Valença de Ontem e de Hoje
Tema musical ao fundo:"Woman Of Ireland" Parte 1 - Tradicional
- com James Last & Orchestra -
CAPÍTULO 2
VALENÇA ALDEIA
PARTE 1
CLICAR SOBRE OS SUBTÍTULOS PARA IR DIRETO AO ASSUNTO:
José
Rodrigues da Cruz, o Fundador de Valença
Os
índios Coroados, selvagens errantes pelas imediações da Mantiqueira, perseguidos pelos seus
temíveis parentes -— os Puris — que os afugentavam
em luta de morte, haviam se aclimatado, mesmo antes de 1789, no antigo sertão
do Rio Preto, não obstante a fúria dos seus imortais inimigos que provocavam
constantes desordens, infestando, com depredações, as fazendas das próximas
freguesias de Sacra Família, Conceição do Pati do Alferes e Conceição da
Paraíba Velha, cujos habitantes, “ávidos de necessária calma, para a
prosperidade de suas lavouras”, eram, diariamente, sobressaltados e “só
poderiam trabalhar, em suas sesmarias, com armas na mão”. Essa situação que
perdurara, prejudicando os trabalhos de desbravamento, se refletia sensível e
assustadoramente entre os Coroados do sertão de Valença — indígenas de índole pacífica e
acessíveis, que tiveram, desde logo, o amparo, em sua defesa, do Vice-Rei Luiz
de Vasconcelos e Souza, do Rio de Janeiro, que, então, ordenara o capitão de
ordenanças do Termo de Pati do Alferes — Inácio de Souza Werneck — a rebater os grupos intrusos em suas próprias aldeias,
por ocasião da abertura de caminhos e estradas de que fora incumbido o alferes.
Segundo
rezam os arquivos da municipalidade de Marquês de Valença, o comendador João
Batista de Araújo Leite, “um dos homens mais conhecedores da história do
Município”, em informação prestada, em 1872, ao Governo da antiga província
do Rio de Janeiro, assim inicia o documento: — “A Câmara Municipal de Valença, em
cumprimento à Portaria de V. Ex., de 20 de Novembro, passa a dar as informações
nela pedidas, tanto quanto consta do archivo da Câmara e informações colhidas
no antigo Curador Geral dos índios dêste município: “Em 1789, por ordem do
Vice-Rei Luiz de Vasconcelos e Souza, deu-se princípio à catechese e civilização dos indios, que residiam entre os rios Parahyba
e Preto, e as freguesias de Rezende e de São Pedro e São Paulo da
Parahyba do Sul. Foram encarregados dessa missão o Capitão Ignácio de Souza
Werneck, o abastado fazendeiro José Rodrigues da Cruz, senhor da fazenda de Ubá,
e o padre Manoel Gomes Leal, que, nessa época (1789), fizeram sua entrada no
dito território e erigiram uma fragil e pequena capela, no principal
aldeiamento dos índios, hoje cidade de
Valença, sob a invocação de N. S. da Glória, e, por ordem do Vice-Rei,
D. Fernando José de Portugal e do Bispo D. José Joaquim Justiniano, foi o
padre Manoel Gomes Leal (5-2-1803) encarregado, como Capelão da referida
capela, de ensinar a religião católica aos índios.”
A
fim de que possa o leitor ter, de início, uma idéia geral dos principais fatos
ligados à fundação da Aldeia de Valença, relativamente aos indígenas, sua
catequese e sua instrução religiosa, bem como às epidemias, ao
esbulho das terras, às sesmarias e às reivindicações dos selvícolas,
transcrevemos, a seguir, o interessante documento histórico intitulado “Aldêa
de N. S. Senhora da Glória de Valença e de Santo Antônio do Rio Bonito” —
encontrado na “Memória Histórica e Documentada das Aldêas de Indios da
Provincia do Rio de Janeiro —de Joaquim Norberto de Souza Silva (12):
(12)
— Revista do Instituto Histórico e Geográfico
do Brazil
3a Série — Tomo
XIV — 2o trimestre de
1854 — pags. 249 a 262.
“Errantes
pelas imediações da serra da Mantiqueira, cujo domínio disputavam os Botocudos,
fugindo dos seus imortais inimigos ou batalhando contra os atrevidos Puris,
assolavam os Coroados as visinhanças
das freguezias de Sacra Família, Paty do Alferes, S. Pedro e S. Paulo,
estabelecidas de proximo entre os rios Preto, Parahyba e do Peixe, e em suas
excursões traziam os habitantes daqueles lugares em continuos sobressaltos com
prejuíso de suas lavouras que começavam a desamparar, desalentados de poderem
pôr termo a uma guerra de extermínio. Estabelecida no sertão, entre os rios
Preto e Parahyba, possuia José Rodrigues da Cruz, a fazenda de Pau
Grande onde tinha engenho e vastos canaviais, além de outras terras que
cultivava. Vivendo cm contacto com os Coroados, havia conseguido fazer-se
respeitado mais pela doçura do seu trato do que pelo terror das armas, e com as
suas proprias mãos repartia por elies todos os dias o producto de suas lavouras
para seu sustento, alem das ferramentas mais necessárias a seos rusticos
trabalhos. Informado o sábio ministro Don Rodrigo de Souza Coutinho do que se
passava (372)
pôz todo o seu empenho em ver realisados esses ensaios em prol da civilização
desses índios, cujas tendencias não eram duvidosas.
(372) - Carta de ofício
que lhe
dirigira José Rodrigues da
Cruz, datada de Paraíba do Sul, aos 31 de outubro
de 1799. (Rev.
