ambiciosos, se animão os supplicantes
a propôr a v. r. magestade para que se digne confirmar-lhes por seu director
e zelador a Francisco Joaquim Arêas, alferes de milicias, um dos visinhos mais
bem-quistos d’aquelle sertão, o maior amigo dos supplicantes e mais capaz de
administrar com honra e desinteresse os bens dos indios e o patrimonío da
igreja. Os factos expostos vão abonados pelos documentos inclusos. Pedem a v.
r. magestade que pela sua grandeza e clemencia lhes mande entregar o dito
terreno sem embargo de qualquer outra mercê, que obrepticia e subrepticiamenre
tenha sido extorquida. F.R.M.”
Damos
a seguir os documentos referidos no requerimento supra:
N.
1 — Dom José Caetano da Silva Coutinho por mercê de Deus e da sancta sé
apostólica, bispo do Rio de Janeiro, capellão-mor de s. m. fídelissíma e do
seu conselho, etc.
Attestamos
que por diligencias de José Rodrigues da Cruz, senhor da fazenda e engenho do
Pau Grande, e por providencias do vice-rei que então era do Brazil, o illmo. e
exmo. marquez de Aguiar, se subjugou e mandou civilisar e douctrinar no sertão
de Valença, uma tríbu dos indios Coroados, destinando-se-lhes terreno para
cultivarem e para se fundar uma aldêa e igreja parochial, não só para elles
mas tambem, para os moradores que se fossem estabelecendo no mesmo sertão.
Attestamos que muitos dos ditos indios se acham presentemente baptisados e que a obra da igreja tem ja muitos bons principíos: mas agora sabemos com grande mágua que todas estas tentativas ficavam perdidas com grande damno da religião e do estado, pela posse do mesmo terreno que pretende tomar Eleuterio Delfim; e que seria muito conveniente que s. magestade, que Deos guarde, acommodasse em outro terreno devoluto, confirmando aos indios e á igreja o terreno que elles pedem.
Dada
e passada na residencia episcopal do Rio de Janeiro, aos 7 de Dezembro de 1816,
debaixo de nosso signal e sello de nossas armas. (Lugar do sello). José, bispo
capellão-mor.
N.
2 — Ignacio de Souza Werneck, professor na ordem de Christo, presbytero
secular.
Côrte
do Rio de Janeiro, aos 9 de Dezembro de 1816. — O padre Ignacio de Souza
Verneck.
N.
3 — Illmo. e exmo. sr. — Tenho a honra de levar à respeitavel presença de
v. ex. revma. o grande vexame em que se acham os índios do sertão de Valença,
capitania e comarca do Rio de Janeiro, porquanto depois de tantos vexames
passados e sabidos veio Eleuterio Delfim, a tirar e fazer medir por sesmaria o
territorio dos indios, sendo este territorio para o aldeamento feito á custa da
real fazenda por José Rodrigues da Cruz, segundo as reaes ordens que teve; além
de que este miseravel povo indiatico não tem hoje quem o proteja e nem o seu
direito defenda senão a piedade de v. exma., porquanto elles esperavam no
fallecido vigario Paulo da Cunha um pai, mas este lhes faltou.
Eu
não entro, exmo. sr., n’esta exposição senão como quem ha pouco acabou de
fazer ver a esta nação que devia viver mansa e pacifica, vivendo assim entre
os Portuguezes, mas estes abusando ja da sua mansidão destroem-lhes suas
plantações e tiram-lhes suas terras.
Parece
justo não persistir a sesmaria tirada e medida sobre as terras decretadas para
o aldeamento, construcção da matriz já principiada, e onde se celebra o
sancto sacrificio da missa e se administra o pasto espiritual a toda a
freguezia, além, de que esta matriz carece ter uma extensão de terras para os
lados, não só para se organizar maior população, como mais reverencia ao sanctuario. Por cujas razões parece justo, conservando o territorio para o
aldeamento indiatico porque não é tão pequeno o número de indios que ainda
existe, além da producção annual. Embora queiram alguns certificar o contrário,
porém estes fallam interessados nas terras indiaticas, e eu fallo sem
interesse algum, pois moro e vivo na capitania de Minas, e como é publico o
quanto v. exma. ampara esta nação afim de congraçarem unanimemente com a
religião catholica, além de v. ex. revma. ser dotado de um animo cheio de
piedade, é por isso que me deliberei a levar á respeítavel presença de v. ex. revma. esta minha exposição que parece justa.
Deos guarde a v. ex. revma. por muitos annos. Fazenda da Conceição do Rio Preto, 14 de Março de 1817. De v. ex. revma. o menor subdito e criado Miguel Rodrigues da Costa.
Não
lhes faltava quem por eles se interessasse vivamente: em sobejas considerações
sobre a situação da Aldeia de Valença, o bispo do Rio de Janeiro, D. José
Caetano da Silva Coutinho, fazia, em seu atestado de 7
de dezembro de 1816, (19)
a sua exposição, ponderando que José Rodrigues da Cruz, então senhor das
fazendas do Pau Grande e de Ubá, por deliberação do Vice-Rei do Brasil, o
marquês
de Aguiar, subjugara e civilizara, doutrinando com ótimos resultados, no sertão
valenciano, uma tribo dos índios Coroados,
e lhes distribuíra terras para cultivarem e para nelas se fundar uma aldeia
e igreja paroquial. Dava, ainda, às autoridades imperiais o seu testemunho de
que muitos índios já tinham sido batizados, e, ao mesmo tempo, lamentava,
com profunda mágoa, o enorme dano que se verificava para a religião e para o
Estado, ante a posse indevida de terras por indivíduos inescrupulosos. Apelava,
então, o bispo, para Sua Majestade, para que se concedesse a Eleutério Delfim
outro terreno devoluto, confirmando aos índios e à Igreja as terras que
tentavam recuperar.
