Poesia, conto, crônica, prosa e verso: Os mais lindos textos de autores consagrados da literatura brasileira você encontra aqui. O amor mais do que perfeito traduzido em textos, poesias e prosas de autores como Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Cecilia Meirelles, Florbela Espanca, Arnaldo Jabor, Fernando Sabino, Luis Fernando Verissimo, Paulo Coelho, Mario Prata, Gibran Khalil Gibran, Pablo Neruda, Vinicius de Moraes e Tom Jobim e muitos outros.

 

Gibran Kahlil Gibran

 

O Poeta do Amor

1883 - 1931

 A borboleta continuará a pairar sobre o campo e as gotas de orvalho ainda brilharão sobre a relva quando as pirâmides do Egito estiverem destruídas e não mais existirem os arranha-céus de Nova York.

Vim para dizer uma palavra e devo dizê-la agora. Mas se a morte me impedir, ela será dita pelo amanhã, porque o amanhã nunca deixa segredos no livro da Eternidade. Vim para viver na glória do Amor e na luz da Beleza, que são reflexos de Deus.

Estou aqui, vivendo, e não me podem extrair o usufruto da vida porque, através da minha palavra atuante, sobreviverei mesmo após a morte. Vim aqui para ser por todos e com todos, e o que faço hoje na minha solidão ecoará amanhã entre todos os homens.

O que digo hoje com apenas meu coração será dito amanhã por milhares de corações.

                    Gibran Kahlil Gibran

 Um Pensamento Revestido de Beleza

 Seu nome completo é Gibran Kahlil Gibran. Assim assinava em árabe. Em inglês, preferiu a forma reduzida e ligeiramente modificada de Khalil Gibran. É mais comumente conhecido sob o simples nome de Gibran.

1883 - Nasceu em 6 de dezembro, em Bsharri, nas montanhas do Líbano, a uma pequena distância dos cedros milenares. Tinha oito anos quando, um dia, um temporal se abate sobre sua cidade. Gibran olha, fascinado, para a natureza em fúria e, estando sua mãe ocupada, abre a porta e sai a correr com os ventos. Quando a mãe, apavorada, o alcança e repreende, ele lhe responde com todo o ardor de suas paixões nascentes: "Mas, mamãe, eu gosto das tempestades. Gosto delas. Gosto!" (Um de seus livros em árabe será intitulado Temporais).

1894 - Emigra para os Estados Unidos, com a mãe, o irmão Pedro e as duas irmãs Mariana e Sultane. Vão morar em Boston. O pai permanece em Bsharri.

1898/1902 - Vota ao Líbano para completar seus estudos árabes. Matricula-se no Colégio da Sabedoria, em Beirute. Ao diretor, que procura acalmar sua ambição impaciente, dizendo-lhe que uma escada deve ser galgada degrau por degrau, Gibran responde: "Mas as águias não usam escadas!"

1902/1908 - De novo em Boston. Sua mãe e seu irmão morrem em 1903. Gibran escreve poemas e meditações para Al-Muhajer (O Emigrante), jornal árabe publicado em Boston. Seu estilo novo, cheio de música, imagens e símbolos, atrai-lhe a atenção do Mundo Árabe. Desenha e pinta numa arte mística que lhe é própria. Uma exposição de seus primeiros quadros desperta o interesse de uma diretora de escola americana, Mary Haskell, que lhe oferece custear seus estudos artísticos em Paris.

1908/1910 - Em Paris. Estuda na Académie Julien. Trabalha freneticamente. Freqüenta museus, exposições, bibliotecas. Conhece Auguste Rodin. Uma de suas telas é escolhida para a Exposição das Belas-Artes de 1910. Nesse ínterim, morrem seu pai e sua irmã Sultane.

1910 - Volta a Boston e, no mesmo ano, muda-se para Nova York, onde permanecerá até o fim da vida. Mora só, num apartamento sóbrio que ele e seus amigos chamam  As-Saumaa (O Eremitério). Mariana, sua irmã, permanece em Boston. Em Nova York, Gibran reúne em volta de si uma plêiade de escritores libaneses e sírios que, embora estabelecidos nos Estados Unidos, escrevem em árabe com idênticos anseios de renovação. O grupo forma uma academia literária que se intitula Ar-Rabita Al-Kalamia (A Liga Literária), e que muito contribuiu para o renascimento das letras árabes. Seus porta-vozes foram, sucessivamente, duas revistas árabes editadas em Nova York: Al-Funun (As Artes) e As-Saieh (O Errante).

1905/1920 - Gibran escreve quase que exclusivamente em árabe e publica sete livros nessa língua: 1905, A Música; 1906, As Ninfas do Vale; 1908, Espíritos Rebeldes; 1912, Asas Partidas; 1914, Uma Lágrima e um Sorriso; 1919, A Procissão; 1920, Temporais. (Após sua morte, será publicado u m oitavo livro, sob o título de Curiosidades e Belezas, composto de artigos e histórias já aparecidas em outros livros e de algumas páginas inéditas).

1918/1931 - Gibran deixa, pouco a pouco, de escrever em árabe e dedica-se ao inglês, no qual produz também oito livros: 1918, O Louco; 1920, O Precursor; 1923, O Profeta; 1927, Areia e Espuma; 1928, Jesus, o Filho do Homem; 1931, Os Deuses da Terra. (Após sua morte serão publicados mais dois: 1932, O Errante; 1933, O Jardim do Profeta.) Todos os livros em inglês de Gibran foram lançados por Alfred A. Knopf, dinâmico editor norte-americano com inclinação para descobrir e lançar novos talentos. Ao mesmo tempo em que escreve, Gibran se dedica a desenhar e pintar. Sua arte, inspirada pelo mesmo idealismo que lhe inspirou os livros, distingue-se pela beleza e a pureza das formas. Todos os seus livros em inglês foram por ele ilustrados com desenhos evocativos e místicos, de interpretação às vezes difícil, mas de profunda inspiração. Seus quadros foram expostos várias vezes com êxito em Boston e Nova York. Seus desenhos de personalidades históricas são também célebres.

1931 - Gibran morre em 10 de abril, no Hospital São Vicente, em Nova York, no decorrer de uma crise pulmonar que o deixara inconsciente.

 Do Livro "A Voz do Mestre"

Ninguém pode conviver sozinho com a beleza que é capaz de perceber. E quanto a nós, que buscamos o Absoluto, e que construímos um jardim usando a nossa própria solidão, a Vida nos deixou a imensa paixão para aproveitar cada instante, com toda a intensidade.

Do Primeiro Olhar

É aquele momento em que a Vida passa da sonolência para a alvorada. É a primeira chama que ilumina o íntimo mais profundo do coração. É a primeira nota mágica arrancada das cordas de prata do sentimento. É aquele momento instantâneo em que se abrem diante da alma as crônicas do Tempo, e se revelam aos olhos as proezas da noite, e as vozes da consciência. Ele é que abre os segredos da Eternidade para o futuro. É a semente lançada por Ishtar, deusa do Amor, e espargida pelos olhos do ser amado na paisagem do Amor, depois regada e cuidada pela afeição, e finalmente colhida pela alma.

O primeiro olhar vindo dos olhos do ser amado é como o espírito que se movia sobre a face das águas e deu origem ao céu e à terra, quando o Senhor sentenciou: "E agora, vivei!"

 

Do Primeiro Beijo

É o primeiro gole de néctar da Vida, numa taça ofertada pela divindade. É a linha divisória entre a dúvida que engana o espírito e entristece o coração, e a certeza que inunda de alegria nosso íntimo. É o começo da canção da Vida e o primeiro ato do drama do Homem Ideal. É o vínculo que une a obscuridade do passado com a luminosidade do futuro; é a ponte entre o silêncio dos sentimentos e a sua própria melodia. É uma palavra pronunciada por quatro lábios, proclamando o coração um trono, o Amor um rei e a fidelidade uma coroa. É o toque leviano dos dedos delicados da brisa nos lábios da rosa — pronunciando um longo suspiro de alívio e um suave gemido.

É o começo daquela vibração mágica que transporta os amantes do mundo das coisas e dos seres para o mundo dos sonhos e das revelações.

É a união de duas flores perfumadas; e a mistura de suas fragrâncias, para a criação de uma terceira alma.

Assim como o primeiro olhar é uma semente lançada pela divindade no campo do coração humano, assim o primeiro beijo é a primeira flor nascida na ponta dos ramos da Árvore da Vida.

 

Do Casamento

Aqui o Amor começa a traduzir a prosa da Vida em hinos e cânticos de louvor, com música que é preparada à noite para ser cantada durante o dia. Aqui a força do amor despe-se dos seus véus, e ilumina todos os recessos do coração, criando uma felicidade que só é excedida pela da Alma quando se encontra com Deus.

O casamento é a união de duas divindades para dar nascimento a uma terceira na terra. É a união de duas almas num amor tão forte que possa abolir qualquer separação. É aquela superior unidade que junta as metades antes separadas, de dois espíritos. É o elo de ouro de uma cadeia cujo começo é um olhar, e cujo fim é a eternidade. É a chuva pura que cai de um céu perfeito para frutificar e abençoar os campos da divina Natureza.

Assim como o primeiro olhar entre os que se amarão é como uma semente lançada no coração humano, e o primeiro beijo de seus lábios uma flor nos ramos da árvore da vida, também a união de dois amantes pelo casamento é como o primeiro fruto da primeira flor daquela semeadura.

 

~ Da Música ~

Sentei-me ao pé daquela que meu coração ama, e ouvi suas palavras. Minha alma começou a vaguear pelos espaços infinitos onde o universo aparecia como um sonho, e o corpo como uma prisão acanhada.

A voz encantadora de minha Amada penetrou em meu coração.

Isto é música, amigos, pois eu a ouvi através dos suspiros daquela que amo, e pelas palavras balbuciadas por seus lábios.

Com os olhos de meus ouvidos, vi o coração de minha Amada.

Meus amigos: a Música é a linguagem dos espíritos. Sua melodia é como uma brisa saltitante que faz nossas cordas estremecerem de amor. Quando os dedos suaves da música tocam à porta de nossos sentimentos, acordam lembranças que há muito jaziam escondidas nas profundezas do Passado. Os acordes tristes da Música trazem-nos dolorosas recordações; e seus acordes suaves nos trazem alegres lembranças. A sonoridade de suas cordas faz-nos chorar à partida de um ente querido ou nos faz sorrir diante da paz que Deus nos concedeu.

A alma da Música nasce do espírito e sua mensagem brota do Coração.