Inst. Hist. — pág. 504).
Escreveu,
pois, ao Vice-Rei conde de Rezende, fazendo-lhe ver os serviços importantes que
acabara de prestar o benemerito vassalo de que o seu rei fazia o maior e o mais
justo apreço, e ordenando-lhe que o auxiliasse na conversão dos índios pela
utilidade que podia resultar às margens superiores do Parahyba, cuja povoação
lhe recomendava por meio de sesmarias, bem como a navegação do rio pela flutuação
de madeiras em jangadas (373).
Determinou-lhe mais que de accordo com o bispo da diocese, enviasse missionários
doutos que fossem fieis e zelosos ministros de pregação evangelica, que
catequizassem atraindo com a doçura e suavidade de santa doutrina e com a
compostura de religioso proceder essas almas submergidas nas trevas da
ignorancta e sem conhecimento do seu creador. Tão positivas ordens, porém, não
tiveram execução sinão muito tempo depois, mas longe de arrefecer, José
Rodrigues da Cruz prosseguiu apoiado pelo seu sobrinho o cap. João Rodrigues
Pereira de Almeida, e por carta de 26 de Abril de 1801, escrita da Parahyba,
levou ao conhecimento do benemérito ministro, o resultado de suas diligências.
(373) - Ordem Régia de 7
de maio de 1800.
Acompanhado de seus escravos, atravessou o sertão, procurou as aldeas dos gentios que até ali só vinham em bandos á sua casa, porém bem depressa conheceu pelos seus acenos o quanto estavam escandalizados pelo mao tratamento que recebiam dos habitantes da capitania de Minas Gerais, apontando para esse lado. Sem que desanimasse, José Rodrigues da Cruz esforçou-se por persuadi-los que acompanhassem os seus, e penetrando com elles pelos sertões foi celebrar pazes com as sentinelas avançadas, sempre debaixo de armas, que conservavam os mineiros de Rio Preto, livrando-os assim de tanta despeza, afóra o incômodo e o sobressalto a que de continuo estavam expostos. A muito custo e não sem grande sacrifício para elle e para sua família resolveu-os a que mandassem quatro (4) dentre elles á cidade do Rio de Janeiro reconhecer, perante o Vice-Rei, conde de Rezende, a rainha Dona Maria I por sua soberana. Na florescente cidade, futura côrte de um vasto império, admiraram os indios a civilização e a policia, e do conde vice-rei recebera todo o auxilio para o seu aldeamento e a posse das terras onde se achavam estabelecidos.
De
volta a suas aldeas viram com horror os horríveis estragos que fazia a fatal
epidemia das bexigas; José Rodrigues, com todos os seus escravos, com todas as
pessôas de sua família, prestava-se com verdadeira caridade christã, chegando
a ter no seu engenho e olaria e mais prédios ruraes e ainda mais na sua própria
morada, 154 indios entre homens e mulheres; e pois para elles construiu vasto
hospital, sustentou-os pelo espaço de 4 mezes, fazendo caçar para seo
sustento, visto ter exgotado os seos mandiocaes e bananaes, e reduzido, pela
distração dos seus escravos, a safra de seu engenho a pouco menos da terça
parte da sua produção (374).
O ministro Dom Rodrigo de Souza Coitinho, todo devotado aos interesses do
Brasil, não poude deixar de testemunhar-lhe o contentamento da rainha, e por
carta datada de Lisbôa a 25 de Abril de 1801, agradeceu os seus serviços e os
do seu sobrinho, prometendo-lhe a coadjuvação do vice-rei a quem passava a
escrever, e em 31 do mesmo mez ordenou á Junta da Administração do Rio de
Janeiro que na parte que lhe tocasse houvesse de concorrer com todas as
providencias que fossem necessárias a bem do aldeamento dos indios, afim de
servir de estimulo aos que voluntariamente se quizessem aldear, cooperando ella
com todos os esforços para o bom resultado de um projeto de tão uteis consequéncias
como era o aumento da população territorial, de que tão pouco se havia sabido
aproveitar na America, e terminou por lembrar a seos membros que a rainha
tomaria por muito bom serviço todo o que prestasse a esse respeito, e, pelo
contrario severamente lhes estranharia o procedimento.
(374) - Representação de
José Rodrigues da Cruz ao vice-rei Dom Fernando José de Portugal (Rev. Inst.
Hist. —
pág. 508).
O vice-rei Dom Fernando José de Portugal, a quem tocou a execução da ordem régia para substituir ao taciturno conde de Rezende, compreendeu perfeitamente as vistas do grande ministro a quem o Brasil tributa saudosa memoria. Ordenou, pois, em 1801, a José Rodrigues da Cruz que se passara ás margens superiores do rio Parahyba e que no lugar que lhe parecesse mais commodo assignasse aos indios o terreno estabelecido por lei para cultivarem, e que, na conformidade do aviso de 7 de Março de 1800, mandasse publicar editaes nos lugares publicos que as pessoas que no terreno daquellas já tivessem datas por sesmaria dessem princípio a sua cultura no termo de treis mezes e no caso contrário as podesse requerer qualquer outra. Ligado José Rodrigues da Cruz a seu sobrinho João Rodrigues Pereira de Almeida pelo mesmo pensamento, ambos ardendo em zelo de trazer tantos infelizes ás doçuras pacificas da vida social, tantas almas perdidas ao gremio da igreja catholica, tantos braços perdidos á industria agricola, conquistando para a agricultura essas incultas matas que lhes servem de abrigo, ambos conseguiram lograr os seus esforços.