(19)
—Rev.
Inst. Hist. e Geogr.
do Brazil — pág. 519 — Doc. No. 1 — No.
15 — 1854.
Não
pequena fora, também, a influência do finado presbítero Inácio de Souza
Werneck, que atestava, (20)
como testemunha ocular, os relevantes serviços prestados por José Rodrigues da
Cruz na civilização dos índios Coroados,
que, pela dedicação daquele fazendeiro, já não mais tinham aquele espírito
de ferocidade que os caracterizava. Confirmava o padre Werneck que, sendo
Capelão das Ordenanças e comandante da freguesia da Conceição do Alferes de
Serra Acima, fora, a esse tempo, encarregado pelo marquês de Aguiar, de prestar
a Rodrigues da Cruz todo apoio e auxílio necessários ao serviço de catequese
dos índios, inaugurado que foi com a abertura de uma estrada pelo centro da
mata, de modo a facilitar as comunicações com os indígenas, e bem assim a
cultura das terras que, por ordem real, foram repartidas em sesmarias, sobre
cuja situação foi o padre Werneck incumbido de informar à Sua Majestade.
Entre essas sesmarias uma foi a que requereu Rodrigues da Cruz, em nome dos índios
Coroados, no lugar onde se iniciou
a construção da igreja, das quais, por não
possuírem legitimidade de posse regular, obteve o Capelão e diretor
dos índios, padre Gomes Leal, um quarto de légua de testada com meia légua de
fundo, em nome de Florisbelo Augusto de Macedo, seu fâmulo, criado na casa, —
destinado para servir de patrimônio da igreja, para a casa de residência do pároco
e para a construção de um asilo para os selvagens.
(20)
—Revista do lnst. Hist. e Geogr.
do Brazil — pág. 519 — doc. No. 2 — No. 15 — 1854.
Do
“Jornal do Comércio”, de 26 de maio de 1911, extraímos o seguinte documento
fornecido pelo sr. André Werneck, intitulado: A
civilização dos Indios nos tempos coloniaes:
Senhor.
Ignacio de Souza Werneck, capitão das ordenanças, encarregado da aldeação e
civilização dos Indíos Coroados que se estabelecem além das margens do rio
Parahiba, representa a V. A. R., a bem daquelles indivíduos e ainda do socego
publico de todos os proprietaríos das fazendas alli situadas o seguinte: Que
José Rodrígues da Cruz, hum dos maiores e mais util fazendeiro daquelle lugar,
conhecendo a difficuldade de prosperar a lavoura emquanto fossem invadidas as
fazendas por aquelle gentio bravo, tentou domestical-o, e poude conseguir a
custa de muitos prejuizos e dispendio que elles se co-naturalizassem com os
cultivadores, que não os atacassem, e fizessem hospitalidades; elevando as
suas vistas a maior vantagem de os aldear e civilizar, mereceu que V. A. R. lhe
aprovasse este plano e ordenasse a execução à custa da sua Real Fazenda; com
effeito pozse em obra hum tão justo estabelecimento, e se conheceu
imediatamente a sua utilidade, pois que os indios deixando de infectar as
propriedades particulares, segundo o chamamento dos já domesticos, chegavão-se
à povoação, que se lhe destinava e empregavão os seus braços na cultura, e
davão esperanças de que seus filhos e descendentes desaferrados do gentilismo
e da bravesa pudessem ser aptos para outros misteres. Esta diligência bem que
fosse toda a principio de José Rodrigues, comtudo desde que se designou a aldeação
foi tão bem encarregada ao supplicante como hum dos fazendeiros mais proprio
para o ajudar e que pelas repetidas ações de generosidade liberalisada áquelles
individuos elles o amarão e criam em suas promessas: assim o supplicante foi
tomando parte e concorrendo com todos os auxilios que lhe eram possiveis para se
concluir o fim proposto, e ao tempo em que falleceu José Rodrigues, foi de
tudo encarregado pelo Conde de Aguiar, então Vice-Rei do Estado, e ultimamente
por V. A. R. da mesma commissão que estava a cargo daquelles, e obteve que os indios já fóra do prepujo do paganismo fossem alguns
recebendo a Religião
Catholica Romana, por intervenção do padre Manoel Gomes Leal, que assiduamente
os cathequizava e lhes administrava o pasto espiritual. Neste estado se achava o
importante negocio de Aldeação e Civilização dos Indios quando o Capitão
José Thomar da Silva, encarregado por ordem de S. A., o serenissimo Senhor
Infante Almirante General foi apprehendido parte delles para o serviço do
Arsenal Real da Marinha. A indiscripção com que se executou esta diligencia
por uns homens que lhes era extranho, em que elles não crião: o horror que
lhes causou ver acorrentados os apprehendídos, e atropelladas as famílias
destes, alguns até com impossibilidade physica de viajar; finalmente outras
irregularidades
que acontecerão horrorizando o resto dos Aldeados, e os puzerão em debandada,
desamparando o estabelecimento, e dando de mão a lavoura e colheita, vindo por
ultimo refugio procurar o supplicante, e ao Padre Manoel Gomes Leal, seu capelão,
para lhe restituirem os seus compatriotas, protestando que a não acontecer
assim, não tornarião á Aldea e continuarião a embrenhar-se pelos sertões,
para fazerem guerra aos Brancos, que com elles deixarão de ter fé. E’
incomprehensivel o incommodo e despeza que o
suplicante e o Padre
Manuel Gomes Leal tiverão em os sustentar, contentar e persuadir, para que
tornassem para a Aldea, emquanto o supplicante vinha rogar a V. A. R. a
restituição dos apprehendidos, e só esta esperança os sustem, assim mesmo com
muita desconfiança. E’ verdade, Senhor, que sendo a referida Aldeação uma
obra dispendiosa á Real Fazenda, parece que aquelles Indios devem ser
aproveitados para o Real Serviço, em tudo quanto puderem prestar, mas cumpre
refflectir, que ainda não é tempo de os aproveitar: o estabe!ecimento está
no seu nascente, os lndios são ainda os mesmos selvagens que ha pouco ocuparão
as brenhas; sempre temoratos vivem de prevenção a respeito dos mais homens;
elles não podem ser empregados em outros serviços, que não seja a lavoura,
por se opporem aos seus conhecimentos; os seus filhos já mais cultos,
educados fora do gentilismo e chegados ao gremio da civilização é de esperar
que sejam uteis e que de todos os modos se possam occupar no Real Serviço.