Quando Deus criou o Homem, deu-lhe a Música como uma linguagem diferente de todas as outras. Mesmo em seu primarismo, o homem primitivo curvou-se à glória da música; ela envolveu os corações dos reis e os elevou além de seus tronos.

Nossas almas são como flores tenras à mercê dos ventos do Destino. Elas tremulam à brisa da manhã e curvam as cabeças sob o orvalho cadente do céu.

A canção dos pássaros desperta o Homem de sua insensibilidade, e o convida a participar dos salmos de glória à Sabedoria Eterna, que criou a melodia de suas notas.

Tal música nos faz perguntar a nós mesmos o significado dos mistérios contidos nos velhos livros.

Quando os pássaros cantam, estarão chamando as flores nos campos, ou estão falando às árvores, ou apenas fazem eco ao murmúrio dos riachos? Pois o Homem, mesmo com seus conhecimentos, não consegue saber o que canta o pássaro, nem o que murmura o riacho, nem o que sussurram as ondas quando tocam as praias vagarosa e suavemente.

Mesmo com sua percepção, o homem não pode entender o que diz a chuva quando cai sobre as folhas das árvores, ou quando bate lentamente nos vidros das janelas. Ele não pode saber o que a brisa segreda às flores nos campos.

Mas o coração do homem pode pressentir e entender o significado dessas melodias que tocam seus sentidos. A Sabedoria Eterna sempre lhe fala numa linguagem misteriosa; a Alma e a Natureza conversam entre si, enquanto o Homem permanece mudo e confuso.

Mas o Homem já não chorou com esses sons ? E suas lágrimas não são, porventura, uma eloqüente demonstração?

                   

 Os Filhos
(Do Livro "O Profeta")

Uma mulher que carregava o filho nos braços disse: "Fala-nos dos filhos."

  E ele falou:

 Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
 E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
 Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
 Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
  Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós, porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
   Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
  O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
 Para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.
   Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
  Pois assim como ele ama a flecha que voa,
     Ama também o arco que permanece estável.


O que ele representava para Gibran

Gibran diz: “O Profeta é uma obra na qual eu penso há mil anos, é para mim um segundo nascimento e meu primeiro batismo, é o único pensamento que me torna digno de me por diante do sol. Esse profeta me colocou no mundo antes que eu tivesse concebido, ele me modelou antes que eu tivesse pensado em lhe dar forma e, enfim, ele me ordenou andar mudo no seu encalço, durante sete mil léguas, antes que ele parasse para me ditar suas tendências e suas intenções.”

O profeta cujo nome é Al-Mustapha, que significa “o bem amado e o eleito”, ora, “o bem amado” (que é também uma tradução da palavra Kahlil) é um atributo dado a Abraão e, em seguida, a Jesus, enquanto que “o eleito” é um atributo de Maomé. O profeta de Gibran seria, então, o filho de todos os profetas do Oriente que o precederam?

Gibran influenciou de modo extraordinário a vida de milhões de pessoas, fazendo chegar ao mundo uma mensagem de reconciliação, de tolerância e de paz, de fraternidade, de perdão e auxílio mútuo, que devia ser a passagem da comunidade internacional para a aurora do terceiro milênio.

Em 1991, o Presidente George Bush declarou no seu discurso da inauguração do Memorial Gibran, na Avenida Massachusetts: “Este poeta escrevera um dia: "O amor é uma palavra luminosa, traçada por uma mão iluminada numa página de luz" e, de minha parte eu digo: a mão é sua e nossos corações são a página sobre a qual esta palavra luminosa foi traçada”.

~ Pinturas de Kahlil Gibran ~

 

"O pecado não existe, exceto na medida em que o criamos.
            Somos nós, portanto, que devemos destruí-lo.
            Se escolhermos fazer o mal, ele existirá até que o destruamos.
            O bem não podemos fazê-lo, pois ele é o próprio alento do Universo;
            Mas podemos escolher respirar e viver nele e com ele."

És livre na luz do Sol e livre ante a estrela da noite.
E és livre quando não há sol, nem lua ou estrelas.
Inclusive, és livre quando fechas os olhos
a tudo que existe.
Porém, és escravo de quem amas pelo fato mesmo de amá-lo.
E és escravo de quem te ama, pelo fato mesmo de deixar-te amar.
 

"Se um homem e uma mulher agirem de acordo com a afeição, o amor entre eles não diminuirá nem em cem anos"  

"Não podemos atingir a aurora sem passar pela noite."
"Existe um espaço entre a imaginação do homem e suas realizações que somente sua ânsia pode atravessar."
"A medida do homem não está naquilo que ele alcança, mas naquilo que ele almeja alcançar."
"Muitas doutrinas são como a vidraça da janela. Vemos através dela, mas ela nos separa da verdade." "Busquemos agora de esconder. Se te escondesses no meu coração, não seria difícil encontrar-te. Mas se te escondesses atrás de tua própria casca, então seria inútil procurar por ti."

"A inspiração sempre cantará; a inspiração nunca explicará."

A AMIZADE
"E um adolescente disse: "Fala-nos da Amizade."
E ele respondeu, dizendo:
"Vosso amigo, é a satisfação de vossas necessidades. Ele é o campo que semeias com carinho e ceifais com agradecimento. E vossa mesa e vossa lareira. Pois ides a ele com vossa fome e o procurais em busca da paz.
Quando vosso amigo manifesta seu pensamento, não temeis o "não" de vossa própria opinião, nem prendeis o sim.
E quando ele se cala, vosso coração continua a ouvir o seu coração, Porque na amizade, todos os desejos, ideais, esperanças, nascem e são partilhados sem palavras, numa alegria silenciosa.
Quando vos separeis de vosso amigo, não vos aflijais Pois o que vós ameis nele pode tornar-se mais claro na sua ausência, Como para o alpinista a montanha aparece mais clara, vista da planície.
E que não haja outra finalidade na amizade a não ser o amadurecimento do espírito, pois o amor que procura outra coisa a não ser a revelação de seu próprio mistério não é o amor, mas uma rede armada, e somente o inaproveitável é nela apanhado.
E que o melhor de vós próprio seja para o vosso amigo.
Se ele deve conhecer o fluxo de vossa maré, que conheça também o seu refluxo pois que achais seja vosso amigo para que o procureis somente a fim de matar o tempo?
Procurai-o sempre com horas para viver. Pois o papel do amigo é o de encher vossa necessidade, e não vosso vazio.
E na doçura da amizade, que haja risos e o partilhar dos prazeres.
Pois no orvalho de pequenas coisas, o coração encontra sua manhã e se sente refrescado."

 

 

A tempestade

O pássaro e o homem tem essências diferentes. 
O homem vive à sombra de leis e tradições por ele inventadas; 
o pássaro vive segundo a lei universal que faz girar os mundos. 
Acreditar é uma coisa; viver conforme o que se acredita é outra. 
Muitos falam como o mar, mas vivem como os pântanos. 
Muitos levantam a cabeça acima dos montes; 
mas sua alma jaz nas trevas das cavernas. 
A civilização é uma arvore idosa e carcomida, cujas flores são a cobiça e o engano e cujas frutas 
são a infelicidade e o desassossego. 
Deus criou os corpos para serem os templos das almas. 
Devemos cuidar desses templos para que sejam dignos da divindade que neles mora. 
Procurei a solidão para fugir dos homens, de suas leis, de suas tradições e de seu barulho. 
Os endinheirados pensam que o sol e a lua e as estrelas se levantam dos seus cofres e se deitam nos seus bolsos. 
Os políticos enchem os olhos dos povos com poeira dourada e seus ouvidos com falsas promessas. 
Os sacerdotes aconselham os outros, mas não aconselham a si mesmos, 
e exigem dos outros o que não exigem de si mesmos. 
Vã é a civilização. E tudo o que está nela é vão. 
As descobertas e invenções nada são senão brinquedos com a mente se diverte no seu tédio. 
Cortar as distâncias, nivelar as montanhas, vencer os mares, tudo isso não passa de 
aparências enganadoras, que não alimentam o coração e nem elevam a alma. 
Quanto a esses quebra-cabeças, chamados ciências e artes, nada são senão cadeias douradas com os quais o homem 
se acorrenta, deslumbrados com seu brilho e tilintar. 
São os fios da tela que o homem tece desde o inicio do tempo sem saber que, quando terminar sua obra, terá construído a prisão dentro da qual ficará preso. 
Uma coisa só merece nosso amor e nossa dedicação, uma coisa só... 
É o despertar de algo no fundo dos fundos da alma. 
Quem o sente não o pode expressar em palavras. 
E quem não o sente, não poderá nunca conhecê-lo através de palavras. 
Faço votos para que aprendas a amar as tempestades em vez de fugir delas.

 

E alguém disse:
Fala-nos do Amor:
- Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;
ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis.
E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;
ainda que a espada escondida na sua plumagem
vos possa ferir.
E quando vos falar, acreditai nele; apesar de a sua voz
poder quebrar os vossos sonhos como o vento norte ao sacudir os jardins.
Porque assim como o vosso amor vos engrandece, também deve crucificar-vos. E assim como se eleva à vossa altura e acaricia os ramos mais frágeis que tremem ao sol, também penetrará até às raízes sacudindo o seu apego à terra.
Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo para vos livrar do joio.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.
Então entrega-vos ao seu fogo, para poderdes ser o pão sagrado no festim de Deus.
Tudo isto vos fará o amor, para poderdes conhecer os segredos do vosso coração, e por este conhecimento vos tornardes o coração da Vida.
Mas, se no vosso medo, buscais apenas a paz do amor, o prazer do amor, então mais vale cobrir a nudez e sair do campo do amor, a caminho do mundo sem estações, onde podereis rir, mas nunca todos os vossos risos,
e chorar , mas nunca todas as vossas lágrimas.
O amor só dá de si mesmo,  e só recebe de si mesmo.
O amor não possui nem quer ser possuído.
Porque o amor basta ao amor.
E não penseis que podeis guiar o curso do amor;
porque o amor, se vos escolher, marcará ele o vosso curso.
O amor não tem outro desejo senão consumar-se.
Mas se amarem e tiverem desejos, deverão se estes:
Fundir-se e ser um regato corrente a cantar a sua melodia à noite.
Conhecer a dor da excessiva ternura.

Ser ferido pela própria inteligência do amor, e sangrar de bom grado e alegremente.
Acordar de manhã com o coração cheio e agradecer outro dia de amor.
Descansar ao meio dia e meditar no êxtase do amor.
Voltar a casa ao crepúsculo e adormecer tendo no coração
uma prece pelo bem amado, e na boca, um canto de louvor.