Partiram
para as margens do Parahyba e pelas providencias que deu o vice-rei ao capitão-mor
da villa de Rezende lhe metteu este da aldêa de S. Luiz Beltrão seis casaes de
indios civilizados que deviam ensinar os indios que iam aldear e todos os
generos de que careciam lhes foram enviados pelo chefe da esquadra, intendente
da Marínha, para o sustento dos índios, pelo espaço de um anno, e Ignacío de
Souza Werneck, incumbido de aberturas de caminhos necessários a penetrar no
sertão, veio fazer parte desta expedição, devendo mais tarde, quando
julgassem mais util e proficuo, partir ao seu encontro os missionarios
encarregados da instrução religiosa dos indios. O zelo e a actividade de José
Rodrigues da Cruz, de seo sobrinho e do cap. Ignacio de Souza Werneck não
podiam, a par das providencias tomadas, ser coroadas do mais feliz exíto.
Tinham os índios declarado que permaneceriam no seo sertão, entre os rios
Preto e Parahyba, e não se podendo pela distancia abrir caminhos sem o socorro
dos cofres publicos, afim de se pagarem os escravos dos particulares, lhes foi
permitido gastar 500 até 600.000 réis, sendo elles sustentados a custa do
Estado (375)
e no anno seguinte deu-se-lhes mais um barril de polvora e chumbo correspondente
e oito arrobas de fumo ordinario, auctorisando-se ao comandante do distrito a
sustentar os indios por mais 6 mezes.
(375) - Requerimento de
Rodrigues da Cruz. (Rev. Inst. Hist. —
pág. 512). (375) - Requerimento de Rodrigues da Cruz. (Rev. Inst. Hist. —
pág. 512).
Penetrou
no sertão por esse tempo, pelos caminhos abertos, o vigário encommendado da
Sacra Familia, Manoel Gomes Leal, nomeado por portaria de 5
de Fevereiro de 1803, em conformidade da ordem regia de 7 de Março de 1800,
capellão curado dos indios com a congrua annual de 150$000 (376),
quantia diminuta para o obreiro que não trabalhasse da vinha do Senhor sinão levado
da ambição de recompensa mundana e enquanto o pastor velava, no rebanho para
que suas ovelhas não desamparassem o aprisco depois de tantos sacrificios,
instruindo-as nas maximas sublimes, e prodigalizando seus beneficios,
apressou-se o bispo D. José Joaquim Justinianno em conferir-lhe a necessaria
jurisdição para construir, edificar ou levantar altar em sítio que melhor
conviesse, benzer a capella e egreja ou cemitério que erigisse, procedendo-lhe
a faculdade regia para administrar aos índios todos os sacramentos (377).
Fundou-se pois a capelinha, fraco tributo de uma povoação ainda nascente,
tendo por orago a virgem sob a invocação de Nossa Senhora da Gloria, tomando a
aldêa o nome de Valença em honra a D. Fernando José de Portugal, depois
marquez de Aguiar, descendentes dos nobres de Valença e era de ver como
prosperava e crescia nesse mesmo lugar aonde ha pouco não eram os proprios
aldeados mais do que uma cabilda de barbaros, temidos pelas suas redobradas
depredações.
(376)
- Monsenhor Pízarro, Memorias
(377) - Pelo despacho de 2
de março a que se seguiu a Portaria de 3. Vide Pízarro. Memórias
Historicas, tomo V, cap. 3o , pág, 290.
E
pois tudo ahi estava cheio de reminiscencias de seus antigos costumes, seduzidos
pelos gosos da vida social já davam graças na sua propria língua ao Deos que
por tanto tempo desconheceram, pelos benefícios que quotidianamente recebiam.
“Era o districto que hoje occupamos, diziam elles, nossa antiga morada, e
depois que reconhecemos a sua magestade real por nosso soberano foi-nos
demarcado terreno para cultivarmos, e d’onde tirassemos a nossa subsistencia,
foram-nos igualmente facilitados outros meios de dinheiros, víveres e tabaco de
fumo, tudo à custa da real fazenda, mandaram-se-nos abrir caminhos para o
interior do sertão e ultimamente tivemos a dita de nos ser dado um parocho para
nos instruir e guiar pelo caminho da fé e da religião (378)
.“ — Bem depressa divulgou-se a fama da fertilidade dos tèrrenos, e os
habitantes da circumvisinhança e mais tarde os estrangeiros atrahidos ao Rio de
Janeiro, então séde da monarchia lusitana, deram merecimento á população da
raça superior pelos seus costumes e ínstrucção à indígena e, por fim, a
peste das bexigas que sobreveio de novo, reduzindo sensívelmente esta,
tornou-se-lhe aquella superior até em numero. A aldêa foi decahindo e a população
branca continuou a augmentar, e pois novo templo, mais amplo, mais decente á
celebração de tão grandes e sublimes mysterios, tornou-se de dia em dia
necessarío e foi afinal começado a levantar a esforços do seu capellão com a
faculdade que lhe concedeu a provisão de 23 de Janeiro de 1812, pela resolução
de 16 de Agosto de 1810 tomada a seu requerimento em consulta da mesa da
consciencia e ordens (379).
Visitado o novo templo pelo amigo dos índios, por aquele que, deixando a vida
tranquilla, arrostou todos os perigos e incommodos da peregrinação pelo centro
das florestas, penetra nas aldêas dos miseros indios e sentou-se sob o rústico
tecto das choupanas de suas ovelhas, para as quais o seu cajado não foi um
simples symbolo, D. José Caetano de Azevedo Coitinho reconheceu a necessidade
de uma freguesia em beneficio de uma população sempre crescente, obrigada a
caminhar por muitas léguas por depender dos parochos das freguesias de Sacra
Família, Paty do Alferes e S. Pedro e S. Paulo, e passou a marcar-lhe os
limites, nomeando o mesmo capellão para dirigir a nova parochia. (380).