Deixa o supplicante de relacionar a V. A. R. o grande numero de Ordens Regias
dirigidas aos Governadores e Capitães Geraes do Brasil a respeito da Aldeação
e Civilização dos Indios e da moderação e quietação com que devem ser tratados, por isso que o negocio he tratado na Corte, perante V. A. R., de cuja
Piedade é de esperar maiores providências das estabelecidas nas ditas Ordens
Regias: maiormente quando o Brasil acaba de ser conquista e tem a felicidade de
ser a Corte de residencia de V. A. R., por isso de muito mais importancia
a povoação e a civilização dos seus habitantes. Neste estado de
perplexidade se acha o supplicante, na contingencia de ver acabar hum
estabelecimento tão trabalhoso como dispendioso á Real Fazenda e de entrar em
novos temores pelas hostilidades, que provirão da dispersão dos lndios, e dos
Gentios que se lhes associarem, quando não possa ter com aquelles a boa fé de
se lhe serem isentos para o futuro de outras semelhantes apprehensões afim de
que elles continuem na crença e persuasão em que estão de serem amparados
por V. A. R. de quem tudo esperão e deve o supplicante a bem de todos e espera
R. Mcê, (B. N., caixa 343 - 6)”.
A
situação se apresentava para os índios com novos aspectos, pois a morte levara
o padre Manoel Gomes Leal. Morrera, também, aos 28 de agosto de 1813, vítima
da tuberculose, o seu fâmulo Florisbelo. Tudo ficou então frustrado por haver
Eleutério requerido a sesmaria, naquele mesmo lugar.
Obtida
a concessão pelo Desembargador do Paço, ficou a igreja sem terreno algum, em
redor, que se destinaria à construção de casas para os moradores do sertão;
o vigário sem lugar para sua residência e os índios sem asilo próprio,
conforme
declara em seu depoimento o falecido desbravador Inácio de Souza Werneck, in
verbo sacerdotis.
Mais
tarde, em 14 de março de 1817, residindo na fazenda da Conceição do Rio
Preto, Miguel Rodrigues da Costa, outro notável desbravador de sertões
vizinhos,
encaminhava ao Capelão-mor de Sua Majestade um documento em que
defendia
com ardor os interesses dos índios.
O seu apelo (21)
era dirigido em têrmos claros e impressionantes, mostrando claramente a
verdadeira situacão de vexames em que se encontravam os indígenas do sertão
de Valença, da então capitania e comarca do Rio de Janeiro.
(21)
Rev. Inst. Hist. e Geogr. do Brazíl
— pág. 524 — doc. No. 3 — No. 15 — 1854.
Com
a morte dos seus protetores Rodrigues da Cruz e Padre Manoel Gomes Leal, os índios
não mais tinham quem os protegesse e lhes defendesse os direitos, senão a
generosidade do ilustre bispo, já que, também, lhes faltava a assistência
do vigário frei Paulo da Cunha, outro verdadeiro pai dos indígenas, últimamente
falecido.
Rodrigues
da Costa, em seu apelo, mostrava a necessidade imperiosa de implantar-se, na
região, a paz, ainda mais que vivendo êles entre os portuguêses, êstes
abusavam da sua mansidão, destruindo-lhes as plantações e tirando-lhes as
terras.
Escrevia
Miguel Rodrigues da Costa: “Parece justo não persistir a sesmaria tirada e
medida sobre as terras decretadas para o aldeamento, construção da matriz, já
principiada, e onde se celebra o sancto sacrificio da missa e se administra o
pasto espiritual a toda a freguezía, além do que esta matriz carece ter uma
extensão de terras para os lados, não só para se organizar maior população,
como mais reverência ao sanctuário”.
O
intrépido desbravador das regiões vizinhas, entre outras considerações,
ponderava
que, devido a não ser pequeno o número de índios ainda existentes na região,
era muito farta a produção anual, o que demonstrava a eficiência do
aldeiamento.
Embora muitos procurassem certificar o contrário, porque os animava a ambição
sôbre as terras indiáticas, Rodrigues da Costa podia mostrar o seu desinterêsse
em defender a causa dos índios Coroados,
conquanto morasse e vivesse na capitania de Minas Gerais; mas, penalizado
e conhecedor da miserável situação dos indígenas, fazia o seu apêlo
desembaraçado, confiante no espírito de piedade do bispo, tão interessado em
promover e amparar o congraçamento dêles em tôrno da religião católica.
Os
índios não desanimavam, entretanto.