  Desejos do amor

 O amor não tem outro desejo senão o de atingir a sua plenitude. 
Se, contudo, amar é precisar ter desejos, sejam estes os vossos desejos: 

De se diluir no amor e ser como um riacho que canta sua melodia para a noite... 

De conhecer a dor de sentir ternura demasiada... 

De ficar ferido por vossa própria compreensão do amor ... 

De sangrar de boa vontade e com alegria... 

De acordar na aurora com o coração alado 
e agradecer por um novo dia de amor... 
De descansar ao meio-dia e meditar sobre o êxtase do amor... 
De voltar para casa a noite com gratidão ... 
E de adormecer com uma prece no coração para o bem-amado, e nos lábios uma canção de bem aventurança ...

 

Os Filhos
(Do Livro "O Profeta")

 

Uma mulher que carregava o filho nos braços disse: "Fala-nos dos filhos."

E ele falou:

           

Vossos filhos não são vossos filhos.           

São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.           

Vêm através de vós, mas não de vós.           

E embora vivam convosco, não vos pertencem.           

Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos,           

Porque eles têm seus próprios pensamentos.           

Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;           

Pois suas almas moram na mansão do amanhã,           

Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.           

Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós,  porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.           

Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.           

O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força para que suas flechas se projetem, rápidas e para longe.           

Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:           

Pois assim como ele ama a flecha que voa,           

Ama também o arco que permanece estável. 

 

 

    Ainda ontem pensava que não era

 

Ainda ontem pensava que não era mais do que um fragmento trêmulo sem ritmo na esfera da vida.

Hoje sei que sou eu a esfera, e a vida inteira em fragmentos rítmicos move-se em mim.

  Eles dizem-me no seu despertar: " Tu e o mundo em que vives não passais de um grão de areia sobre a margem infinita de um mar infinito."

  E no meu sonho eu respondo-lhes:

  "Eu sou o mar infinito, e todos os mundos não passam de grãos de areia

sobre a minha margem."

  Só uma vez fiquei mudo. Foi quando um homem me perguntou:

"Quem és tu?"

 

 

O matrimônio

     Vocês nasceram juntos, e juntos estarão mesmo quando as asas brancas da morte terminem com seus dias - porque continuarão unidos na memória silenciosa de Deus.
     Mas que haja espaço entre os dois. Que o vento dos céus possa passar entre seus corpos.
     
Amem, mas não transformem o amor em uma atadura.
     Que um encha o copo do outro, mas que jamais bebam do mesmo copo.
     Cantem e dancem, estejam alegres, mas que cada um mantenha sua independência; as cordas de um alaúde estão sozinhas, embora vibrem com a mesma música.
     Entreguem o seu coração, mas não para que seu companheiro o possua - porque só a mão da Vida pode conter corações inteiros.
     Estejam juntos, mas não demasiado juntos - porque os pilares de um templo estão separados.
     O carvalho não cresce à sombra do cipreste, e o cipreste não consegue crescer à sombra do carvalho.

"Ide pois aos vossos campos e pomares,

E lá aprendereis que o prazer da abelha é  de sugar o mel da flor,

Mas que o prazer da flor é de entregar o mel à abelha.

Pois, para a abelha, uma flor é uma fonte de vida.

E para a flor uma abelha é mensageira do amor.

E para ambas, a abelha e a flor,

Dar e receber o prazer

É uma necessidade e um êxtase".

"Eu estou vivo como você. E de pé a seu lado.
            Feche os olhos e olhe ao redor, e me verá."

 

ENTRE AS COLINAS
Entre as colinas, quando vos sentardes à sombra fresca dos álamos brancos, partilhando da paz e da serenidade dos campos e dos prados distantes, então que vosso coração diga em silêncio:
"Deus repousa na Razão".
E quando bramir a tempestade, e o vento poderoso sacudir a floresta,
e o trovão e o relâmpago proclamarem a majestade do céu,
então que vosso coração diga com temor e respeito:
"Deus age na Paixão".
E já que sois um sopro na esfera de Deus e uma folha na floresta de Deus,
também devereisdescansar na razão e agir na paixão.

 

... Então o enamorado colocou a pintura à sua frente, pegou a pena e derramou os sentimentos de seu coração sobre o pergaminho:

Amada, a grande verdade que transcende a Natureza não se comunica de um ser a outro por meio das palavras.

A verdade prefere o silêncio para transmitir seu significado para as almas amantes.

Sei que o silêncio da noite é o mensageiro de maior valor entre nossas duas almas, pois a noite carrega as palavras do Amor e repete os salmos de nossos corações.

Assim como Deus fez nossas almas prisioneiras de nossos corpos, também o Amor me fez um prisioneiro das palavras e da eloqüência.

Elas dizem, ó Amada, que o Amor é uma chama incandescente no coração das pessoas. Notei em nosso primeiro encontro que eu te conhecia há muitas gerações, e percebi no momento da partida que nada será tão forte que possa manter-nos separados.

Meu primeiro olhar para ti não foi, na verdade, o primeiro.

O momento em que nossos corações se encontraram confirmou-me a crença na Eternidade e na imortalidade da Alma.

Naquele instante, a Natureza tirou o véu de sobre aquele que se considerava sufocado, e lhe revelou a sua eterna justiça.

 Amada, diante de mim estende-se uma vida que poderei moldar em grandiosidade e beleza — uma vida que começa com o nosso primeiro encontro e que durará até a Eternidade.

Porque sei que está dentro de ti conceder-me o poder que Deus me destinou, para ser transformado em grandes palavras e grandes feitos, tal como o sol que traz para a vida as flores perfumadas do campo.

E assim, meu amor por ti durará para sempre.

 

“A vida realmente é uma escuridão, exceto quando há um impulso.

E todo impulso é cego, exceto quando há saber.

E todo saber é vão, exceto quando há trabalho.

E todo trabalho é vazio, exceto quando há amor.

E quando trabalhais com amor, nós vos unis a vos próprios e uns aos outros e a Deus.

A vinda do navio

"Como poderei ir-me em paz e sem pena ? 
Não, não será sem um ferimento na alma que deixarei esta cidade. 
Longos foram os dias de amargura que passei dentro de suas muralhas, e longas as noites de solidão; e quem pode despedir-se sem tristeza de sua amargura e de sua solidão ?
Muitos foram os pedaços de minha alma que espalhei nestas ruas, e muitos são os filhos de minha ansiedade que caminham, desnudos, entre estas colinas, e não posso abandoná-los sem me sentir oprimido e entristecido. 
Não é uma simples vestimenta que dispo hoje, mas a própria epiderme que  arranco com minhas mãos. 
Nem é um mero pensamento que deixo atrás de mim, mas um coração enternecido pela fome e pela sede. 
Contudo, não posso demorar-me por mais tempo. 
O mar, que chama a si todas as coisas, está me chamando, e devo embarcar. 
Pois permanecer aqui, enquanto as horas queimam-se na noite, seria congelar-me e cristalizar-me num molde. 
De bom grado levaria comigo tudo o que está aqui. 
Mas como fazê-lo ? A voz não leva consigo a língua e os lábios que lhe deram  asas. 
É isolada que deve procurar o éter. 
É também só e sem ninho que a águia voará rumo ao Sol."

...Então, um literato disse: 
"Fala-nos da conversação".
E ele respondeu: "Vós conversais quando deixais de estar em paz com vossos  pensamentos. E quando não podeis mais viver na solidão de vosso coração, procurais viver nos vossos lábios, e encontrais então uma diversão e um  passatempo nas vibrações emitidas. Em grande parte de vossas conversações, o  pensamento é meio assassinado. Pois, o pensamento é uma ave do espaço que,  numa gaiola de palavras, pode abrir as asas, mas não pode voar.Há entre vós, aqueles que procuram os faladores por medo da solidão. A quietude da solidão revela-lhes seu eu-desnudo, e eles preferem escapar-lhe. 
E há aqueles que falam e, sem o saber ou prever, traem uma verdade que eles  próprios não compreendem. E há aqueles que possuem a verdade dentro de si, mas não a expressam em palavras. No íntimo de tais pessoas, o espírito 
habita num silêncio rítmico.
Quando encontrardes vosso amigo na rua ou no mercado público, deixai que o espírito que esta em vós ponha em movimento vossos lábios e dirija vossa língua. E que a voz escondida na vossa voz fale ao ouvido de seu ouvido;  pois sua alma guardara a verdade de vosso coração, como é lembrado o sabor do vinho. Mesmo depois que a sua cor houver sido esquecida, e a taça que o continha não mais existir."

A LIBERDADE

E um orador disse:
- Fala-nos da Liberdade.
E ele respondeu:
- Às portas da cidade, e nos vossos lares, dei convosco prostrados em adoração da vossa própria liberdade, Como escravos que se humilham diante dum tirano e que o glorificam enquanto ele os destrói.
Sim, no bosque do templo e na sombra da cidadela vi os mais livres que vós usarem a sua liberdade como jugo e como algemas.
Meu coração sangrou dentro de mim;
pois não sabereis ser livres senão quando o próprio desejo de chegar à liberdade se tornar para vós um arnês e quando deixardes de falar da liberdade como de um fim e de uma conclusão.
Sereis livres de fato não quando os vossos dias decorrerem sem cuidados e as vossas noites sem desejos e sem fadigas, mas antes quando todas essas coisas cercarem a vossa vida e vos elevardes acima delas, nus e libertos.
Mas como podereis estar acima de vossos dias e de vossas noites, se não quebrardes as cadeias que na alvorada do vosso uso da razão fizestes pesar sobre a vossa hora do meio dia?
De fato, o que chamais liberdade é a mais forte dessas cadeias,
ainda que os seus anéis vos deslumbrem brilhando ao sol.
E tudo o que quereis afastar para ficardes livres, que é, senão fragmentos de vós mesmos?
Se é uma lei injusta que quereis abolir, tal lei foi escrita pela vossa mão na própria testa.
Não podereis apagá-la queimando os vossos livros de leis nem lavando as frontes dos vossos juízes, ainda que entorneis todo o mar em cima deles.
E se é um tirano quem quereis destronar, vede, antes de tudo, se o trono dele em vósestá bem destruído.
Porque, como pode um déspota dominar os livres e altivos, se não houver tirania
na liberdade desses e vergonha na sua própria altivez?
E se é a inquietação que quereis expulsar, tal inquietação foi escolhida por vós e não tanto imposta de fora.
E se quereis dissipar o medo, a sede desse medo é o vosso coração e não a mão que vos assusta.
De fato, todas as coisas se movem no mais íntimo do vosso ser, num constante semi-abraço, tanto as desejadas quanto as temidas, as repugnantes e as tentadoras, aquelas que buscais como aquelas de que fugis.
Tais coisas movem-se dentro de vós como luzes e sombras, em pares estreitamente unidos.
E quando a sombra se debilita e desaparece, a luz que resta torna-se sombra de uma nova luz.
E assim a vossa liberdade,desembaraçada de estorvos, torna-se ela própria embaraço de uma liberdade maior.