(378) - Requerimento dos índios
assinado por Francisco Forte de Bustamante. (Rev. Inst. Hist. pág. 524).
(379) - Monsenhor Pizarro,
Memorias Históricas, tomo V, cap. 32
— pág. 290.
(380) - Pela provisão dada
na respectiva aldêa a 15 de Agosto de 1813, “com a qual, diz
Monsenhor PIZARRO,
requereu à Sua Majestade a sua confirmação; e tendo, por aviso de 15 de
Dezembro de 1813, informado o Revmo. bispo, em 31 de Janeiro do anno seguinte, a
favor da perpetuidade da igreja e do provimento d’ella no seu capellão actual,
outro aviso, de 31 de Março do mesmo anno, foi mandado ao tribunal da mesa da
consciencia e ordens consultar esse negocio, que a real resolução de 1 de
Agosto de 1847 confirmou e autorisou, dando a parochialidade antiga a natureza
de beneficio collativo e perpetuo. Foi primeiro proposto para parocho proprio,
em 1819, o padre Joaquina CIaudio de Mendonça por haver fallecido quem fundára
tão util povoação, e com dia promovêra tambem a creação da parochia.”
Memórias Históricas, tom. V, cap. 32, pag. 291.
A
concurrencia porém dos habitantes círcumvisinhos ao passo que dava novo
augmento á aldêa parece que dispensava a população americana! Bem de pressa
aquelles que até então mereceram os desvellos do governo portuguez se viram ao
desamparo pela morte de seu director e amigo José Rodrigues da Cruz. “Desde
esse tempo, diziam elles, somos perseguidos com toda sorte de vexação; somos
tidos em menospreço pelos nossos visinhos e por elles roubados e esbulhados do
terreno (381).”
Ah malfadados índios! Nem essas terras que possuíam no sertão, onde viviam
livres e onde se submettendo reconheceram por seu soberano aquelle que fugitivo
viria um dia procürar um asylo nas suas plagas, nem esses escaparam á ambição!...
Ao desamparo, entregues a si mesmo, ei-los ahi sem educação religiosa, sem uma
instrucção, pois, que nunca tiveram mestre que lh’a désse; o proprío
pastor esquecido do seu rebanho engolphou-se no gozo dos bens terrestres, e
cuidou mais da cultura das terras, que obtivera por sesmaria, do que na das
almas de seus neóphytos em que ao principio tão zeloso se mostrara. Já
poucos, declinados todos os annos pela terrível epidemia das bexigas, esses
mesmos poucos indios se dispersavam todos os dias, avexados e insultados pelos
moradores da freguezia que lhes imputavam os roubos que appareciam em suas
fazendas.
(381) - Requerimento dos índios
assinado por Francisco Dyonisío Forte de Bustamante. Rev. Inst. Hist. — pág. 524).
Uns
foram refugiar-se nas serras do Tunifel onde estabeleceram a seu modo a
aldeasinha de Manoel Pereira, nome do cabeceira que para ali se encaminhou:
outros nas margens do rio das Flôres fundaram a aldêa de Taypurú;
outros nas margens do rio Bonito a de Xíminim
e outros nas orlas de S. Fernando a aldêa de Tinguá
(382).
Havia José Rodrigues da Cruz requerido, em nome dos índios, uma sesmaria no
lugar onde se achava a matriz em construcção (383),
cuja sesmaria, no dizer do padre Ignacio de Souza Werneck, outróra capitão de
ordenanças, não se verificou com titulo legitimo, talvez por falta de agente
que seguisse os termos (384).
E’ certo porem que se lhes mandou assignar terreno para as suas culturas, e
por editaes se avízou a todas as pessôas que tivessem obtido sesmarias
naquelle sitio que as não cultivasse dentro de 3 mezes as ficariam perdendo na
forma determinada por lei (385),
em cujas capoeiras, que haviam sido espessos matos, viram-se por muito tempo os
marcos (386).
(382) - Oficio do
Sargento-mor Luiz Manoel Pinto Lobato ao desembargador ouvidor da comarca
Manoel Pedro Comes (Rev. Inst.
Hist. — pág. 532).
(383) - Consta da inquirição
das testemunhas que procedem na côrte do Rio de Janeiro, em
março e abril de 1817, o
desembargador ouvidor corregedor Manoel Pedro Gomes sôbre
o requerimento de Eleuterío
Delphim Silva e a oposição dos índios da aldeia de Valença.
(384) - Atestado n.0 2
(Rev. do Instit.
Hist. —
pág. 519).
(385) - Ordenação do
Reino — liv. IV — tit. 43.
(386) - Requerimento do
padre fr. Paulo da Cunha, capelão dos índios. (Rev.
Inst.
Hist.
-—pág.
526).
Um
erro, um erro fatal commetteo o padre Manoel Gomes Leal que, em vez de assegurar
a posse das terras dos índios, requereu-as em 1805, para Florisbello Augusto
de Macedo (387),
de quem constituiu procurador, sem essas condições que se assoalharam de que
era para patrimonío da freguezia, casa de residência para seu parocho e
cultura dos índios, que tal se não deprehende de seus requerimentos (388)
e sendo-lhe as terras concedidas em 3 de Novembro de 1808, passou-se-lhe provisão
para se proceder á demarcação e medição judicial, e como não
apresentassem a sentença, nunca se lhe passou a carta. O que mais admira é a
informação que deu a favor o cap. Ignacio de Souza Werneck, e que tanto peso
fez na consideração dos membros do Senado da Camara do Rio de Janeiro (389).