À
vista das violências praticadas por Eleutério e outros, os indígenas, pelo
“Senhor.
Os indíos Coroados da aldêa de
Valcnça, freguezia de Nossa Senhora da Gloria, entre o rio Preto e o Parahyba,
comarca d’esta cidade e corte, vem segunda vez implorar, com o mais profundo
respeito a alta proteção de vossa magestade e supplicar uma justa
providencia contra a violencia que Eleuterío DeIphim e outros teem feito aos
supplicantes.
E’
notorío a vm. que o fallecido José Rodrigues da Cruz moveu os supplicantes a
reconhecer a vossa magestade por seu augusto soberano; e debaixo da affavel direcção
do mesmo os supplicantes se aldearam na aldêa acima dita, sua antiga habitação:
o que tudo se ohrou de ordem de vossa magestade que dignando-se approvar as
providentes medidas d’aquelle expressado director, houve por bem mandar que se
lhes facilitassem os meios necessarios, como se mostra pelo documento N. 1,
expedindo-se a esse fim as regias ordens que patenteíam aos ns. 2 e 3.
Fez-se
tudo assim e mandou-se assinar aos supplicantes determinado terreno para elles
o cultivarem: e por editaes se avisou a todas as pessoas que tivessem obtido sesmarias
n’aquelle sitio, que si as não cultivassem dentro de 3 mezes, as ficariam
perdendo, providencia inteiramente conforme a ordenação L. 4 tit. 43, o que
se prova pelo documento N. 4 fol. 1.
Com
igual promptidão se forneceram aos supplicantes os generos precisos para
sua subsistencia, mandando-se até abrir caminhos para o interior do sertão;
alem de outras providencias, como tudo se vê pelo citado documento N. 4 fol. 1 e
fol. 2.
Foi
finalmente vossa magestade servido mandar sustentar os supplicantes por mais 6
mezes, emquanto não tinham algumas roças plantadas, além de outras despezas
na abertura de caminhos que todas se fizessem por conta da real fazenda de
vossa magestade que consta pelos documentos ns. 5, 6 e 7.
Porém,
senhor, tantas despezas feitas por conta da real fazenda de vossa magestade
ficam inutilizadas e os supplicantes quando esperavam fazer a sua ventura
acham-se na maior desgraça. Porquanto Eleuterio Delphim e outros requerendo à
vossa magestade a mercê de sesmaria n’aquelle terreno a titulo de inculto,
tem feito medir o terreno cultivado pelos supplicantes sem perdoar ao proprio
aonde está edificada a matriz de sua freguezia, tirando d’este modo a
subsistencia aos supplicantes, e d’esta oppressão tem resultado que alguns
dos companheiros dos supplicantes por serem tratados pelos supplicados de caboclos
e ladrões, e por se verem sem
domicilio seguro, se ausentaram já d’aquella aldêa.
Não
podem os supplícantes persuadir-se, nem ainda lembrar-se que aquelle verdadeiro
esbulho fosse auctorizado por vossa magestade com verdadeira informação das
cousas; antes crêm que os supplicados obtiveram a mercê da sesmaria obrepticia
e subrepticialmente, representando à vossa magestade que aquelles terrenos
eram incultos.
Mas a verdade, senhor, é a exposta, e sem se esforçarem a mostrar quanto a conservação da propriedade dos supplicantes é util ao melhor progresso do imperio de vossa magestade e ao do evangelho de Jesus Christo, animando-se por esta fórma a aldearem-se os mais nações de indios vizinhos dos supplicantes, só imploram a real protecção de vossa magestade afim de que possam ver reparado o damno que teem soffrido, que se deve considerar uma verdadeira violencia attentada contra a propriedade dos supplicantes, visto como aquellas terras lhes tinham sido dadas por vossa magestade: por isso humildemente pedem a vossa magestade que por effeitos de soberana beneficencia e indefectivel justiça se digne que se restituam aos supplicantes os terrenos que indevidamente lhes foram tirados. Mandando outrossim que os mesmos sejam demarcados na forma da lei, para evitar novas violencias, e que do terreno que sobejar sejam obrigados a pagar-lhes fóros aquelles que no futuro os quizerem cultivar, para despezas de ferramentas e outras: como é uso e costume nas mais aldêas, e tambem supplicam a vossa magestade que se digne mandar-lhes nomear novo director que os dirija e proteja. E.R.M. Como Procurador. — Antonio de Gouvea Maixo.” (22)
(22) — Rev. Inst. Hist. e Geoqr. do Brazil — pág. 522 — No. 15 — 1854
Esbulhados
por Eleutério Delfim das terras que lhes pertenciam, os Coroados
consideravam as enormes despesas feitas pela Real Fazenda com o aldeiamento,
agora consideradas inúteis pelo atentado violento do sesmeiro Eleutério que
— diziam êles — não se contentava em medir terras cedidas aos índios, mas
também invadia os terrenos, tirando-lhes a subsistência.
Os
Coroados jamais podiam acreditar que
aquela violência fôsse do conhecimento das autoridades imperiais; antes,
pelo contrário, tinham êles a perfeita convicção de que aquelas terras lhes
pertenciam por vontade própria de Sua Majestade, que reconhecia, sem dúvida,
a utilidade daquela concessão, em favor do progresso do Império.
No
seu segundo memorial, os índios pediam fôssem os terrenos demarcados na
forma da lei, para que se evitassem novas violências e que sôbre as terras que
excedessem fôsse imposto o pagamento de foros, exigidos àqueles que,
futuramente,
quisessem cultivar. Insistiam também os suplicantes — como se vê no documento
acima — na nomeação de outro diretor dos índios, para a sua proteção e
direção.