 

AS DÁDIVAS

E ele respondeu:
"Vós pouco dais quando dais de vossas posses.
É quando dais de vós próprios que realmente dais. Pois, o que são vossas posses senão coisas que guardais,
por medo de precisardes delas amanhã?
E amanhã, que trará o amanhã ao cão ultraprudente,que enterra ossos na areia movediça enquanto segue os peregrinos até a cidade santa?
E o que é o medo da necessidade senão a própria necessidade?
Não é vosso medo da sede, quando vosso poço está cheio, a sede insaciável?
Há os que dão pouco do muito que possuem, e o fazem para serem elogiados,
e seu desejo secreto desvaloriza suas dádivas.
E há os que pouco têm e o dão inteiramente.
Esses confiam na vida e na generosidade da vida, e seus cofres nunca se esvaziam.
E há os que dão com alegria, e essa alegria é sua recompensa.
E há os que dão com pena, e essa pena é seu batismo.
E há os que dão sem sentir pena nem buscar alegria
e sem pensar na virtude: dão como, no vale, o mirto espalha
sua fragrância pelo ar.
Pelas mãos de tais pessoas, Deus fala; e através de seus olhos Ele sorri para o mundo.É belo dar quando solicitado; é mais belo, porém, dar sem ser solicitado, por haver apenas compreendido;
E, para os generosos, procurar quem recebe é uma alegria maior ainda que a de dar. E existe alguma coisa que possais guardar?
Tudo que possuís será um dia dado. Dai agora, portanto, para que a época da dádiva seja vossa e não de vossos herdeiros.
E vós que recebeis - e vós todos recebeis - não assumais nenhum encargo de gratidão, para não pordes um jugo sobre vós nem sobre os vossos benfeitores.
Antes, erguei-vos, junto com eles, sobre asas feitas de suas dádivas;
Pois se ficardes em demasia preocupados com vossas dividas, estareis duvidando da generosidade daquele que tem a terra liberal por mãe e Deus por pai. Vós dizeis muitas vezes: "Eu daria, mas somente a quem merece".
As árvores de vossos pomares não falam assim, nem os rebanhos de vossos pastos. Dão para continuar a viver, pois reter é perecer.
Certamente, quem é digno de receber seus dias e suas noites é digno de receber de vós qualquer coisa mais.
E quem mereceu beber do oceano da vida, merece encher sua taça em vosso pequeno córrego. E que mérito maior haverá do que aquele que reside na coragem e na confiança, mais ainda, na caridade de receber?
E quem sois vós para que os homens devam expor seu intimo e desnudar seu orgulho, a fim de que possais ver o mérito deles despido, e o amor-próprio rebaixado? Procurai ver, primeiro, se mereceis ser doadores e instrumentos do dom. Pois, na verdade, é a vida que dá a vida, enquanto vós, que vos julgais doadores, sois simples testemunhas.

 

 

Almitra falou de novo e perguntou:
Diz-nos algo sobre a Morte.
- Como todos gostaríeis de conhecer o segredo da morte, mas não o encontrareis se não o buscardes no coração da vida.
O mocho, cujos olhos sitiados pela noite são cegos para o dia, não pode descobrir o mistério da luz.
Se quereis contemplar o espírito da morte abri de par em par o vosso coração ao corpo da vida.
Porque a vida e a morte são uma só coisa,  como são uma só coisa o rio e o mar.
No fundo das vossas esperanças e desejos reside o vosso tácito conhecimento do além. E como as sementes que sonham debaixo da neve o vosso coração sonha com a primavera.
Confiai nos sonhos, porque neles se oculta a porta da eternidade.
O vosso medo à morte não é mais que o arrepio do pastor diante do rei que vai colocar a mão sobre ele para lhe conferir uma honra.
Não está satisfeito o pastor por receber a insígnia real? No entanto, não é o temor o que mais o aflige? Que é morrer senão erguer-se nu ao vento e fundir-se com o sol? Que é deixar de respirar senão libertar o sopro das incessantes
marés para poder elevar-se e expandir-se na busca de Deus, sem nenhum limite.
Só quando beberdes do rio do silêncio, cantareis realmente. E quando tiverdes chegado ao cimo da montanha, começareis a escalada.
E quando a terra reclamar os vossos membros, então dançareis verdadeiramente.

(in «Poesia Mais-Que-Perfeita»,
tradução-versão de Ana Leal,
Edição «Alma Azul», 2002)

 

Sobre a Comida e a Bebida

Depois um velho Dono de uma estalagem, disse, Fala-nos da Comida e da Bebida.E ele respondeu:Deverieis viver da fragrância da terra, e, tal como uma planta, sustentar-vos com a luz. Mas como tendes que matar para comer, e retirar o recém nascido do leite da sua mãe para aplacar a vossa sede, então fazei disso um acto de veneração, e fazei um altar onde os puros e inocentes da floresta e da planície sejam

sacrificados para aquilo que é mais puro e ainda mais inocente no homem.

Quando matardes um animal, dizei-lhe com todo o coração:

– Pelo mesmo poder com que te abato, também eu sou abatido; e também eu

serei consumido. Porque a lei que te entregou nas minhas mãos me irá entregar a uma mão

mais poderosa.O teu sangue é o meu sangue mais não são do que a seiva que alimenta a

árvore do céu.E quando esmagardes uma maçã com os vossos dentes, dizei com todo o

vosso coração: – As tuas sementes viverão no meu corpo, e os botões do teu amanhã

florescerão no meu coração, e a tua fragrância será a minha respiração, e juntos

nos regozijaremos em todas as estações.

E no outono, quando colherdes as uvas das vossas vinhas, dizei com todo o

coração: – Também eu sou uma vinha e o meu fruto será colhido para o lagar, e, tal

como o vinho novo, serei conservado em jarros eternos.

E no inverno, quando provardes o vinho, que haja no vosso coração uma

canção para cada taça;E que na canção haja a recordação dos dias de outono, da vinha e do lagar.

 

Sobre o Trabalho

epois um operário disse-lhe, Fala-nos do Trabalho.

E ele respondeu, dizendo:

Vós trabalhais para poder manter a paz com a terra e a alma da terra.

Pois ser ocioso é tornar-se estranho às estações e ficar afastado da procissão

da vida que marcha majestosamente e com orgulhosa submissão em direcção ao

infinito.Quando trabalhais sois uma flauta através da qual o sussurro das horas se

transforma em música.Qual de vós quereria ser uma cana muda e silenciosa, quando tudo o resto

canta em uníssono?

Sempre vos disseram que o trabalho é uma maldição e o labor um infortúnio.

Mas eu digo-vos que quando trabalhais estais a preencher um dos sonhos

mais importantes da terra, que vos foi destinado quando esse sonho nasceu, e

quando vos ligais ao trabalho estais verdadeiramente a amar a vida, e amar a

vida através do trabalho é ter intimidade com o segredo mais secreto da vida.

Mas se na dor chamais ao nascimento uma provação e à manutenção da carne

uma maldição gravada na vossa fronte, então digo-vos que nada, excepto o suor

na vossa fronte, apagará aquilo que está escrito.

Também vos foi dito que a vida é escuridão, e no vosso cansaço fazeis-vos

eco de tudo o que os cansados vos disseram.

E eu digo que a vida é mesmo escuridão excepto quando existe necessidade,

E toda a necessidade é cega excepto quando existe sabedoria.

E toda a sabedoria é vã excepto quando existe trabalho,

E todo o trabalho é vazio excepto se houver amor;

E quando trabalhais com amor estais a ligar-vos a vós mesmos, e uns aos

outros, e a Deus.

E o que é trabalhar com amor?

É tecer o pano com fios arrancados do vosso coração, como se os vossos bem

amados fossem usar esse pano.

É construir uma casa com afecto, como se os vossos bem amados fossem

viver nessa casa.

É semear sementes com ternura e fazer a colheita com alegria, como se os

vossos bem amados fossem comer a fruta.

É dar a todas as coisas um sopro do vosso espírito, e saber que todos os

abençoados defuntos estão à vossa volta a observar-vos.

Muitas vezes vos ouvi dizer, como se estivesseis a falar durante o sono,

"Aquele que trabalha o mármore e encontra na pedra a forma da sua própria

alma é mais nobre do que aquele que trabalha a terra.

E aquele que agarra o arco-íris para o colocar numa tela à semelhança do

homem, é mais do que aquele que faz as sandálias para os nossos pés."

Mas eu digo, não no sono, mas no despertar, que o vento não fala mais

documente com o carvalho gigante do que que com a mais ínfima erva;

E é grande aquele que, sozinho, transforma a voz do vento numa canção

tornada doce pelo seu amor.

O trabalho é o amor tornado visível.

E se não sabeis trabalhar com amor mas com desagrado, é melhor deixardes

o trabalho e sentar-vos à porta do templo a pedir esmola àqueles que trabalham

com alegria.

Pois se fizerdes o pão com indiferença, estareis a fazer um pão tão amargo

que só saciará metade da fome.

E se esmagardes as uvas de má vontade, essa má vontade contaminará o

vinho com veneno.

E se cantardes como anjos mas não apreciardes os cânticos, estareis a

ensurdecedor os ouvidos do homem às vozes do dia e às vozes da noite.

 

Sobre a Alegria e a Tristeza

depois uma mulher disse, Fala-nos da Alegria e da Tristeza.

E ele respondeu:

A vossa alegria é a vossa tristeza mascarada.

E o mesmo poço de onde sai o vosso riso esteve muitas vezes cheio de

lágrimas.E como poderá ser de outra maneira? Quanto mais fundo a tristeza entrar no vosso ser, maior é a alegria que podereis conter. A taça que contém o vosso vinho não é a mesma que foi feita no forno do

oleiro? E a lira que vos apanigua o espírito não é da mesma madeira com que foram

esculpidas as facas?

Quando estiverdes alegres, olhai bem dentro do vosso coração e descobrireis

que só aquele que vos deu tristezas vos dá também alegrias.

Quando estiverdes tristes, olhai novamente para dentro do vosso coração e

vereis que na verdade estais a chorar por aquilo que foi a vossa alegria.

Alguns de vós dizeis, "A alegria é maior que a tristeza" e outros dirão "Não, a

tristeza é maior".

Mas eu digo-vos que são inseparáveis.