Segundo testemunhas fidedignas era mais o padre quem figurava nessa pretenção
do que o próprio Florisbello (390)
que cêdo desceu ao tumulo, não tardando o capelão em ir-se-lhe reunir na
Eternidade.
(387) - Florisbello Augusto
foi exposto em 23 de Maio e 1783 em casa de João Francisco Tavares, morador na
Cachoeira do Matto dentro da freguezia de Sacra Familia, e baptisado pelo vigario
Manoel Gomes Leal, sendo padrinhos o mesmo João Francisco Tavares, solteiro, e
D. Rosa Maria de Viterbo, filha de Quiteria da Silva Campello, moradora na
cidade do Rio de Janeiro. Vid. Livro II dos assentos do baptismo dos brancos e
libertos da freguezia, fI. 66, v. Criado em casa do vigario Manoel Gomes Leal,
ahi morreu em 28 de Agosto de 1843, sendo solteiro, succumbindo a uma phtisica
pulmonar. Livro dos obitos da freguezia, fl. 104,v.
(388) - Requerimento de Florisbello
Augusto de Macedo. (Rev. do
Inst. Hist.
— pág. 528).
(389) - Idem 388. (Rev. Inst. Hist. — pág. 528).
(390) - Informação do
juiz das sesmarias, Manoel Rodrigues Pacheco e Moraes, datada da freguezia do
Alferes da Serra Acima em 28 de setembro de 1816. (Rev.
Inst. Hist. — pág. 528).
Fallecido
Florisbello ab-intestado (391),
sem herdeiros conhecidos por ter sido exposto, entendeu Eleuterio Delphim Silva
que devia requerer as terras para si, como as requereu em 1815, e as obteve por
sesmaria na mesma forma que se havia concedido á Florisbello em 14 de Outubro
do anno seguinte, e assim em utilidade de um unico homem, sem direito por seus
serviços, tudo se perdia! Perdiam-se todas as despesas já na civilização dos
índios, já na abertura dos caminhos pelo sertão, ficando a igreja privada do
mesmo chão onde estava construida e os índios sem o azylo, garantidos em sua
submissão e baldados todos os esforços de José Rodrigues da Cruz, que tantos
prejuízos teve em sua lavoura com a fundação da aldêa (392).
O clamor que levantaram os índios por esta concessão obtida obrepticia e
sobrepticiamente, commoveu as almas senslveis e numerosas vozes se ergueram em
seu favor. O bispo D. José Joaquim da Silva Coutinho implorou por elles da
magnificencía real, com aquele gênio contemporizador que tão bem fica num
prelado, que, accommodando-se a Eleuterio Delphim em outro terreno devoluto, se
confirmasse aos índias e igreja o terreno que elles pediam (393).
Os aldeados requereram muitas e muitas vezes, ora exigindo o cumprimento das
promessas que se lhes fizera de uma porção de terreno para seu estabelecimento
(394),
ora expondo, cheios de mágoa, os insultos e os vexames por que o intruso
sesmeiro os fazia passar (395).
(391) - Consta das certidões
passadas em 17 de agosto de 1816 e em 18 de agosto de 1816, por Inácio Miguel
Pinto Campelo e padre Joaquim José Pereira Furtado, vigário da freguezia de Alferes.
(392) - Atestado de Inácio
de Souza Werneck (Rev. Inst.
Hist —
pág. 519).
(393) -
Idem. (Rev. Inst. Hist. — pág.
519).
(394) - Requerimento (1o)
dos índios (Rev. Inst.
Hist. — pág. 518).
(395) - Requerimento (2o)
dos índios (Rev. Inst.
Hist.
— pág. 522).
O
seu capellão o padre fr. Paulo da Cunha, uniu as suas vozes o seo protesto
solene de que a falta de outros títulos que não os serviços do seu protector
José Rodrigues da Cruz e os gastos do erario e dos moradores confrontantes com
a sesmaria da aldêa, se não oppunha á medição, mas que reclamava e
embargava toda a posse até que o rei D. João VI se dignasse de decidir tão
importante questão (396).
Mas tudo em vão!... Eleuterio Delphim, calmo e seguro em realizar os desejos de
sua demarcada ambição, procedeu á medição das terras e foram seos autos
julgados por sentença em 25 de Janeiro de 1817, até que D. João VI, atendendo
o requerimento dos índios que tantas sympatias despertaram, mandou, pela provisão
de 20 de Agosto de 1817, que fossem conservados nos terrenos que necessitassem
para suas culturas, como se praticara com o indio Francisco José da Motta,
estabelecido nas terras que se deram por sesmaria a Manoel de Campos no distrito
da mesma aldêa (397).
(396) - Requerimento do
mesmo. (Rev. Inst.
HIst.
— pág. 526).
(397) - Pela Prov. de 7 de
outubro de 1814 (Rev.
Inst,
Hist. — pág. 531).
