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Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Escrever, por exemplo: "A noite está
estrelada, e tiritam, azuis, os astros
lá ao longe". O vento da noite gira no céu e canta. Quando tive, pela primeira
vez, nos olhos e nas mãos os seus poemas, fui atingida.
Fulminantemente. Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela. E o verso cai na alma como no pasto o orvalho. Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la. A noite está estrelada e ela não está comigo. Pablo Neruda. Aqueles versos me
umedeceram os olhos. Os significados também. Li, reli. Recitei em voz alta,
decorei, guardei. Pablo Neruda. O nome repetiu-se
acompanhando as batidas do meu coração. Apaixonei. Sabia pouco sobre ele,
então. Só o que (me) interessava. Que escreveu essa obra com cerca de vinte
anos, o que me fazia pensar que ele teria os mesmos vinte quando “o conheci”.
Eu tinha quase treze. Perfeito! Sabia que era chileno. Amor, quantos
caminhos até chegar a um beijo, que solidão errante até tua
companhia! Achei que o Chile nem
ficava tão longe assim. Era logo ali, uma simples questão de horas. Mas para onde vá
levarei o teu olhar e para onde caminhes levarás
a minha dor. Olhei através da fantasia
e vi um rapaz jovem, moreno, alto e forte. Com voz de artista de cinema.
Imaginei uns olhos verdes, profundos e tristes, olhando pela janela, pensando
sobre a pessoa a quem ele escrevia. Imaginei uma camisa branca com as mangas
arregaçadas descuidadamente, cabelos em desalinho, debruçado sobre seus
versos e paixões. Imaginei e criei. Sonhos e histórias. Para meu coração basta teu peito para tua liberdade
bastam minhas asas. E eu voava. Muitos poemas,
alguns recortes colados nos cadernos. Fui colecionando. Cada vez que
encontrava algum, em livros, diários de recordações ou semelhantes, copiava ou recortava e guardava. Imaginava um dia
conseguir um pôster, enorme, para ter colado na parede do meu quarto, com
aqueles olhos verdes brilhantes e tristes, para dar uma última olhada antes
de apagar a luz e adormecer sonhando. E o coração, batia. Cada
vez mais. Ela amou-me, por vezes eu também a amava. Como não ter
amado os seus grandes olhos fixos? Horas em
frente ao espelho, ensaiando. Queria
aprender os “olhos fixos”. Olhava os meninos na
escola. Fazia “olhos fixos”. Sem graça. Nenhum se chamava Pablo. E nenhum
reparou nos meus olhos fixos. A noite... o
mundo... o vento enovelam seu destino, e já não sou sem ti senão
apenas teu sonho... A paixão cresceu e me
acompanhou pelo tempo em que duraram as minhas outras paixões adolescentes. Um dia, o choque. O
dilúvio. O caos. A professora iniciou o
momento (não a perdôo por isso) em que se desfaria impiedosamente meu
encantamento. Foi um trabalho de escola. Trabalho Mal esperei para ir à
biblioteca, depois da aula. E fui. Sozinha, o grupo não podia. Tudo bem, eu
faria o “sacrifício”. Entrei atropelando algumas
pessoas. Como se tivesse um encontro, eu tinha pressa. Pedi textos, dados,
imagens, tudo. A bibliotecária trouxe. Comecei pelos poemas, copiei muitos. De próprio punho e a lápis, era assim que
se fazia. Depois, a biografia. Pablo Neruda. Biografia.
Comecei a ler. “Neftali...” Neftali?
Puxa, que nome... Mas tudo bem. Tinha um “Ricardo” logo em seguida que
compensava. Não chegava aos pés de “Pablo”, mas era bonito. “Poeta chileno, nascido em
Parral......................
em 1904.” 1904! Meu Deus! Nunca fui
boa em matemática, mas aquele cálculo se fez sozinho. Saltou do livro e me
atingiu num soco o peito, quase me derrubou da cadeira. É isso mesmo? 1904?
Não acreditei! 68 anos? Corri abrir os outros livros, achei a foto. A foto! Se eu ainda não
havia compreendido direito, naquele momento eu soube exatamente o que ele
quis dizer com “olhos fixos”. Não só.
Os braços também. O corpo todo. Talvez não ser, é ser sem que tu sejas... Meus sonhos caíram,
passaram do chão, junto com a vontade de continuar o trabalho. Fiquei pálida,
tenho certeza. Fechei os livros, ajeitei a mesa, peguei minhas coisas. Olhei
disfarçadamente para os lados. Ninguém notou. Saí devagarzinho, a princípio.
Agradeci à bibliotecária (com ódio por ter dado o livro). Saí correndo dali
com mais pressa ainda do que quando entrei. Vou-me embora.
Estou triste: mas sempre estou triste. Venho dos teus
braços. Não sei para onde vou. E não sabia mesmo. À noite, em casa, pensando
no fora homérico, comecei a ler tudo o que havia colecionado. Me senti traída. Queria achar alguma coisa, qualquer
coisa, que me fizesse entender o acontecido. Gosto quando te calas porque estás como ausente, e me ouves de longe, minha
voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado e parece que um beijo te
fechara a boca. E lembrava do quepe
xadrezinho de lã na cabeça, igual ao do meu avô. Tu eras também
uma pequena folha que tremia no meu peito. O vento da vida
pôs-te ali. E do cachimbo na mão. A princípio não
te vi: não soube que ias comigo, até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito, se uniram aos fios do meu
sangue, falaram pela minha
boca, floresceram comigo. Mas lembrava mais da
poesia. Posso escrever os versos mais tristes esta noite... A poesia! Era isso! Atingida.
Irremediavelmente. Definitivamente. Era amor, sim. Mas tinha
outro foco. Os versos. Aqueles versos que me umedeceram os olhos. Os significados
também. Aqueles que li, reli, recitei em voz alta.
Que decorei e guardei. Até hoje. Ainda ensaio os tais
“olhos fixos”. Um dia eu aprendo. Um dia. E não posso dizer que amei, usando
o verbo no passado. Ainda amo. Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe... E eu ouço, Neruda. Desde
aquele dia. E sempre.
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