Juntas vêm, e, quando uma se senta junto de vós lembrai-vos que a outra está

a dormir na vossa cama.

Na verdade, estais suspensos como balanças entre a vossa tristeza e a vossa

alegria.

Só quando vos esvaziais ficais em equilíbrio e imóveis.

Quando o guardador de tesouros vos erguer para pesar o seu ouro e a sua

prata, nem a vossa alegria nem a vossa tristeza se devem alterar.

 

Sobre as Casas

Depois um pedreiro aproximou-se e disse, Fala-nos das Casas.

E ele respondeu, dizendo: Na vossa imaginação construí um abrigo na floresta antes de construirdes uma casa dentro das muralhas da cidade.

Pois assim como tendes vontade de regressar ao crepúsculo, também o

errante que existe em vós, sempre distante e solitário o tem.

A vossa casa é o vosso corpo em ponto grande.

Cresce ao sol e dorme na quietude da noite; e tem sonhos.

A vossa casa não sonha?

E ao sonhar não deixa a cidade e vai para os bosques e colinas?

Pudesse eu juntar as vossas casas na minha mão e espalhá-las pelas florestas

e pelos prados.

Os vales seriam as vossas ruas, e os caminhos verdes as vossas avenidas,

e procurarieis uns pelos outros nas vinhas e trarieis nas vossas roupas a

fragrância da terra.

Mas ainda não chegou o momento dessas coisas acontecerem.

Os vossos antepassados, com receio, fizeram-vos permanecer juntos.

E esse receio perdurará mais algum tempo.

Mais algum tempo e as muralhas da vossa cidade separarão os vossos lares

dos vossos campos.

E dizei-me, povo de Orfalés, que tendes vós nessas casas?

Que guardais vós a sete chaves?

Tendes paz, a calma necessidade que revela o vosso poder?

Tendes recordações nas abóbadas que assentam nos cumes do espírito?

Tendes a beleza que conduz o coração das coisas modeladas em madeira e

pedra à montanha sagrada?

Dizei-me, tendes isto nas vossas casas?

Ou só tendes conforto e o desejo do conforto, essa coisa que entra na vossa

casa como hóspede e logo se transforma em dono e depois se apossa de tudo?

Ah, e se transforma em domador, e com o chicote faz dos vossos maiores

desejos meras marionetas.

Embora as suas mãos sejam de seda, o seu coração é de ferro.

Embala-vos até adormecerdes para ficar junto à vossa cama e escarnecer da

dignidade da carne.

E troça dos sentidos sensatos e torna-os frágeis navios.

Na verdade, o desejo do conforto mata a paixão da alma e depois acompanha,

sorrindo, o seu funeral.

Mas vós, filhos do espaço que repousais na inquietude, não vos deixareis

apanhar nesta ratoeira nem vos deixareis domar.

A vossa casa não será uma ancora mas um mastro.

Não será uma ténue película que tapa uma ferida, mas uma pestana que

guarda o olho.

Não encolhereis as vossas asas para passardes pelas portas, nem curvareis as

vossas cabeças para que não batam no tecto, nem receareis respirar com medo

que as paredes se desmoronem.

Não vivereis em túmulos feitos pelos mortos para os vivos.

E, embora magnificente e resplendorosa, a vossa casa não reterá o vosso

segredo nem abrigará a vossa aspiração.

Pois aquilo que é ilimitado em vós habita a mansão do céu, cuja porta é a

neblina matinal e cujas janelas são os cânticos e os silêncios da noite.

 

Sobre as Roupas

o tecelão disse, Fala-nos das Roupas.

E ele respondeu:

As vossas roupas ocultam muita da vossa beleza, no entanto não ocultam a

fealdade.

E embora procureis no vestuário a liberdade da privacidade, podereis

encontrar nele grilhetas.

Pudesseis vós enfrentar o sol e o vento com mais pele e menos vestuário.

Pois o sopro da vida está na luz do sol e a mão da vida, no vento.

Alguns de vós dizeis, "Foi o vento do norte que teceu as roupas que

vestimos."

E eu digo, ah, sim, foi o vento do norte, mas a vergonha era o seu ofício e o

amolecimento dos tendões o seu tear.

E depois de acabar o seu trabalho foi-se rir para a floresta.

Não esqueçais que a modéstia é um escudo contra o olho do impuro.

E quando o impuro deixar de o ser, que será a modéstia senão um entrave do

espírito?

E não vos esqueçais que a terra adora sentir os vossos pés nus, e os ventos

anseiam por brincar com os vossos cabelos.

 

Sobre as Compras e Vendas

um mercador disse, Fala-nos das Compras e das Vendas.

E ele respondeu, dizendo:

Para vós a terra concede os frutos e vós não os aceitareis a menos que saibais

como encher as mãos.

É na troca das dádivas da terra que encontrareis a abundância e ficareis

saciados. No entanto, a menos que a troca seja feita com amor e justiça, só trará

ganância a alguns e sofreguidão a outros.

E vós, trabalhadores do mar e campos e vinhas, quando no mercado

encontrardes os tecelões, os oleiros e os mercadores de especiarias, invocai então

o espírito superior da terra, para que venha para o meio de vós e abençoe as

balanças e as medidas que avaliam valor contra valor.

E não admitais que os de mãos estéreis participem nas vossas transacções,

pois eles trocariam as suas palavras pelo vosso trabalho.

A tais homens deveis dizer:

"Vinde connosco aos campos, ou ide com os nossos irmãos para o mar e

atirai as vossas redes;

Pois a terra e o mar serão tão generosos para vós como têm sido para nós."

E se aparecerem os dançarinos e cantores e tocadores de flauta, aceitai

também as suas ofertas.

Pois também eles recolhem frutos e incensos, e aquilo que trazem, embora

disfarçado de sonhos, é alimento para a vossa alma.

E antes de sairdes do mercado certificai-vos de que ninguém saiu de mãos

vazias.

Pois o espírito superior da terra não dormirá em paz ao vento enquanto não

forem satisfeitas as necessidades dos mais pequenas de vós.

 

Sobre o Crime e o Castigo

ntão, um dos juizes da cidade avançou e disse, Fala-nos do Crime

e do Castigo.

E ele respondeu, dizendo;

É quando o vosso espírito vagueia pelo vento que vós, solitários e indefesos,

fazeis mal aos outros e também a vós mesmos.

E pelo mal que fazeis devereis bater à porta dos abençoados e esperar.

O vosso eu interior é como o oceano;

Permanece para sempre imaculado.

E, tal como o etéreo, só ergue os seres alados.

O vosso eu interior é como o sol;

Não conhece os esconderijos da toupeira nem procura as tocas da serpente.

Mas o vosso eu interior não habita sozinho dentro de vós.

Muito em vós ainda é humano, e muito não o é.

Mas um pigmeu disforme que caminha sonâmbulo no nevoeiro à procura do

seu próprio despertar.

E é do homem em vós que agora irei falar.

Pois é ele e não o vosso eu interior, nem o pigmeu no nevoeiro que conhece o

crime e o castigo do crime.

Muitas vezes vos ouvi falar daquele que comete um crime como se não fosse

um de vós mas um intruso no vosso mundo.

Mas digo-vos que, tal como os santos e os justos não se podem erguer mais

alto do que o mais alto que existe em cada um de vós, também os maus e os

fracos não podem cair mais baixo do que o mais baixo que existe em vós.

E tal como uma simples folha só amarelece em conjunto com toda a árvore,

Também aquele que comete um crime não o pode fazer sem a anuência

secreta de todos vós.

Como numa procissão, caminhais juntos em direcção ao vosso eu interior.

Vós sois o caminho e os caminhante e quando um de vós cai, cai por aqueles

que vêm atrás, para os avisar da pedra que encontraram no caminho.

E cai por aqueles que vão à sua frente, que, embora mais rápidos e seguros,

não estão livres de tropeçarem na mesma pedra.

E notai que, embora a palavra vos pese no coração:

O assassinado não está isento de responsabilidade pelo seu próprio

assassínio, e o roubado não está isento de culpas por o ter sido.

O justo não está inocente dos feitos do malvado, e o que tem as mãos limpas

não está limpo dos actos do culpado.

Sim, o culpado é por vezes vítima do ofendido.

E ainda mais vezes é o portador do fardo dos inocentes e rectos.

Não podeis separar o justo do injusto e o bom do mau;

Pois eles andam juntos ante a luz do sol, tal como juntos são tecidos os fios

brancos e negros

E quando o fio negro quebra, o tecelão examina todo o tecido e também todo

o tear.

Se algum de vós trouxer a julgamento a mulher infiel, que também pese o

coração do marido e meça a sua alma.

E que aquele que quiser flagelar o ofensor olhe para o espírito do ofendido.

E se algum dá vós punir em nome do que é justo e cortar com o machado a

árvore do mal, deixe então que se vejam as raízes;

E encontrará as raízes do bom e do mau, do que dá frutos e do que não dá,

entrelaçadas no coração silencioso da terra.

E vós, juizes, que quereis ser justos, que condenação ireis dar àquele que,

embora honesto de corpo, é um ladrão de espírito?

Que castigo ireis dar àquele que flagela a carne e também flagela o espírito?

Como procedereis com aquele que nos seus actos é falso e opressor, mas que,

no entanto, é também enganado e oprimido?

E como ireis punir aqueles cujos remorsos são maiores do que os crimes que

cometeram?

Não será o remorso a justiça que é administrada pela própria lei que quereis

servir?

No entanto, não podereis impor o remorso ao inocente, nem arrancá-lo do

coração do culpado.

Subitamente, à noite, ele convocará os homens para que olhem para si

próprios.

E vós, que deveis entender a justiça, como o podereis fazer a menos que

olheis para os factos à plena luz?

Só assim sabereis que o erecto e o caído são um único homem no crepúsculo

entre a noite da sua pequenez e o dia da sua espiritualidade, e que a pedra mãe

do templo não é mais alta que a mais funda pedra dos seus alicerces.

 

Sobre os Leis

Então um homem de leis disse, e as nossas Leis, Mestre?

E ele respondeu:

Deleitais-vos a fazer as leis, no entanto, mais vos deleitais em as desrespeitar.

Como crianças brincando junto ao oceano, a construir castelos de areia com

persistência para logo os destruírem alegremente.

Mas enquanto construís os vossos castelos de areia o oceano traz mais areia

para a costa, e, quando vós os destruís, o oceano ri-se convosco.

Na verdade o oceano ri-se sempre com os inocentes.

