“CHORO: Uma Expressão Musical Genuinamente Brasileira”
Jailson Raulino.
Ao fim do século XIX, músicos amadores costumavam formar conjuntos à base de violões e cavaquinhos, interpretando um estilo que desde 1844 incrementava os bailes e serestas da época, figurando assim, como uma expressão musical genuinamente brasileira.
O presente trabalho, visa ressaltar a importância do choro, dentre as mais variadas manifestações da música popular brasileira, tanto quanto sua contribuição para o desenvolvimento técnico da clarineta no Brasil. Nossa intenção é contextualizá-lo no panorama geral, não delimitando ou atribuindo sua origem, à apenas um centro urbano (Rio de Janeiro), como foi observado na maioria das referências bibliográficas.
Devido a abrangência do seu conteúdo, a origem da palavra choro, do ponto de vista musical, possui interpretações bastante ambíguas. Afinal, confusão de palavras no ato de denominar, é próprio do homem, talvez, por ter sido uma tarefa sua, desde seus primórdios, “E Adão pôs os nomes a todos os animais domésticos, e às aves dos céus, e a todo animal do campo[1]...”, ou quem sabe, confusão própria da língua portuguesa.
Luís Câmara Cascudo afirma que “[...] os nossos negros faziam em certos dias, como em São João, ou por ocasião de festas nas fazendas, os seus bailes, que chamavam de xôlo, expressão que, por confusão com a parônima portuguesa, passou a dizer-se xôro e, chegando à cidade, foi grafada choro, com ch.[2]”
Ary Vasconcelos atribui a derivação à palavra choromeleiros, “corporação de músicos que teve atuação importante no período colonial brasileiro. Para o povo, naturalmente, qualquer conjunto instrumental deveria ser sempre os choromeleiros, expressão que acabou sendo reduzida para os choros.[3]”
Conjunto instrumental boêmio, originário do Rio de Janeiro, por volta de 1870, executando músicas essencialmente urbana, é como define Mário de Andrade (1987) a palavra chorões. Ao conjunto original de chorões (flauta, violão, cavaquinho...) foram acrescentando-se alguns instrumento, inclusive a percussão (pandeiros, ganzás, reco-recos), que teve ingresso no choro através de Jacó Palmieri (pandeirista), afirma Ary Vasconcelos (1984) que; “Em 1921, o pandeiro é mencionado, pela primeira vez em um selo de disco, como integrante do Grupo do Moringa (clarinetista), nas gravações de No Rancho e É Assim Que Eu Gosto (Odeon 121. 992/3).
Ainda existe a versão de Lúcio Rangel, a qual nos diz que os esquemas modulatórios e tom plangente, foram responsáveis pela impressão de melancolia que acabaria conferindo o nome de choro a tal maneira de tocar e a designação de chorões aos músicos de tais conjuntos, por extensão.
Mas, como afirmar que o choro é originário de apenas um centro urbano? Se observarmos as seguintes declarações:
O musicólogo Pe Jaime Diníz, estudando a vida musical em Pernambuco no século XVIII, nos dá este testemunho:
Os conjuntos instrumentais dos charamelleyros é que nunca devem ter faltado às festividades da Senhora do Rosário, como também, muito provavelmente, deviam abrilhantar o dia da coroação dos reis e rainhas, angolas ou crioulos. As charamelas constituíam especialidade dos negros, escravos ou não. Trata-se seguramente de uma herança direta da cultura portuguesa, implantada no nordeste brasileiro já desde remotas eras[...] [4]
O termo choromelleyro (ou charamelleyro) abrangia não só os tocadores de charamela, mas também de outros instrumentos de sopro. Bruno Kiefer (1976, p. ?), registra que: “a notícia mais antiga relativa aos choromeleiros no Recife é encontrada na documentação da Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos e data de 1709.
Régis Duprat, comenta sobre a música durante o período colonial na Bahia: “[...] não falamos do solfistas negro ou mulato mantido nas bandas ou empregado nas serenatas pelos aristocratas[...][5]”
Também Vicente Salles, estudioso da vida musical no Pará, durante o período colonial, traz este testemunho: “Alguns senhores de engenho acumularam vastas riquezas e possuíam grande escravaria. Havia escravos charameleiros que com seus instrumentos musicais, alegravam as festas.[6]”
Diante dos pressupostos do ponto de vista histórico e etimológico do choro, podemos, por inferência, identificar no presente estudo uma forte influência negra. Assim como a América do Norte assimilou e se apoderou da influência africana, aconteceu em nosso país o mesmo fenômeno. As síncopas européias desenvolvidas pelo afro-americano, nos deram a riqueza rítmica que em nossa música se manifesta, o contato afro-ibérico, foi enriquecedor à cultura musical brasileira. “A risada do negro é que quebrou toda essa apegada e vil tristeza em que foi abafando a vida nas casas-grandes. Ele, que deu alegria às festas de São João, Bumba-meu-boi, cavalo-marinho, carnavais e etc.” Gilberto Freire, por F. Acquarone (1949, Pp 134-36).