E
o sargento-mór Luíz Manoel Pinto Lobato, de ordem do Ouvidor da Comarca, o
desembargador Manoel Pedro Gomes, fixou o competente edital na porta da matriz,
e o vigario respectivo chamou os índios das diversas aldêasinhas — de Manoel
Pereira, Taypurá, Xíminim de Rio
Bonito e do Tanguá, mas — ou eles não quizeram desamparar as suas roças —
ou não se insistiu com elles. Eleuterio Deiphim, já despeitado com essa
medida, já animado por essa quasi recusa dos índios aldeados a seu modo nas
immediações de Valença, lançou mão de todos os recursos que poude ainda, os
mais infames! Para isso, promoveu representações em que figuraram como autores
pessoas analphabetas que nem as puderam assignar, em que faziam ver os damnos
que da visinhança dos aldeamentos de índios resultavam as fazendas. Para isso
mandou pelos meirinhos, com mandado do juiz almotacé da côrte e seu termo, o
capitão Antonio José da Costa Ferreira, notificar aos moradores com casas de
vivenda e negócio para embargo de cultura de terrenos e obras na sua sesmaria (398),
o que deu causa a novos clamores e queixumes, e pelas indagações a que se
procedeu, resultou conhecer-se que o ventário tinha sido illudido por um
despacho falso, passado fóra do estylo em meia folha de papel, afim de levar os
seus intentos por diante e intimidar os indios e mais moradores da aldêa!... (399)
(398)
Consta das certidões do juiz ventanário, passadas na freguezia de Valença em
5 de dezembro de 1817. (Rev. Inst.
Hist. —— pág. 534).
(399)
Idem. (Rev. Inst. Hist. — pág. 534).
N’este
estado de cousas decidiu dom João VI, pelo decreto de 26 de Março de 1819,
nullificando a sesmaria, restituir aos indios os terrenos comprehendidos na
mesma, e subjeitar os moradores que possuiam terras ao fôro que lhes fosse
arbitrado pela camara da villa dos mesmos indíos, e nomeou a Miguel Dias da
Costa para seu director (400),
e na conformidade do despacho da mesa do desembargo do paço, de 5 de Julho do
mesmo anno, ordenou-se ao ouvidor da comarca que, como conservador dos indios,
fizesse registrar as sobre-ditas ordens e a demarcação do terreno e titulos de
posses dos moradores nos livros competentes para que se não pudesse mais fazer
alienação alguma: outrosim, que auxiliando o sobredito director procedesse aos
estabelecimentos necessários fazendo supprir pelo cofre as despezas precisas, e
dando conta das mais aldêas que se pudessem estabelecer nos logares em que os
indios se achassem arranchados e dos terrenos que lhes devia demarcar pela
preferencia que deviam ter nas mesmas terras (401).
(400)
Consta dos autos de medição e demarcação feita e julgada por sentença,
em 25 de janeiro de 1817.
(401) Decr. de 26 de março de 1819. (Rev. Inst. Hist. — pág. 538)
Ao
director recommendou-se que observasse o mesmo que se havia determinado a José
Rodrigues da Cruz na ordem regia e portaria do vice-rei dom Fernando José de
Portugal, de 21 de Novembro de 1801, e o mais que estava estabelecido para a
civilização e catechese dos índios. Este triumpho alcançado pelos aldeados
teve o mais feliz resultado e foi geralmente applaudido pelos moradores de Valença.
Com o novo director pareceu renascer a aldêa e o descobrimento de novas
cabildas de Coroados que se dobraram ao jugo da civilisação, contentes com
mimos e afagos que receberam d’aquelle que os foi buscar no meio dos sertões,
demonstra que perfeita foi a escolha de homem tão intrepido e cheio de
actividade para tão arduos encargos (402)
.
(402) Provisão de 8 de
julho de 1819. (Rev.
Inst. Hist. — pág. 540).
“Recebi a remessa de V. S.
(officiava elle de Valença, em 12 de Agosto de 1819, ao desembargador ouvidor e
corregedor da comarca Joaquim José de Queiroz): recebi a remessa de V.S. que me
fez, por ordem superior, de ferro, aço, enxadas, machados e panelas para os índios
d’estas aldêas. de que sou nomeado director, e faltou-me na dita remessa o
ferro que, em vez de virem quatro quintaes como V.S. fez aviso, chegaram sómente
quatro arrobas, de cujas mandei fazer aqui as fouces, mas não chegou, porque os
indios são muitos, e si V. S. tem para remetter-me maior quantidade será
conveniente vir já para com tempo si fazerem as ditas fouces, e assim como será
conveniente virem outras tantas panellas para poderem chegar por ora para os
indios, e respeito ao feitio das fouces que aqui se mandam fazer, quizera que V.
S. me determinasse o como ha de ser. Tambem si fôr do agrado de S. M. que V. S.
me mande alguns vestuarios para vestir alguns indios, que ainda se acham
muitos nús, para mais facilmente os poder contentar e catechisar. Como V. S. me
o’rdena lhe dê parte das aldêas e seus terrenos, por isso participo a V. S.
que n’esta occasião sahi do matto com a minha gente da diligencia que fui
fazer de reconhecer os ditos indios e suas habitações, e ver a melhor
commodidade para a aldêa, e com effeíto reconheci os indios das aldêas do rio
Bonito das nações Xemínim e Pitás, e também reconheci os das aldêas de S.
Fernando da nação Tampurú, além dos que já estão bem conhecidos d’esta
aldêa de Valença de nação Mitiris e Pitás, e só me falta reconhecer uma
aldêa mais brava que se acha entre os indios de S. Fernando, e os do Bonito
entre as serras grandes do mesmo S. Fernando, o que não fiz agora por não
caber no possivel e ser mais necessario algumas providencias, mas tenho emtenção
ir reconheceI-os com brevidade. Os indios que assim digo que já reconheci, tudo
ficou em boa figura para se poderem aldear em uma legua de terra que se deverá
medir no rio Bonito, onde os indios têm as suas mesmas aldêas por serem terras
muito sublimes com ribeirões de agua, sem complicação de pessoa alguma. Esta
medição deverá ser já feita para eu os poder ir aldeando já, o que sem ella
não o posso fazer por não saber os limites. O terreno da freguezia da aldêa
pelos marcos de Eleuterio Delphim, que consta de 800 braças de testada e 1800
de fundo pouco mais ou menos, deve ser para aldear os índios da nação Mitiri,
cuja nação já está acostumada com o povo da freguezia, e não querem de
forma alguma viverem com as outras nações, nem aquellas com estas.”