Mas que dizer daqueles para quem a vida não é um oceano, e as leis feitas

pelo homem não são castelos de areia, mas para quem a vida é uma rocha, e a lei

um cinzel que serve para a moldarem à sua semelhança? Que dizer do aleijado que detesta dançarinos? Que dizer do boi que gosta do jugo e condena o cisne e o gamo da floresta

por serem seres errantes e vagabundos? Que dizer da velha serpente que não consegue despir-se da sua pele e acusa os outros de estarem nus e não terem pudor? E daquele que aparece cedo na festa do casamento, e que, depois de bem alimentado e já cansado, se vai embora dizendo que todas as comemorações são violação e os participantes violadores de leis? Que poderei dizer desses a não ser que também eles estão expostos à luz, mas de costas viradas para o sol? Só conseguem ver as suas sombras, e as suas sombras são as suas leis. E que é o sol para eles senão um conjunto de sombras?

E o que significa reconhecer as leis senão curvar-se e traçar as suas sombras

na terra? Mas vós, que caminhais enfrentando o sol, que imagens da terra podereis

reter? Vós, que viajais com o vento, que catavento poderá orientar o vosso rumo?

Que lei do homem vos prenderá se quebrais o vosso jugo longe da porta da

prisão?

Que leis receareis se dançardes mas tropeçardes em grilhetas inexistentes?

E quem vos poderá julgar se despedaçardes as vossas roupas sem todavia as

deixardes no caminho de nenhum homem?

Povo de Orfalés, podereis abafar o tambor e alargar as cordas da lira, mas

quem poderá impedir a cotovia de cantar?

 

Sobre a Razão e a Paixão

a sacerdotiza voltou a falar e disse, Fala-nos da Razão e da

Paixão.

E ele respondeu, dizendo:

A vossa alma é muitas vezes um campo de batalha, em que a vossa razão e o

vosso julgamento estão em guerra contra a vossa paixão e o vosso apetite.

Pudesse eu ser o pacificador da vossa alma e transformaria a discórdia e a

rivalidade dos vossos elementos numa união e melodia.

Mas como o poderia fazer, a menos que vós também fosseis pacificadores,

amantes de todos os vossos elementos?

A vossa razão e a vossa paixão são o leme e as velas da vossa alma

navegante.

Se um de vós navegar e as velas se partirem, só podereis andar à deriva ou

ficar imóveis no meio do mar.

Pois a razão, só por si, é uma força confinante; e a paixão, não controlada, é

uma chama que arde provocando a sua própria destruição.

Por isso deixai a vossa alma exalar a vossa razão até ao auge da paixão, de

forma a poder cantar;

E deixai que ela oriente a vossa paixão com razão, de forma a que a vossa

paixão possa viver através da sua ressurreição diária, e, qual fénix, renascer das

próprias cinzas.

Eu comparo o vosso julgamento e o vosso apetite com dois hóspedes

queridos que recebeis na vossa casa.

Com certeza não irieis favorecer um mais que o outro; pois aquele que o fizer

perderá o amor e a confiança dos dois.

Entre as colinas, quando vos sentais à sombra fresca dos brancos álamos,

disfrutando da paz e serenidade dos campos e prados distantes deixai o vosso

coração dizer silenciosamente,

"Deus repousa na razão".

E quando vier a tempestade, e o vento forte assolar a floresta, e a trovoada e

os relâmpagos proclamarem a majestade do céu, deixai que o vosso coração diga

"Deus move-se na paixão".

E uma vez que sois um sopro na esfera de Deus e uma folha na floresta de

Deus, também vós devieis repousar na razão e mover-vos na paixão.

 

Sobre a Dor

uma mulher falou e disse, Fala-nos da Dor.

E ele respondeu:

A vossa dor é o quebrar da concha que envolve a vossa compreensão.

Assim como o caroço da fruta tem de fender-se para que o seu coração fique

exposto ao sol, também vós deveis conhecer a dor.

E se conseguisseis maravilhar-vos com os milagres diários da vossa vida, a

vossa dor não vos pareceria menos intensa do que a vossa alegria;

E aceitarieis as estações do vosso coração, tal como haveis aceite as estações

que passam sobre o vossos campos.

E passarieis com serenidade os invernos das vossas mágoas.

Muita da vossa dor é escolhida por vós.

É a poção amarga com a qual o médico dentro de vós cura o vosso interior

doente.

Por isso confiai no médico e bebei o seu remédio em silêncio e tranquilidade:

Pois a sua mão, embora dura e pesada, é guiada pela mão terna do Invisível,

E o cálice que ele vos dá, embora possa queimar os vossos lábios, foi feito

com o gesso que o Oleiro humedeceu com as Suas lágrimas sagradas.

 

Sobre o Auto-conhecimento

então um homem disse, Fala-nos do Auto-conhecimento.

E ele respondeu, dizendo:

Os vossos corações conhecem em silêncio os segredos dos dias e das noites.

Mas os vossos ouvidos anseiam pelo som do conhecimento do vosso coração.

Vós sabeis por palavras aquilo que sempre soubestes em pensamento.

Tocais com a ponta dos dedos o corpo nu dos vossos sonhos.

E ainda bem que assim é.

A nascente oculta da vossa alma deve erguer-se e correr a murmurar para o

mar, e o tesouro das vossas profundezas infinitas será revelado perante os vossos

olhos.

Mas que não haja medidas para pesar o vosso tesouro desconhecido;

E não procureis as profundezas do vosso conhecimento com limites.

Pois o ser em si não tem limites nem medidas.

Não digais "Encontrei a verdade", mas antes "Encontrei uma verdade."

Não digais "Encontrei o caminho para a alma", mas antes "Encontrei a alma a

seguir o meu caminho''.

Pois a alma percorre todos os caminhos.

A alma não percorre uma linha, nem cresce como um caniço.

A alma desvenda-se a si própria como um lotus de incontáveis pétalas.

 

Sobre o Ensino

Depois um professor disse, Fala-nos do Ensino.

E ele respondeu:

Ninguém vos poderá revelar nada que já não esteja meio adormecido na

aurora do vosso conhecimento.

O professor que caminha na sombra do templo, entre os seus discípulos, não

dá a sua sabedoria mas antes a sua fé e amor.

Se for realmente sábio, não vos convida a entrar na casa da sua sabedoria,

mas antes vos conduz ao limiar do vosso próprio espírito.

O astrônomo pode falar-vos do seu entendimento do espaço, mas não vos

pode dar o seu entendimento.

O músico pode cantar-vos o ritmo do espaço, mas não vos pode dar o ouvido

que faz parar o ritmo, ou a voz que dele faz eco.

E aquele que é versado na ciência dos números, pode falar-vos de pesos e

medidas, mas não pode levar-vos até lá.

Pois a visão de um homem não empresta as suas asas a outro homem.

E, mesmo que cada um de vós esteja sozinho no conhecimento de Deus,

também cada um de vós deve estar sozinho no seu conhecimento de Deus e na

sua compreensão da Terra.

 

Sobre o Tempo

um astrônomo disse, Fala-nos do Tempo.

E ele respondeu:

Se dependesse de vós mediríeis o imensurável e o incomensurável.

Ajustaríeis a vossa conduta e até dirigiríeis o rumo do vosso espírito de

acordo com as horas e e as estações.

Do tempo farieis um ribeiro em cuja margem vos sentarieis a vê-lo fluir.

No entanto, o intemporal em vós está consciente do intemporal da vida, e

sabe que o ontem não é senão a memória do hoje, e o amanhã é o sonho de hoje.

E aquele que dentro de vós canta e contempla, habita ainda dentro dos limites

daquele primeiro momento que espalhou as estrelas no firmamento.

Quem, dentre vós, não sente que a sua capacidade para amar é ilimitada?

E, no entanto, também sente que esse mesmo amor, embora ilimitado, está

confinado no âmago do seu ser, não se movendo de pensamento amoroso para

pensamento amoroso, nem de actos de amor para actos de amor.

E não será o tempo, tal como o amor, indivisível e imóvel?

Mas se em pensamento quiserdes medir o tempo em estações, deixai que

cada estação abrace todas as outras.

E deixai que o hoje abrace o passado com saudade e o futuro com ansiedade.

 

Sobre o Bem e o Mal

um dos anciãos da cidade disse, Fala-nos do Bem e do Mal.

E ele respondeu:

Do bem que existe em vós posso falar, mas não do mal.

Pois que é o mal se não o bem torturado pela sua própria fome e sede?

Na verdade, quando o bem está esfomeado procura alimento até nas cavernas

mais escuras, e quando tem sede bebe até de águas paradas.

Vós sois bons quando sois unos dentro de vós.

No entanto, quando não sois unos dentro de vós, não sois maus.

Pois uma casa dividida não é um tugúrio de ladrões, é só uma casa dividida.

E um navio sem leme pode vaguear sem destino por entre ilhas perigosas, e

no entanto não se afundar.

Vós sois bons quando vos tentais dar.

No entanto, não sois maus quando procurais proveito.

Pois quando procurais proveito não passais de uma raiz que se agarra à terra

e lhe suga o seio.

Com certeza que a fruta não pode dizer à raiz

"Sê como eu, madura e cheia e sempre abundante."

Pois para a fruta, dar é uma necessidade, tal como receber é uma necessidade

para a raiz.

Vós sois bons quando estais completamente despertos.

No entanto, não sois maus quando dormis enquanto a vossa língua murmura

sem sentido.

E até um discurso sem sentido pode fortalecer uma língua fraca.

Vós sois bons quando ergueis firmemente o vosso objectivo com passos

ousados.

No entanto, não sois maus quando caminhais com hesitação.

Até aqueles que caminham com hesitação não andam para trás.

Mas vós que sois fortes e determinados, evitai hesitar ante os indecisos, nem

que seja por bondade.

Vós sois bons de inúmeras formas e não sois maus quando não sois bons.

Sois apenas vagabundos e ociosos.

É pena que o veado não possa ensinar a rapidez à tartaruga.

Mas o vosso desejo pelo vosso eu gigante reside na vossa bondade: e essa

bondade está no todo de vós.

Mas em alguns de vós esse desejo é uma corrente que se dirige para o mar,

levando os segredos das encostas e as canções da floresta.

E noutros é um ribeiro sereno que se perde nos ângulos e nas curvas antes de

chegar à costa.

Mas que aquele que deseja muito não diga àquele que deseja pouco "por que

razão és lento e ocioso?"

Pois aquele que é verdadeiramente bom não pergunta ao nu "onde está a tua

roupa?", nem ao sem abrigo "o que aconteceu à tua casa?”

 

Sobre a Oração

epois uma sacerdotisa disse, Fala-nos da Oração.