Decorrido
algum tempo, sem que tivesse qualquer solução o caso atinente à devolução
das terras furtadas aos índios, os Coroados,
por seu procurador Francisco Dionísio Fortes de Bustamante, novamente
apelavam para a Sua Majestade:
—
“Senhor. Dizem os indios Coroados da aldêa de Valença, freguezia de Nossa
Senhora da Gloria, entre o Rio Preto e Parahyba, comarca d’esta cidade e côrte
que ha mais de 15 annos que os supplicantes foram aldeados por seu director o
fallecido José Rodrigues da Cruz, de ordem de vossa magestade.
“Era
o districto que hoje occupam antiga morada dos supplicantes, e depois que
reconheceram a vossa magestade por seu soberano foi-lhes demarcado terreno para
cultivarem, e d’onde tirassem a sua subsistência; foram-lhes igualmente
facilitados outros meios de dinheiros, viveres e tabaco de fumo, tudo á custa
da real fazenda; mandaram-se-lhes abrir caminhos para o interior do sertão, e
ultimamente tiveram a dita de lhes ser dado um parocho, para os instruir e guiar
pelo caminho da fé e da religião como mostra o documento N. 1.
“Tudo
assim correu bem a favor dos supplicantes emquanto lhes assistiu aquelle
expressado director. Falleceu este, e desde esse tempo teem os supplicantes sido
perseguídos com toda a sorte de vexação; são todos em menos preço por
aquelles visinhos e por elles roubados, como se vê da carta N. 2, e
ultimamente esbulhados do terreno que lhes fôra mandado dar por vossa
magestade por Eleuterio Delphim e outros, que a titulo de inculto obrepticia e
sobrepticiamente o obteve de sesmaria com tão notoria violencia dos
supplicantes que nem o terreno mesmo immediato á igreja lhes deixaram.
“Representaram
já os supplicantes uma vez á vossa magestade immediatamente e instruiram o
que allegam com documentos; mas foi o primeiro d’aquelles requerimentos mandado a
informar ao dezembargador ouvidor da comarca em 5 de Março e o 2o a 18 de
julho, e ainda não foram deferidos.
“E
porque todo o mal vem aos
supplicantes de não terem nem director nem procurador n’esta cidade que
promovam os seus interesses, nem elles o podem fazer por si, porque não sabem
fallar portuguez, e aos supplicantes se segue gravissimo prejuizo na demora,
porque lhes vae passando o tempo de fazerem suas roças, sem as quaes não podem
subsistir:
“Pedem
a vossa magestade que por effeitos de soberana commíseração se
digne fazer-lhes a mercê de lhes mandar nomear por director o
capitão Miguel Rodrigues da Costa; e restituir o terreno que lhes foi
indevidamente tirado pelo expressado Eleuterio Delphin e outro:.
E.R.M. — Francisco Dyonisio Fortes de
Bustamante.” (23)
(23)
Rev. do Inst. Hist. e Geogr. do Brazil
— pág. 524 — N. 15
— 1854.
Dinheiro,
víveres, fumo, abertura de caminho para o interior do sertão de Valença, um pároco,
instrução, etc., eram, indiscutivelmente, os grandes benefícios da proteção
real, enquanto existira a figura amiga de Rodrigues da Cruz, — comentavam os Coroados.
Mas, com o desaparecimento de seu diretor-protetor, foram os indígenas vítimas
de perseguições atrozes, violências e roubos. Era a desgraça que lhes
degradava o destino.
Insistiam
em que Sua Majestade tomasse conhecimento e deferisse os seus dois primeiros
requerimentos, remetidos já à informação
e parecer do Desembargador Ouvidor da Comarca em 5 de março o primeiro, e, em
18 de julho de 1817, o segundo.
Os
Coroados, por seu maior mal — o de não terem diretor, nem procurador na Côrte
que promovessem a defesa de seus interêsses, não podiam fazê-lo por si, pois
não sabiam expressar-se na linguagem dos brancos. A demora do despacho real
redundaria, por certo, em gravissimo prejuízo, porque ia passando a época das
plantações.
Os
índios persistiam na nomeação de um novo diretor, e o nome de Miguel
Rodrigues
da Costa era o indicado à Sua Majéstade,
com a simpatia e a acatamento de tôda a indiada.
O
próprio vigário frei Paulo da Cunha fez, também, um protesto solene em favor
dos Coroados e afirmava — “tinham
sua posse sôbre as terras na forma da lei” reclamando e ameaçando embargar tôda
a posse, até que o rei D. João VI se dignasse decidir tão importante questão.
Confirmava, ainda, que Florisbelo Augusto — sabendo-se que no sertão da
nova aldeia de Valença, se encontrava uma porção de terras devolutas,
limitando-se, pelo norte, com a sesmaria do padre Gomes Leal, pelo sul, com a
mesma aldeia, e, pelo oeste, com a sesmaria de Rodrigues da Cruz —
requeria, em 1805, ao Vice-Rei, por sesmaria, um quarto de testada, com meia
de fundo, para cultivar. Declara mais que, em 2 de agôsto de 1805, o capitão
Werneck informara ao Senado que o terreno era inculto e devoluto, e, porisso,
era de alta justiça se concedesse a Florisbelo a sesmaria requerida.
Documentos
históricos nos revelam que ao requerimento de Florisbelo Augusto foi dado o
seguinte despacho: — “Conceda-se a sesmaria pedida e antes de se passar
carta passe provisão para proceder á demarcação judiciária das terras concedidas.
Rio, em meza, 3 de Novembro de 1808.”