Pelo despacho de 7 de Junho de 1819 mandou-se passar carta de sesmaria aos índios
com as dimensões e confrontações contidas na medição e demarcação feita a
favor de Eleuterio Delphím, constando de um trapesio, cuja testada,
confrontando com as terras de dona Joaquina de Rezende, viuva de José Rodrigues
da Cruz, contém correndo pelo angulo de 47 graos e 30 minutos no quadrante do
sudoéste, segundo a variação da agulha, 800 braças contadas pela derrota: o
lado que confronta com as sesmarias de Hyppolito Pimentel e Joanna Maria da
Conceição pelo angulo de 41 gráos e 30 minutos no quadrante do sudoéste
1.920 braças; o outro lado parallelo que confronta com a sesmaria do fallecido
padre Manoel Gomes Leal, tem 1.918 braças contadas pela derrota e o lado
perpendicular a estes que confronta com o conselheiro Manoel Jacintho Nogueira
da Gama, depois marquez de Baependy, correndo pelo rumo d’este contém 780 braças
(403).
A aldêa de Valença, destinada a villa desde 25 de Agosto de 1801, e creada em
1819, como se induz do decreto de 26 de Março, só foi erecta em 1823 pelo
alvará, com força de lei de 17 de Outubro, em virtude da resolução de 3 de
Fevereiro, tomada em consulta da mesa do desembargo do paço, de 13 de Janeiro
do mesmo anno, que a desmembrou dos districtos da côrte e das villas de S. João
do Principe e Rezende (404);
porém pouco lucraram os miseraveis indios; ficaram como d’antes entregues a
si, soffrendo o maior desprezo em menoscabo de todas as leis, e foram diminuindo
sempre a olhos vistos!... E Eleuterio Delphim não descansou; redobrou de esforços
na sua infernal obstinação e sob a illusoria extinção dos indios ou de sua
remoção para o rio Bonito onde se haviam aldeado os Xeminins requereu de novo
as terras devolutas por haver cessado
o motivo que o havia privado de similhante graça. Assim talvez esse homem, tão
acerrimo em querer lograr a posse de uma sesmaria a que não tinha direito,
promovesse directamente por todos os meios a seu alcance, o anniquilamento da
população indígena.
(403)
Ofício do Sargento-mor Luíz Manoel Pinto Lobato, em 18 de outubro de 1817.
(404)
Requerimento do frei Paulo da Cunha (Rev.
Inst. Hist. — pág. 526).
Pelo
decreto de 5 de Julho de 1827 ficou sem effeito o de 26 de Março de 1819,
mandando-se que Eleuterio Delphim ficasse de posse da mesma semaria. Mas esta
revalidação tão obrepticia que não só o constituia verdadeiro donatário
para exigir fóros dos moradores aos quaes se haviam reconhecido o direito de
dominio util, como offendia o direito da camara municipal respectiva pelo domínio
directo que se lhe garantira, não podia persistir por muito tempo: e assim foi.
O novo decreto de 19 de Julho de 1828 o declarou irrito, nullo e de nenhum
effeito, e em seu inteiro vigor o de 26 de Março de 1819, cortando para sempre
as esperanças do pertinaz Eleuterio Delphím. E toda essa multidão de Xumetós,
Pitás, Araris e outros, denominados geralmente Coroados, trazidos à civilisação com, tanto dispendio dos cofres
publicos e sacrificios dos beneméritos varões que promoveram a sua catechese,
quasi que desappareceu — ou ceifada pela peste ou ceifada pelos desregramentos
a que se entregára, vivendo sem policia, sem instrução, de involta com a
população oriunda da Europa, ou Africa, que sem lhe transmittir bons exemplos,
legaram-lhe todos os seus vicios. Existe apenas hoje um diminuto numero de
individuos na populosa villa, outrora antiga aldêa de Valença, e onde algumas
cabanas espalhadas lembram ainda a sua primitiva origem. Nas margens de um rio,
que pela amenidade das terras por onde passeia até precipitar-se no caudaloso
Parahyba lhe puzeram o nome de — Bonito — mandou-se, por uma provisão, no
anno de 1824 a 1825, fundar-se uma nova aldêa, cuja igreja, dedicada a Sancto
Antonio, foi, por alguns annos, filial da matriz de nosso senhora da Gloria de
Valença. Para patrimonío dos índios Coroodos, fugitivos da aldêa d’aquelle
nome, que se buscou concentrar n’este agradavel e fertil sitio, foi doada uma
sesmaria de legua de terra em quadro ainda hoje conhecida pelo nome de Conservatoria (405).
A aldêa de Sancto Antonio do Rio Bonito é hoje uma freguezia, categoria que
lhe foi conferida pela lei de 19 de Março de 1839, desmembrando-a da de nossa
senhora da Gloria (406).
Povoaram-se os sertões incultos com o aldeamento de seus primitivos habitantes,
que, confundidos com a população oriunda da Europa e Africa, mal conserva nos
seus habitos a physionomia o caracteristico de seus ascendentes (407)
. Ignora-se o seu numero (408).”