E ele respondeu, dizendo:

Vós orais na aflição e na necessidade; também devieis orar na alegria e nos

tempos de abundância.

Pois o que é a oração senão a expansão de vós no ar vivo?

E se vos dá consolo largar vossa escuridão no espaço, também vos deve dar

felicidade lançar o vosso coração à aurora.

E se só conseguirdes chorar quando a vossa alma vos chamar à oração, ela

vos estimulará até que, ainda a chorar, vos comeceis a rir.

Quando rezais encontrais no ar aqueles que rezam à mesma hora e que, se

não fosse na oração, nunca encontraríeis.

Por isso deixai que a vossa visita a esse templo invisível não seja senão para

o êxtase e doce comunhão.

Pois não deveis entrar no templo com outro objetivo que não seja o de pedir

aquilo que não recebereis:

E se lá entrardes com humildade assim permanecereis:

Ou mesmo se lá entrardes para pedir favores para os outros não sereis

ouvidos.

É suficiente que entreis invisíveis no templo.

Não vos posso ensinar a orar por palavras.

Deus não ouve as vossas palavras a não ser quando ele próprio as murmura

Através dos vossos lábios.

E não vos posso ensinar a oração dos mares e das florestas e das montanhas.

Mas vós que nascestes nas montanhas e nas florestas e nos mares,

encontrareis a oração nos vossos corações, e se escutardes na quietude da noite,

ouvi-los-eis dizer em silêncio:

"Nosso Deus, que sois o nosso eu alado, é a vossa vontade em nós que quer.

E o vosso desejo em nós que é desejado.

É a vossa vontade para que tornemos as nossas noites que são vossas, em dias

que são igualmente vossos.

Não vos podemos pedir, pois conheceis os nossos desejos antes de nós

próprios nascermos, vós sois o nosso desejo, e em dar-nos mais de vós, dais-vos

todo."

 

Sobre o Prazer

Então um eremita que visitava a cidade uma vez por ano, avançou e

disse, Fala-nos do Prazer.

E ele respondeu, dizendo:

O prazer é uma canção de liberdade, mas não é a liberdade.

É o desabrochar dos vossos desejos, mas não é os seus frutos.

É um chamamento profundo para as alturas, mas não é profundo nem alto.

É o encarcerado a ganhar asas, mas não é o espaço que o circunda.

Sim, na verdade, o prazer é uma canção de liberdade.

E bem gostaria que a cantásseis com todo o vosso coração;

No entanto, não percais os vossos corações nos cânticos.

Alguma da vossa juventude procura o prazer como se isso fosse tudo, e esses

são julgados e punidos.

Eu não os julgaria nem puniria.

Gostaria que empreendessem a busca.

Pois eles encontrarão prazer, mas não só.

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Sete são as suas irmãs, e a mais insignificante delas é mais bela que o prazer.

Nunca ouviram a história do homem que cavava a terra para encontrar raízes

e descobriu um tesouro?

E alguns de vós, mais velhos, recordam os prazeres com remorsos.

Como erros cometidos quando estavam bêbedos.

Mas o remorso só obscurece o espírito e não o castiga.

Deveriam lembrar-se dos prazeres com gratidão, tal como fariam após uma

colheita no verão.

No entanto, se os conforta sentir o remorso, deixai-os confortarem-se.

E há entre vós aqueles que não são nem suficientemente jovens para

empreender a busca, nem suficientemente velhos para se lembrarem;

E no medo deles de procurarem e se lembrarem, conseguem afastar todos os

prazeres, a menos que negligenciem o espírito.

Mas até na antecipação reside o seu prazer.

E assim também eles encontram um tesouro, embora procurem as raízes com

mãos trêmulas.

Mas dizei-me, quem pode ofender o espírito?

Será que o rouxinol consegue ofender a quietude da noite ou o brilho das

estrelas?

E as vossas chamas ou fumo conseguem carregar o vento?

Pensais que o espírito é um lago imóvel que podeis perturbar?

Muitas vezes ao negardes a vós mesmos o prazer, estais a ocultar o desejo

nos recônditos do vosso ser.

Quem sabe que o que parece ser omitido hoje espera por amanhã?

Até o vosso corpo conhece a sua herança e as suas necessidades e não sairá

desiludido.

E o vosso corpo é a harpa da vossa alma, e é a vós que compete extrair dela

uma doce melodia ou sons confusos.

E no vosso coração, perguntais,

"Como distinguiremos o que é bom no prazer do que não é?"

Ide para os vossos campos e jardins e aprendereis que o prazer da abelha

consiste em retirar o mel da flor.

Mas também a flor tem prazer em dar o seu mel à abelha.

Pois para a abelha a flor é uma fonte de vida.

E para a flor a abelha é mensageira de amor.

E, para ambas, abelha e flor, o dar e o receber de prazer é uma necessidade e

um êxtase.

Povo de Orfalés, olhai para os vossos prazeres como as abelhas e as flores.

 

Sobre a Beleza

um poeta disse, Fala-nos da Beleza.

E ele respondeu:

Onde podereis procurar a beleza, e onde a encontrareis, a menos que ela

própria cruze o vosso caminho e vos guie?

E como falareis dela a não ser que ela seja o artífice dos vossos discursos?

O humilhado e o ofendido dizem,

"A beleza é compassiva e gentil.

Tal como uma mãe tímida da sua própria glória, caminha entre nós."

E o apaixonado diz

"Não, a beleza é coisa de poder e temor.

Tal como a tempestade, ela abala a a terra sob nós e o céu por cima de nós."

Os cansados e exaustos dizem,

"A beleza consiste em suaves murmúrios.

Fala no nosso espírito.

A sua voz ouve-se nos nossos silêncios como uma tênue luz que estremece

com medo da sombra."

Mas o inquieto diz,

"Já a ouvimos gritar nas montanhas, e com o seus gritos ouviu-se o som dos

passos, o bater das asas e o rugir dos leões."

À noite, os guardiães da cidade dizem,

"A beleza virá com a aurora do poente."

E ao meio dia os caminhantes dizem, "Vimo-la debruçada sobre a terra nas janelas do pôr do sol."

No inverno dizem os que recolhem a neve,

"Ela virá com a primavera, saltando pelas colinas."

E no verão os ceifeiros dizem,

"Vimo-la dançar com as folhas do Outono e tinha pedaços de neve no

cabelo." Todas estas coisas dissestes da beleza, no entanto, na verdade, não falastes

dela mas de necessidades insatisfeitas, e a beleza não é uma necessidade mas um

êxtase.

Não é uma boca com sede nem uma mão vazia estendida, mas antes um

coração inflamado e uma alma encantada.

Não é a imagem que veríeis nem o som que ouviríeis, mas antes uma imagem

que vedes embora fecheis os olhos, e uma canção que ouvis, embora tapeis os

ouvidos.

Não é nem a seiva na casca enrugada, nem a asa presa por uma garra, mas

antes um jardim sempre em flor e um grupo de anjos sempre a voar.

Povo de Orfalés, a beleza é a vida quando a vida desvenda o seu rosto

sagrado.

Mas vós sois a vida e sois o véu.

A beleza é a eternidade a olhar-se ao espelho.

Mas vós sois a eternidade e o espelho.

 

Sobre a Religião

um velho sacerdote disse, Fala-nos da Religião.

E ele respondeu:

Terei falado de outra coisa até agora?

Não será a religião senão todos os atos e toda a reflexão, e tudo aquilo que

não é ato nem reflexão, mas encantamento e surpresa sempre emergentes da

alma, mesmo quando as mãos talham a pedra ou trabalham no tear?

Quem poderá separar a sua fé das suas ações, ou as suas crenças das suas

ocupações?

Quem pode estender as suas horas perante ele dizendo,

"Isto é para Deus e isto é para mim, isto é para a minha alma e isto para o

meu corpo?"

Todas as vossas horas são asas que voam no espaço de um eu para o outro eu.

Aquele que usa a sua moral como a sua melhor indumentária faria melhor se

andasse nu.

O vento e o sol não abrirão buracos na sua pele.

E aquele que rege a sua conduta pela ética está a aprisionar numa gaiola o

pássaro que canta.

Os cânticos mais livres não saem através de grades nem grilhetas.

E aquele para quem a devoção é uma janela, para abrir mas também para

fechar, ainda não visitou a morada da sua alma cujas janelas vão de aurora a

aurora.

A vossa vida diária é o vosso templo e a vossa religião.

Cada vez que entrais nela, entrai por inteiro.

Levai a charrua e a forja, o maço e a lira.

As coisas de que precisais por necessidade ou prazer.

Pois em sonhos não podereis erguer-vos acima dos vossos feitos, nem cair

mais baixo do que as vossas falhas.

E levai convosco todos os homens, pois na adoração não podereis voar mais

alto do que as suas esperanças, nem humilhar-vos mais baixo do que o seu

desespero.

E se quereis conhecer Deus, não pretendais resolver enigmas.

Olhai antes à vossa volta e vê-Lo-eis a brincar com os vossos filhos.

E olhai para o espaço;

Vê-Lo-eis a caminhar sobre as nuvens, de braços estendidos para a luz,

descendo sobre a chuva.

Vê-Lo-eis sorrindo no meio das flores, e depois erguer-se e agitar as árvores

com as Suas mãos.

 

 

Os Adeuses

chegou a noite e Almitra, a vidente, disse:

Abençoado seja este dia e este local e o teu espírito que falou.

E ele disse:

Fui eu quem falou?

Não terei sido eu o ouvinte?

Depois desceu os degraus do Templo e todo o povo o seguiu. E chegou junto

do seu navio e ficou no convés. E, voltando a encarar o povo, ergueu a voz e

disse: Povo de Orfalés, o vento leva-me a deixar-vos.

Sou menos apressado que o vento, no entanto devo ir.

Nós, os errantes, sempre em busca de caminhos solitários, não acabamos um

dia onde o tivermos começado; e nenhum nascer do sol nos encontra onde o pôr

do sol nos encontrou.

Viajamos mesmo enquanto a terra dorme.

Somos as sementes da planta perene; e é na maturidade do nosso coração e

na sua plenitude que nos entregamos ao vento.

Breves foram os meus dias entre vós, e ainda mais breves as palavras que

preferi.

Mas se acaso a minha voz desaparecer dos vossos ouvidos e o meu amor se

desvanecer na vossa memória, então eu voltarei.

E com um coração mais rico e a boca mais virada para o espírito eu falarei.

Sim, eu voltarei com a maré, e, embora a morte me possa esconder e o

grande silêncio envolver-me, na mesma procurarei a vossa compreensão.

E não será em vão essa procura.