Em
20 de agôsto de 1817, D. João VI ordenava ao Ouvidor da Comarca do Rio de
Janeiro, desembargador Manoel Pedro Gomes, se restituisse aos índios Coroados
de Valença, cuja causa tanta
simpatia havia conquistado, o terreno que devia servir para cultura, como o
fizera antes em favor de Francisco José da Mota, também vítima de um tal
Manoel de Campos, depois de se achar instalado por mais de três anos, com
numerosa família, num sítio da freguesia de Nossa Senhora da Glória de
Valença, onde construiu casa e fizera plantações.
“Ilmo
e revmo. sr. — El-rei nosso senhor manda remetter á mesa de desembargo do paço
o requerimento incluso dos indios Coroados da aldêa de Valença: e é servido
que se expeçam as ordens necessarias para que se conserva aos supplicantes o
terreno que devem ter para a sua cultura, consultando-se com effeito o que
parecer sobre a nomeação de director que pedem, nomeando a mesma mesa quem
sirva este logar interinamente. O que vossa illma. fará presente na referida
mesa para que assim se execute.
“Deos
guarde a vossa illma. Paço em 11 de Agosto de 1817. Thomaz Antonio de Villanova
Portugal. -— Sr. Pedro Machado de Miranda Malheiros.
“Cumpra-se e registe-se e passem-se os despachos necessarios. Rio de Janeiro, 18 de Agosto de 1817. Com duas rubricas.
“Dom
João por graça de Deos rei do reino unido de Portugal e do Brazil e Algarves
d’quem e d’além mar em Africa, senhor de Guiné e da conquista, navegação
e commercio da Ethiopia, Arabia, Persia, e da India & c. Faço saber a vós,
ouvidor da comarca d’esta côrte que sendo-me presente o requerimento, que
com esta se vos remette por copia, dos indíos Coroados da aldêa de Valença e
os documentos ao mesmo requerimento annexos: Sou servido determinar-vos façaes
conservar aos supplicantes o terreno que devem ter para a sua cultura, informando-me
com a maior brevidade sobre o conteudo no dito requerimento e nos outros que vos
foram remettidos para informardes em 5 de Março e 18 de Junho do corrente anno,
informando-me ao mesmo tempo das pessoas que achardes idoneas para d’ellas se
nomear o director que os supplicantes pedem, interpondo-se sobre tudo o vosso
parecer. El-Rei nosso senhor mandou por seu especial mandado pelos ministros abaixo assignados do seu conselho e seus desembargadores do paço. Antonio Luíz
Alves a fez no Rio de Janeiro aos 20 de Agosto de 1817. Bernardo José de Souza
Lobato a fez escrever. Monsenhor Almeida, Bernardo José da Cunha Gusmão e
Vasconcellos.”
(24)
(24) —Rev. Inst. Hist. e Geogr. do Brazil — pág. 525 — N. 15 — 1854.
Luiz
Manoel Pinto Lobato, sargento-mor do Batalhão de Caçadores de Milícias de
Serra, comunicava, em ofício datado de 18 de outubro de 1817, ao Desembargador
da Comarca Manoel Pedro Gomes que o alferes Francisco Joaquim Arêas, cidadão
conceituado e sobrinho do primeiro pároco, catequista dos índios e morador da
vizinhança da igreja, lhe declarara que “nunca houve ali terreno medido e
demarcado, destinado á habitação dos Coroados;
que, no decorrer do primeiro ano de abertura do sertão, reuniram-se
diversas tribus no lugar em que se assenta a matriz; que, por conta da Fazenda
Real, efetuou-se uma plantação de milho, ficando os selvagens senhores dessas
plantações que logo devoraram; que, em seguida, as tribus se dividiram,
despovoando o lugar da igreja, então capela; que, tornando-se novamente
devolutas aquelas terras, as pedira, de acôrdo com a autoridade local, e
obtivera por sesmaria Florisbelo Augusto, também sobrinho do primeiro vigário,
o qual, falecendo sem deixar testamento, nem herdeiros, as pedira, de novo;
que Eleutério Delfim da Silva as obteve por sesmaria, medindo-as e demarcando
judicialmente; que, no lugar chamado “arraial da matriz” só existia um
índio casado que para alí se mudara há um ano e alí fizera uma rocinha; que,
apesar de haver o novo vigário tentado reunir, sem resultado, as tribus, de
modo a habitarem o arraial, sabendo-se que apenas permaneciam por alguns dias,
entretendo-se nas tabernas, em beber aguardente, para logo se retirarem para
suas aldêas visinhas; que os Coroados estavam
situados em quatro aldeias próximas, separadas, em pontos diversos: a
primeira, de Manoel Pereira, na serra do Tunifel, distante da matriz légua e
meia, situada em terras de Manoel Joaquim e de Izabel Maria da Encarnação; a
segunda, de Taipurú, próximo ao rio das Flores, e distante da matriz duas léguas,
instalada em terras do guarda-mor Joaquim José dos Santos; a terceira, do Xininim,
à margem do rio Bonito, distante da matriz duas léguas, situada nas
terras do alferes Luíz Gomes; e, finalmente, a quarta, do Tinguá, situada à
margem do ribeirão S. Fernando, distante da matriz mais de quatro léguas, em
terras devolutas, tão ambicionadas pelo guarda-mor Francisco Dionísio.
À
vista da informação do alferes Arêas, chegou-se à conclusão da que os Coroados
“não possuiam ali terreno próprio, pois que tudo estava em mãos dos portuguêses,
e que sòmente na Aldeia do Tinguá, sita à margem do ribeirão S. Fernando,
poderiam ter os índios terras próprias, já que devolutas ou não doadas”.