Enfim, a influência do negro escravo foi sumamente importante no desenvolvimento da cultura musical no Brasil. É evidente, que esta influência seja oriunda do nordeste brasileiro, visto que, Pernambuco e Bahia foram os estados que prosperaram no sistema de capitanias, assim como relatou Décio Freitas em sua obra Palmares – A guerra dos escravos:
Fecundadas pelo trabalho negro, as capitanias de Pernambuco e Bahia ganharam vida. Ao longo do litoral floresceram os canaviais e se multiplicaram os engenhos. Pelos fins do século XVI, Pernambuco e Bahia já sobressaíam no mercado mundial como os maiores produtores de açúcar. E para que isso fosse possível, os traficantes descarregavam nas costas brasileiras uma média anual de cinco mil negros[7].
A consolidação do choro, como um gênero musical, atribui-se a Joaquim Antônio da Silva Calado[8], sua peça mais conhecida é a polca para piano, Querida por todos, onde o compositor com muita habilidade transforma a célula rítmica, e.x ee em äk x ä e e eÅ x ä e no acompanhamento do baixo, revelando um caminho de novos padrões rítmicos para um novo gênero.
O choro, segundo Nicolás Slonimsky, é “qualquer composição instrumental, na qual contenha elementos da nacionalidade brasileira”. Sendo assim, não representa forma de composição definida, pelo contrário o choro como um gênero abrange uma gama diversificada de caracteres da música folclórica do Brasil, ou mesmo, um “jeitinho brasileiro” de se executar as polcas, xotes, valsas, maxixes, mazurcas e outras danças em voga na época. Daí o porque, Villa-Lobos estendeu o nome ao grupo de doze composições de sua autoria, as quais contêm aspecto da música folclórica brasileira (N. Slonimsky, 1947).
Admite-se, partes vocais, porém, é predominantemente o choro instrumental na forma rondó (A-B-A-C-A), ou por vezes binária e outras. Em geral, com um instrumento solista, que proporciona ao instrumentista a oportunidade de demonstrar seu domínio técnico e o dote de improvisação, diz-se que, cada qual procura executar as músicas de maior efeito visando impressionar o ouvinte e superar os seus rivais instrumentistas, em agilidade e bossa. Logo após se impor como um novo gênero musical, o choro passou a desfrutar da contribuição de diversas gerações de compositores, enriquecendo o repertório.
Nos últimos anos do império, com destaque para o flautista Joaquim Antônio da Silva Calado, floresce a primeira geração de compositores de choro, Viriato Figueira da Silva, Virgílio Pinto da Silveira, Capitão Rangel, ‘Bacuri’, Jerônimo Silva, Guilherme Cantalice, Soares Barbosa, Francisca Hedwiges Gonzaga[9] e o pianista Ernesto Nazaré.
Em 1889, o novo regime político brasileiro (República), pode servir de marco, a partir do qual começou a despontar uma nova geração cujo maior nome foi Anacleto de Medeiros, além de Albertino Pimentel, Irineu Almeida, Juca Kalut, Galdino Barreto, Henrique Dourado, Pedro Galdino, Luís de Sousa, Candinho Silva e outros.
Entre 1919 e 1930, surge a terceira geração de chorões, cujo expoente, na verdade é Alfredo da Rocha Viana Jr. (Pixinguinha), o maior nome do choro de todos os tempos, os demais são; Romeu Silva, Ernesto Pimentel, José Napolitano (Moringa), Bonflígio de Oliveira, ‘Nola’, Luís Americano e ainda Aristides Júlio de Oliveira.
Entre 1927 e 1946, época em que surgiu as primeiras vitrolas elétricas, que proporcionaram aos ouvintes uma audição bem mais natural, além dos grandes nomes de gerações anteriores continuarem produzindo, outros nomes se revelaram, tais como; Alberto Marino, Antenógenes Silva, Radamés Gnattali, Gastão Bueno Lobo, Aníbal Augusto Sardinha (Garoto), Benedito Lacerda e Dante Santoro.