(405)
“Seus bens, diz o juiz de orphãos do termo de Valença João Baptista Soares
de Meirelles no seu Officio de 24 de Fevereiro de 1835 ao presidente da
provincia José Joaquim Rodrigues Torres, seus bens são meramente uma legua de
terra em quadro da chamada Conservatoria, em o rio Bonito, estabelecida em tempo
dos corregedores das comarcas há mais de dez ou doze annos, sem agricultura ou
aproveitamento algum dos mesmos indio, mas toda occupada e povoada por agronomos,
em tanta monta que não resta nem cem braças desoccupadas de tres mil que
compreende o seu todo.
(406) Lei n. 136. Ao curato
de Sancto Antonio do Rio Bonito ficou, pela lei n 56 de 9 de Dezembro
de 1836, annexada a parte dos freguezes que então pertenciam ao das Dôres, e
que tinham o seu domicilio estabelecido no districto e municipio de Valença,
foi, pela lei já citada, elevado á cathegoría de freguezia. A lei n. 484
de 26 de Maio de 1849, creou no seu 2o districto um curato sob a invocação de
Nossa Senhora da Piedade das lpiabas, e no 3o de Sancta lzabel do Rio Preto, o
que prova o augmento que tem tido esta nascente povoação.
(407)
Tem dentro em si a povoação onde está edificada a capella curada e com a
residencia de um cura, e já com tantos edifícios que se torna de dia em dia um
arraial populoso, com tal progresso que ainda em 1821 era sertão inculto sem
uma só casa, em matto virgem, quando agora já tem as construcções que venho
de dizer.” J.B.S. de Meirelles, no offício já citado.
(408) “Ha no Rio Bonito
alguns aldeados, cujo numero, sexo e idade ignoro.” Officio do mesmo juiz de
orphâos J.B.S. de Meirelles, datado de 20 de Março de 1835,
Pelo
exposto na documentação acima, conclui-se que, segundo comenta o escritor e geógrafo
Joaquim Norberto de Souza Silva — “A
aldêa de
Nossa Senhora da Gloria de Valença dá a conhecer o desleixo na educação
dos índios, o abandono de seus interêsses e a sua dispersão; —- veremos ahi
a reluctancia em se lhes pretender roubar a sesmaria que possuiam, e onde haviam
edificado a sua capella. Enfim, todas ellas offerecem exemplos tristissimos da
pessima administração que por um destino acerbo e infausto lhes coube. Os próprios
jesuitas não tiveram escrúpulos em vender as suas mais pingues terras, e
alguns dos curas, que os substituiram, seguiram o mesmo systema de se apropriar
de seus bens. Os brancos levaram seus vicios ao centro das aldêas, sem que lhes
communicassem suas virtudes, e quando acharam na integridade dos magistrados um
dique às suas quotidianas usurpações, idearam outros meios de roubal-os,
empobrecendo mais e mais o patrimonio de tão infelizes povos.” (13)
(13)
Rev. Inst. Hist. e Geogr. do Brazil -
3a série - No. 4 - 1854 - pág.
112.
O
FUNDADOR DE VALENÇA
Falar
em José Rodrigues da Cruz, o fazendeiro de Ubá, é rememorar a fundação do
arraial de Valença e seu povoamento, tais foram o afeiçoamento e o carinho com
que, no sertão valenciano, se dedicara o catequizador, atraindo para o seio da
Civilização os índios Coroados que
já o consideravam como o seu benfeitor, pelo bem que lhes proporcionara em sua
fazenda e arredores, onde “visitava-os em suas palhoças, recebia-os em sua
casa e, para captar sua confiança, gastava com eles grandes somas.” Essas
informações foram confirmadas posteriormente por Joaquim Norberto de Souza
Silva, que as documentou, como já vimos, na sua Memória Histórica e Documentada das Aldêas de Indios da Provincias do
Rio de Janeiro.
José Rodrigues da Cruz, fundador de Valença
Rodrigues
da Cruz, fundador das fazendas do Pau Grande e Ubá, prestou relevantes serviços,
com sacrifício de seus haveres e do seu bem-estar, fazendo penetrar a civilização
no sertão de Valença. Seu nome e as
suas fazendas estão estreitamente ligados à história de Valença, e, por
isso, são dignas de especial registro as notas e observações de Matoso Maia
Forte, ao traduzir Voyage dans le Province
do Rio de Janeiro, de Augusto de Saint Hilaire:
“Pau
Grande foi, durante quatro quintas partes do século passado, um estabelecimento
agrícola e industrial de grande importância regional. Os primitivos donos de
terras, ahi, foram os irmãos Gomes Ribeiro e suas propriedades passaram para a
de um Ribeiro de Avellar, membro da família e de Antonio dos Santos, ambos sócios
de um armazem no porto da Estrella, ao qual as suas atividades comerciais deram
grande impulso”.
“No
anno em que Saínt-Hilaire passou por Pau Grande era proprietarío da fazenda
Luiz Gomes Ribeiro de Avellar, que fez construir (1797-1810) o casarão aqui
descripto. Passou delle para Antonio Ribeiro de Aveliar e deste para Joaquim
Ribeiro de Avellar, agraciado por D. Pedro II com o titulo de Barão de Capivary
e deste para seu filho do mesmo nome agraciado tambem com o titulo de Visconde
de Ubá. Por morte delle a propriedade passou a ser de seus filhos, Dr. Antonio
Ribeiro Velho de Avellar, Coronel Joaquim Ribeiro de Avellar e Baroneza de
Muritiba”.
“Para
exploração da fazenda do Pau Grande, foi associado de Antonio Ribeiro de
Avellar e Antonio dos Santos, o agricultor José Rodrigues da Cruz a quem o
autor também se refere”. (14)