Se aquilo que eu disse é verdade, essa verdade revelar-se-à claramente e em

palavras mais perceptiveis para o vosso pensamento.

Vou com o vento, povo de Orfalés, mas não vou no vazio, e se este dia não é

o preenchimento dos vossos desejos e do meu amor, então deixai que seja uma

promessa para outro dia.

As necessidades do homem mudam, mas não o seu amor, nem o desejo de

que o seu amor satisfaça as suas necessidades.

Ficai a saber que, do grande silêncio, eu voltarei.

A neblina que se desvanece de madrugada, deixando o orvalho nos campos,

erguer-se-à e juntar-se-à numa nuvem que caíra como chuva.

E eu tenho sido como a neblina.

Na quietude da noite caminhei pelas vossas ruas e o meu espírito entrou em

vossas casas, e o bater dos vossos corações esteve no meu coração, e a vossa

respiração sobre o meu rosto, e conheci-vos a todos.

Sim, conheci as vossas alegrias e tristezas e, no vosso sono, os vossos sonhos

foram os meus sonhos.

E muitas vezes fui entre vós um lago entre as montanhas.

Refleti em vós os cumes e as encostas, e até os vossos pensamentos e

desejos. E ao meu silêncio chegou o riso das vossas crianças e os desejos dos vossos

jovens. E quando chegarem ao fundo de mim, os riachos e ribeiros não deixaram de

cantar. Mas ainda algo mais doce do que o riso e maior do que o desejo veio até

mim. Foi aquilo que há de infinito em vós;

Foi o homem ilimitado feito de células e tendões;

Aquele em cujo canto está toda a vossa música que mais não é do que uma

palpitação silenciosa.

É no homem infinito que sois infinitos.

E foi ao contemplá-lo que vos contemplei e vos amei.

Pois que distancia pode atingir o amor que não fica na vasta esfera?

Que visões, que expectativas e que presunções podem erguer-se acima desse

vôo?

Tal como um carvalho gigante coberto por rebentos de macieira é o homem

infinito em vós.

O seu poder liga-vos à terra, a sua fragrância eleva-vos ao espaço, e na sua

durabilidade vós sois imortais.

Foi-vos dito que sois fracos como o mais fraco elo de uma corrente.

Isto é só meia verdade.

Também sois fortes como o seu elo mais forte.

Avaliar-vos pelo mais pequeno feito é julgar o poder do oceano pela

fragilidade da sua espuma.

Julgar-vos pelas vossas falhas é culpar as estações pela sua inconstância.

Ah, vós sois como um oceano, e embora navios de grande porte aguardem a

maré nas vossas costas, vós, no entanto, tal como o oceano,

Não as podeis apressar.

E, tal como as estações, também vós, no vosso inverno, negais a vossa

primavera, no entanto, a primavera que repousa em vós, sorri meio adormecida e

não fica ofendida.

Não penseis que digo estas coisas para que digais uns para os outros

"Ele louvou-nos. Só viu o bem em nós."

Só vos falo com palavras que vós próprios conheceis em pensamento.

E o que é a palavra conhecimento senão uma sombra da sabedoria indizível?

Os vossos pensamentos e as minhas palavras são ondas de uma memória

selada que mantém registrados os nossos ontens, e os dias antigos quando a terra

não nos conhecia nem se conhecia a si própria, e as noites em que a terra estava

mergulhada em caos.

Homens sábios vieram oferecer-vos a sua sabedoria.

Eu vim receber a vossa sabedoria:

E encontrei algo maior do que essa sabedoria.

É uma chama espiritual que se encontra em vós, enquanto vós, inconscientes

da sua expansão, lamentais o passar dos vossos dias.

É a vida em busca da vida em corpos que receiam o túmulo.

Aqui não existem túmulos.

Estas montanhas e planícies são um berço e uma escada.

Cada vez que passardes pelo campo onde repousam os vossos antepassados,

olhai bem, e ver-vos-eis a vos próprios e às vossas crianças a dançarem de mão

dada. Na verdade, muitas vezes sois felizes sem o saberdes.

Outros há que vieram ter convosco e a quem, por vos terem feito promessas

douradas, destes riquezas e poder e glória.

Eu dei-vos menos que uma promessa, e no entanto, fostes bem mais

generosos comigo. Destes-me a minha mais profunda sede da vida.

Não existe maior dádiva para um homem do que aquela que transforma todas

as suas metas em lábios ardentes e a vida numa fonte.

E é aqui que está a minha honra e a minha recompensa, pois quando eu vier

beber à fonte encontrarei a água viva também sedenta;

E beber-me-à enquanto eu a beberei.

Alguns de vós acharam-me orgulhoso e tímido para receber as vossas

oferendas.

Sou na verdade demasiado orgulhoso para receber dinheiro, mas não dádivas.

E embora tenha comido bagas no meio das colinas, enquanto vós terieis

preferido que me sentasse ao vosso lado, e dormido à porta do templo quando

me teríeis acolhido de bom grado no vosso lar.

No entanto, não foi o vosso carinhoso interesse pelos meus dias e pelas

minhas noites que tornou os alimentos doces na minha boca e encheu o meu

sono de visões?

Por tudo isto vos abençoo: Vós dais tudo sem saber que estais a dar.

Na verdade, a bondade que se olha ao espelho transforma-se em pedra, e uma

boa acção que se chama a si mesma belos nomes torna-se uma praga.

E alguns de vós chamastes-me distante, embriagado com a minha própria

solidão, e dissestes, "Ele fala com as árvores da floresta mas não com os

homens.

Ele senta-se sozinho no topo das colinas e olha cá para baixo para a cidade."

A verdade é que subi às colinas e andei por locais remotos.

Como poderia ter-vos visto senão de uma grande altura ou de uma grande

distância?Como se pode estar perto se não se estiver longe?

E outros de entre vós chamastes-me, não por palavras e dissestes-me:

"Forasteiro, forasteiro, amante da alturas inacessíveis, por que vives nos

cumes onde as águias fazem os ninhos?

Por que procuras o inatingível?

Que tempestades apanhas com a tua rede, e que diáfanos pássaros caças no

céu?Vem e sê um de nós.

Desce e acalma a tua fome com o nosso pão e a tua sede com o nosso vinho."

Na solidão das vossas almas dissestes estas coisas, mas se a vossa solidão

fosse mais profunda saberieis que eu só procuro o segredo da vossa alegria e da

vossa dor, e só andei à caça dos vossos eus mais profundos que caminham pelo

céu.

Mas o caçador também foi a presa;

Pois muitas das minhas flechas saíram do arco só para procurarem o meu

peito.E o alado também foi o rastejante;

Pois quando as minhas asas se abriram ao sol, a sua sombra na terra foi uma

tartaruga.E eu, o crente, também fui o descrente;

Muitas vezes coloquei o dedo sobre a minha própria ferida para ter mais fé

em vós e maior conhecimento de vós.

Se estas forem palavras vagas não procureis clarificá-las.

Vago e nebuloso é o inicio de todas as coisas, mas não o seu fim, e eu

gostaria que me lembrásseis como um princípio.

A vida, e tudo o que vive, é concebido no nevoeiro e não no cristalino.

E quem sabe que o cristalino não é senão o nevoeiro em decadência?

É isto que eu gostaria que recordásseis quando vos lembrardes de mim.

Que aquilo que parece mais fraco e débil em vós é o mais forte e mais

determinado.

Não foi a vossa respiração que erigiu e fortaleceu a estrutura dos vossos

ossos?

E não foi um sonho que nenhum de vós se lembra de ter sonhado, que

construiu a vossa cidade e tudo o que nela existe?

Pudésseis vós ver as marés dessa respiração que deixaríeis de ver tudo o

resto, e se pudésseis ouvir o sussurro do sonho não ouviríeis mais nada.

Mas vós não vedes, nem ouvis e está bem.

O véu que cobre os vossos olhos será erguido pelas mãos que o teceram,

E o gesso que vos enche os ouvidos será quebrado pelas mãos que o

moldaram.

E vós vereis

E ouvireis.

No entanto, não lamentareis ter conhecido a cegueira, nem lamentareis ter

sido surdos.

Pois nesse dia conhecereis o propósito oculto de todas as coisas, e

abençoareis a escuridão tal como abençoarieis a luz.

Depois de dizer estas coisas olhou em volta e viu o capitão do seu navio em

pé, junto ao leme, a olhar para as velas enfunadas. E disse:

Paciente, mais do que paciente é o capitão do meu navio.

O vento sopra e as velas estão inquietas, até o leme suplica direcção, e, no

entanto, o meu capitão aguarda o meu silêncio.

E os meus marinheiros, que escutaram o coro do mar imenso, também eles

me ouviram pacientemente.

Agora já não esperarão mais.

Estou pronto.

O ribeiro chegou ao mar, e mais uma vez a mãe imensa aperta o filho contra

o seio. Adeus, povo de Orfalés.

Este dia chegou ao fim. Fecha-se sobre nós como o nenúfar sobre o seu próprio amanhã.

Aquilo que nos foi dado aqui, conservaremos, e se não for suficiente, então

teremos de nos juntar novamente e estender as mãos ao doador.

Não vos esqueçais que voltarei para junto de vós.

Um pouco de tempo e juntarei espuma e pó para outro corpo.

Um pouco de tempo, um momento de descanso sobre o vento e outra mulher

me trará dentro de si.

Adeus a vós e à juventude que passei convosco.

Foi só ontem que nos encontramos num sonho.

Cantastes para mim na minha solidão, e dos vossos desejos construí uma

torre no céu. Mas agora o nosso sono voou e o nosso sonho chegou ao fim e já não é aurora.

O meio dia está sobre nós e o nosso meio despertar tornou-se pleno dia e

devemos separar-nos.

Se no crepúsculo da memória nos encontrarmos mais uma vez, voltaremos a

falar e cantareis para mim uma canção mais profunda.

E se as nossas mãos se voltarem a tocar noutro sonho, construiremos outra

torre no céu.

Assim falando, fez sinal aos marinheiros e logo eles levantaram âncora e

desataram o navio e dirigiram-se para oriente. E da multidão ouviu-se um

clamor, como saído de um só coração, e ergueu-se no crepúsculo e foi

transportado sobre o mar. Só Almitra ficou calada, a olhar para o navio até que

ele desapareceu entre a neblina.

E quando toda a gente dispersou, ela continuou imóvel, junto ao cais,

lembrando, no seu coração, as palavras dele: "Um pequeno momento, um momento de descanso sobre o vento e outra mulher me trará dentro de si."

 

Gibran Khalil Gibran

 

Dados obtidos na internet

 

 

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