O
sargento-mor fez, então, afixar à porta da matriz, um edital, levando
ao conhecimento dos proprietários de terras e demais pessoas da Aldeia e
Freguesia de Nossa Senhora da Glória que Sua Majestade ordenava, por provisão
de 26 de agôsto dêsse mesmo ano, se conservasse aos índios Coroados
daquela Aldeia o terreno destinado às suas culturas, ante as provas
incisivas de que eram os selvagens esbulhados e maltratados. E, assim, apelava
para que os habitantes deixassem os índios em paz para prosseguirem na sua
lavoura, como era do desejo absoluto de Sua Majestade.
Também
o vigário da paróquia convocava os índios das quatro aldeias vizinhas para
que viessem tomar conhecimento dos termos do edital.
Apesar
da ordem real, restituindo aos índios de Valença, as terras que, de fato, lhes
pertenciam, o intruso sesmeiro Eleutério Delfim, despeitado com a medida
governamental, lançava mão de recursos, os mais infames! Promovia, ansioso
de realizar suas ambições, representações em que figuravam como autores
pessoas analfabetas que não podiam assinar, acusando os índios como responsáveis
pelos danos resultantes dos aldeiamentos vizinhos, em prejuízo das fazendas.
Eleutério
continuava a inquietar e perturbar a tranquilidade que começava, então, a
reinar, tentando insinuar a todos os moradores da Aldeia a abandonar suas
propriedades, afim de que as terras da freguesia se tornassem devolutas.
Burlando a boa fé das autoridades, conseguiu mandado do juiz almotacel (*),
da
Côrte, e notificou a todos os moradores em casas residenciais e comércio sôbre
o embargo de culturas e benfeitorias nos terrenos de suas sesmarias, o que deu
causa, de maneira alarmante, a novos clamores e queixumes.
(*)
ALMOTACEL -— o que tinha oficio de cuidar da aferíção dos pesos e medidas,
taxas, etc.
Não
demoraram os habitantes da Aldeia, numa representação com trinta e três
assinaturas, tôdas reconhecidas pelo capitão Rodrigues da Costa e pelo
vigário
Joaquim Cláudio de Mendonça, a dirigir-se à Sua Majestade, em dezembro de
1817, cientificando-a de tais anomalias.
Tendo
em vista que Eleutério requerera uma sesmaria e, por meio de enganosos
pretextos, obtivera-a, contra todos os princípios legais, e que, apesar da
ordem real mandando restituir aos índios todo o território que abrangia a
Aldeia de Valença, continuava o indigitado sesmeiro a acirrar ódios,
desprezando o bem comum, a ponto de qüase fazer desaparecer o culto religioso,
os sinatários imploravam à Sua Majestade se informasse da verdade daqueles
acontecimentos, entre todos os fazendeiros da freguesia.
Ao
escrivão Joaquim José Tavares foi pedida, então, e remessa dos autos ou de
quaisquer requerimentos que, por intermédio de Eleutério, tivessem dado entrada
no Juízo dos Feitos. Em resposta, ao juiz almotacel, Tavares informava que não
havia encontrado autos nem requerimentos relativos a Eleutério Delfim e
declarava mais que não conservava lembrança alguma de que, pelo Juízo de
Almotaceria, fôsse expedido qualquer mandado. Segundo declarava o escrivão,
achava-se em poder do Desembargador e Corregedor da Comarca, uma certidão,
passada por um vintenário, em meia fôlha de papel, a qual se referia a uma
petição
e mandado, passados por despacho do juiz almotacel — trama, já se vê, urdida,
para realizar o intento premeditado. A Eleutério — informa o escrivão
Tavares — fôra pedido mostrasse o mandado de que dizia estar de posse; mas, a
sua desculpa era havê-lo perdido, atitude que o comprometia, de modo a provocar
sérias suspeitas.
D. JOÃO VI ESCLARECE A SITUAÇÃO DOS COROADOS
De
posse de todos os documentos e informações irrefutáveis, D. João VI
deliberou
esclarecer, em definitivo, a situação precária dos Coroados,
assinando, em 26 de março de 1819, um decreto, cujos termos são os
seguintes: (25)
(25)
Rev. do Inst. Hist. e Geogr. do Brazíl
~3a série — No.
15 — págs. 538 e 539 — 1854.
“Sendo-me presente que a aldêa de Valença dos indios Coroados, estando destinada para villa dos mesmos índios por ordem minha de 25 de Agosto de mil oitocentos e um, fora pedida de sesmaria como terreno devoluto por Florisbelo Augusto de Macedo e depois por Eleuterio Delphim da Silva e concedida com notória obrigação, pois não se devia considerar devoluto um terreno marcado para a aldea de índios, com igreja já edificada e alguns moradores na mesma aldea: Hei por bem declarar nulla a sobredita concessão feita a Eleuterío Delphim da Silva, e que o sobredíto terreno pela demarcação actual que tem de um quarto de legoa de testada e meia legoa de fundos, seja restituido aos ditos índios para n’elle se aldearem e cultivar os terrenos que se lhes destinarem. Hei outrosim por bem nomear para director d’elles a Miguel Rodrigues da Costa, que observará o mesmo que foi determinado a José Rodrigues da Cruz, na sobredita minha real determinação e portaria do vice-rei don Fernando José de Portugal, de 21 de Novembro de 1801, e o mais que a este respeito está estabelecido para a civilização dos mesmos índios. Nas referidas terras não se poderá mais fazer alienação alguma; e os moradores que já ahi se achão com casas ou com culturas serão conservados e pagarão o foro que se lhes arbitrar para a Camara da villa dos mesmos índios; que será estabelecida na conformidade dos antigos usos approvados pelas mesmas reaes ordens. E o ouvidor da Comarca como conservador dos indios fará registrar as sobreditas ordens e a demarcação actual do terreno e titulos de posses dos moradores nos livros competentes; auxiliará o sobredito director e procederá aos estabelecimentos necessários, fazendo supprir do cofre as despezas e dando conta pela meza do Dezembargo do Paço das mais aldeas que poderiam estabelecer-se de índios nos lugares em que se achão arranchados e dos terrenos que se lhes deve demarcar para ellas, pela preferencia que devem ter nas ditas terras. A meza do Desembargo do Paço o tenha entendido, e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro, em 26 de Março de 1 81 9 (Com a rubrica do rei dom João VI.).