Pode-se dizer, que é na segunda metade da década de quarenta quando surge a quinta geração de compositores de choro, é uma fase bem mais propícia para o gênero, a de 1945 a 1950. Nessa fase temos: Jacó Bittencourt (Jacó do Bandolim), Severino Araújo, ‘Cipó’, Carlos Lima do Espírito Santo, Luís Bittencourt, Raul de Barros, Valdir Azevedo e, embora tendo estreado anteriormente, começa a se destacar nessa época, inicialmente em São Paulo, posteriormente no Rio de Janeiro, o compositor e instrumentista Abel Ferreira. Não obstante, o nordeste que tantos músicos já fornecera ao choro; João Pernambuco, Luperce Miranda, ‘Ratinho’, ‘Tia Amélia’, Severino Araújo, Sivuca e, por fim, em 1959, chega ao Rio de Janeiro o violonista e compositor Francisco Soares de Araújo (Canhoto da Paraíba). Entre os mais recentes compositores está; Altamiro Carrilho, Paulo Moura, Rafael Rabelo e outros. A relação de compositores citados é conforme Ary Vasconcelos (1984).
É importante ressaltar, como clarinetista, o quanto significa o choro para o desenvolvimento técnico do instrumentista. A riqueza de seu ritmo, andamento, a linha melódica e o caráter, se afinam de maneira íntima com o extraordinário poder de nuanças e a extensa possibilidade de recursos sonoros, oferecidos pelo instrumento. Uma grande afinidade, do ponto de vista técnico e sonoro foi estabelecida entre a clarineta e o choro, vários componentes estilísticos coadunam-se com a versatilidade peculiar do instrumento, encontrando assim o clarinetista, um ambiente propício para desenvolvimento de novas matizes sonoras, nuanças cômicas e, enfim, efeitos surpreendentes.
Portanto, assim como o choro assume papel de destaque, para o desenvolvimento da técnica clarinetística, sua prática é de fundamental importância, isto porque, inerente a execução de obras desse gênero, encontram-se exercícios, oferecidos por um estilo, que retrata elementos típicos da cultura brasileira com implicação direta para o desenvolvimento da performance. Um considerável número de clarinetistas especializaram-se na composição e interpretação de choros, é destacável a atuação de: José Napolitano, Luís Americano, Lourival Inácio de Carvalho, Abel Ferreira, Severino Araújo, Paulo Moura e Paulo Sérgio Santos, dentre outros.
Enfim, uma particularidade do choro é a fascinante liberdade literária dos autores na titulação, extravasando a meiguice, o romantismo, o humorismo, assim como o deboche e a pernosticidade, p. e., A mulher é um diabo de saias, Seu Derfim tem que vortá, Língua comprida, Foi atrás da bananeira, Espinha de bacalhau, Saxomaníaco, Turbilhão de beijos e etc, todos com um certo padrão de lirismo, pertinente ao estilo da música.
Concluímos que, uma grande lacuna na documentação histórica do choro, contribui para uma série de controvérsias sobre o assunto, que hora reconhecemos sua riqueza e importância na musicologia histórica do Brasil. Portanto, um estudo que procura analisar e avaliar o aproveitamento dos recursos oferecidos por um estilo que traduz traços da nossa cultura musical, parece-nos necessário e ao mesmo tempo oportuno, pois, não só fortalece nossa identidade cultural, como também impulsiona a divulgação da música brasileira.
Jailson Raulino. Graduou-se na Universidade Federal da Paraíba, é Mestre em Música na área de concentração Execução Instrumental pela Universidade Federal da Bahia e atualmente é Professor Assistente (clarineta) da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected]
[1] “Gênesis”. Bíblia Sagrada. Trad. dos originais por João Ferreira de Almeida. Edição Contemporânea. Ed. Vida. Flórida, 1990. Cap. 2, vers. 20.
[2] Luís Câmara Cascudo. Dicionário do Folclore Brasileiro. 7a edição. Ed. Itatiaia Ltda. Rio de Janeiro, 1993.
[3] Ary Vasconcelos. “Choro”. Panorama da Música Popular Brasileira na “Belle Époque”. Liv. Santa’nna Ltda. 1977. Pp. 13,14.
[4] Jaime C. Diníz. Músicos Pernambucanos do Passado. UFPE, Recife, 1971. Vol. II, p. 28.
[5] Régis Duprat. A Música na Bahia Colonial. Revista de História, n° 61, São Paulo, 1965. Pp. 98.
[6] Vicente Salles. Quatro Séculos de Música no Pará. Revista Brasileira de cultura, n° 2, 1969. p. 25.
[7] Décio Freitas. Palmares – A guerra dos escravos. Movimento, Porto Alegre, 1973. p. 17.
[8] Joaquim Antônio da Silva CALADO ( RJ, 1848- 80), conhecido como Calado Júnior até a morte de seu pai e xará, teve uma formação erudita, chegando a ser professor do Conservatório do Rio de Janeiro em 1870, mas desde cedo, tocava músicas dançante em festas populares.
[9] Chiquinha Gonzaga, considerada o maior vulto feminino na história da música popular brasileira.