Em
cumprimento às ordens reais, o ouvidor da Comarca e Conservador dos Índios,
Joaquim José de Queiroz, informava, em 20 de setembro de 1819, que havia
remetido ao diretor Miguel Rodrigues da Costa grande quantidade de enxadas,
machados, panelas, aço e ferro para foices, para serem distribuídos aos índios;
e mais — que havia pedido ao diretor lhe informasse sobre os terrenos necessários
para a inauguração de novas aldeias. Dava também notícias de novas
descobertas feitas por Miguel Rodrigues da Costa, que pedia para os índios mais
uma légua de terra, afim de assegurar a estabilidade dos aldeamentos e impulsionar
a cultura em terrenos devolutos.
Rodrigues
da Costa, amparado por decisões imperiais, promovia a civilização da
extensa zona do rio Paraíba e, de acordo com a vontade de Sua Majestade,
tomava todas as providências necessárias ao acautelamento dos interesses dos
índios Coroados, para evitar repetição de abusos futuros.
Monsenhor
Pizarro diz que, na época em que escrevia a sua obra, isto é, em 1820,
o número de habitantes da Aldeia de Valença era de mais de 1.000, e que a
região apresentava lamentável aspecto, pelas poucas casas que havia, das quais
mais da metade eram vendas, que se restringiam ao comércio de aguardente.
Em
substituição à capela dos índios, deu-se, então, em princípio de 1820,
início
à construção, em pedra e cal, da capela-mor da igreja matriz, de que foi
primeiro
vigário o padre Joaquim Cláudio de Mendonça. A construção dessa capela-mor
foi executada sob a influência e direção do vigário Joaquim Cláudio e do
major
Custódio Ferreira Leite (barão de Aiuruoca), que promoveram, para isso, uma
subscrição entre os fazendeiros e moradores da freguesia.
Graças
ao zelo de Miguel Rodrigues da Costa, novo impulso se imprimiu à região e a
civilização se processou na sua marcha triunfal.
Rodrigues
da Costa foi, sem dúvida, um dos primeiros exploradores do vale do Paraíba,
pois, em 7 de dezembro de 1821, partira de Valença para as margens do Paraíba,
onde Custódio Leite estava construindo uma ponte.
Depois
de andar por trilhos e ásperos caminhos, junto às cabeceiras do rio S.
Fernando que faz barra no rio Preto, e descendo este rio até o arraial do mesmo
nome, que dista, em curva, quatro léguas de Valença, aí permaneceu para novos
estudos e explorações.
À
vista de circunstâncias diversas, achava Rodrigues da Costa que a freguesia
de Paraíba do Sul devia pertencer à Valença, ou à vila do Pati do Alferes.
E’ verdade que a freguesia de Paraíba do Sul ficava mais perto da vila do
Pati do Alferes e havia melhor caminho, porém, sujeitos os moradores à
passagem inevitável do rio Paraíba, o que não se daria si a mesma freguesia
pertencesse à Valença. Assim, teriam as terras da região, como divisas, os
dois rios, fechando nas três barras. Evitar-se-ia, deste modo, a incômoda e
difícil passagem do rio, tão inconveniente para os viajantes.
Em
ofício datado de Valença, aos 8 de janeiro de 1821, depois de enumerar várias
observações, Miguel Rodrigues da Costa dirige ao Desembargador Ouvidor e
Juiz Conservador dos Indios, Joaquim José de Queiroz, a seguinte explicação:
(26)
(26)
Rev. Inst. Hist. e Geogr. do Brazil – pág. 499 – No. 15 - 1854
Depois
que deixei as cousas arrumadas d’esta fórma, seguimos
d’esta aldêa por trilhos e ásperos caminhos às cabeceiras do ribeirão de
S. Fernando, que faz barra no rio Preto, e continuando a mesma jornada pelo rio
Preto abaixo até o arraial do dito rio, que pela curva tem quatro
leguas á villa de Valença.
Aqui
voltei a minha viagem para Valença e fiz indagações dos lugares
circunvizinhos
que vão colocados no mappa, e pensando sobre as circumstancias da freguezía da
Parahyba, si deve pertencer a esta villa de Valença ou á do Alferes.
E é verdade que a parte meridional da freguezia da Parahyba para a villa do
Alferes fica mais perto e melhor caminho, porem sujeita os moradores á passagem
do Parahyba e de uma guarda que só se deixa transitar de dia, e ficando a mesma
freguezia pertencendo á villa de Valença, sendo as divisas do termo desta
villa pelos dous rios a fechar nas trez barras em razão de ser conveniente aos
povos por ficarem isentos da passagem do rio que tanto os incommoda e faz muitas
vezes empatar as viagens, que devem fazer ligeiramente; e mesmo porque fica
sendo uma divisa muito clara.”