CLARICE LISPECTOR -
Contos e Crônicas
OS LAÇOS
DE FAMÍLIA
"A
mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à
Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando
convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus
olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo
brilho de zombarias e frieza - assistia.
- Não
esqueci de nada? Perguntava pela terceira vez a mãe.
- Não, não,
não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com
paciência.
Ainda estava
sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido,
na hora da despedida. Durante as duas semanas de visitada velha,
os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes
soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia
querer rir."
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LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
MISTÉRIO
EM SÃO CRISTÓVÃO
"Numa
noite de maio - os jacintos rígidos perto da vidraça - a sala de
jantar de uma casa estava iluminada e tranqüila.
Ao redor da
mesa, por um instante imobilizados, achavam-se o pai, a mãe, a
avó, três crianças e uma mocinha magra de dezenove anos. O
sereno perfumado de São Cristóvão não era perigoso, mas o modo
como as pessoas se agrupavam no interior da casa tornava
arriscado o que não fosse o seio de uma família numa noite
fresca de maio. Nada havia de especial na reunião: acabara-se de
jantar e conversava-se ao redor da mesa, os mosquitos em torno
da luz. O que tornava particularmente abastada a cena, e tão
desabrochado o rosto de cada pessoa, é que depois de muitos anos
quase se apalpava afinal o progresso nessa família: pois numa
noite de maio, após o jantar, eis que as crianças têm ido
diariamente à escola, o pai mantém os negócios, a mãe trabalhou
durante anos nos partos e na casa, a mocinha está se
equilibrando na delicadeza de sua idade, e a avó atingiu um
estado."
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LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
O CRIME
DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA
"Quando
o homem atingiu a colina mais alto, os sinos tocavam na cidade
embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto
dele estava a única árvore da chapada. O homem estava de pé com
um saco pesado na mão.
Olhou para
baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar e miúdos
na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças
espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal
alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia
imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta
com as escarpas secas. Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó
agasalhando-se melhor. Afinal pousou com cuidado o saco no chão.
Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque, com os
óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas
lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos
piscaram claros, quase jovens, infamiliares."
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LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998.
UM
PINTOR
"A
surpresa de ver que o pintor começa por não recear inclusive a
simetria. É preciso experiência ou coragem para revalorizá-la,
quando facilmente se pode imitar o "falso assimétrica", uma das
originalidades mais comuns. A simetria é concentrada,
concentrada. Mas não dogmática. É também hesitante, como a dos
que passaram pela esperança de que duas assimetrias
encontrar-se-ão na simetria. Esta como solução terceira: a
síntese. Daí talvez o ar despojado, a delicadeza de coisa vivida
e depois revivida, e não um certo arrojo dos que não sabem. Não
é propriamente tranqüilidade o que está ali. Há uma dura luta de
coisa que apesar de corrida se mantém de pé, e nas cores mais
densas há uma lividez daquilo que mesmo torto está de pé. Suas
cruzes são entortadas por séculos de mortificação. São altares?
Pelo menos o silêncio de altar. O silêncio de portais. O
esverdeamento toma um tom do que estivesse entre vida e morte,
uma intensidade de crepúsculo."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
OS
ESPELHOS
"O
que é um espelho? Não existe a palavra espelho - só espelhos,
pois um único é uma infinidade de espelhos. - Em algum lugar do
mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são preciso muitos
para se ter a mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um
reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se
transmite em mensagem intensa e insistente ad infinitum,
liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la
escorrendo de reflexos, reflexos dessa dura água. - O que é um
espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta
para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim
o campo de silêncios e silêncios. - Esse vazio cristalizado que
tem dentro de si espaço para se ir para sempre sem parar: pois
espelho é o espaço mais profundo que existe."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
POR NÃO
ESTAREM DISTRAÍDOS
"Havia
a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando
se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se
estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que
estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar
matéria e peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede
deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam,
e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de
escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca
ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam
estarem juntos!"
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
NOITE DE
FEVEREIRO
"Juro,
acredita em mim - a sala de visitas estava escura - mas a música
chamou para o centro da sala - a sala se escureceu toda dentro
da escuridão - eu estava nas trevas - senti que por mais escura
a sala era clara - agasalhei-me no medo - como já me agasalhei
de ti em ti mesmo - que foi que me encontrei? - nada senão que a
sala escura enchia-se da claridade que se adivinha no mais
escuro - e que eu tremia no centro dessa difícil luz - acredita
em mim embora eu não possa explicar - houve alguma coisa
perfeita e graciosa - como se eu nunca tivesse visto uma flor -
ou como se eu fosse a flor -
"
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
MAL-ESTAR
DE UM ANJO
"Ao
sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora apenas
chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego era na rua a
tempestade e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera
pelo elevador? Dilúvio carioca, sem refúgio possível, Copacabana
com água entrando pelas lojas rasas e fechadas, águas grossas de
lama até o meio da perna, o pé tateando para encontrar calçadas
invisíveis. Até movimento de maré já tinha, onde se juntasse
bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua:
já havia fluxo e refluxo de maré. E o pior era o temor ancestral
gravado na carne: estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o
próprio mundo, e eu que só caibo numa casa nunca mais terei casa
na vida, esse vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos
nunca secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca,
pois já selecionaram o melhor casal da minha espécie."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
BRASÍLIA
"Brasília
é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão
artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando
o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente
para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à
liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido
criados em primeiro lugar e depois o mundo deformado às nossas
necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília. Se eu
dissesse que Brasília é bonita veriam imediatamente que gostei
da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia
vêem nisso uma acusação. Mas a minha insônia não é bonita nem
feia, minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. É o ponto
e vírgula. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza,
seria fácil: eles ergueram o espanto inexplicado. A criação não
é uma compreensão, é um novo mistério."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
A
EXPLICAÇÃO INÚTIL
"Não
é fácil lembrar-me de como e por que escrevi um conto ou um
romance. Depois que se despegam de mim, também eu os estranho.
Não se trata de "transe", mas a concentração no escrever parece
tirar a consciência do que não tenha sido o escrever
propriamente dito. Alguma coisa, porém, posso tentar
reconstituir, se é que importa, e se responde ao que me foi
perguntado.
O que me
lembro do conto "Feliz Aniversário", por exemplo, é da impressão
de uma festa que não foi diferente de outras de aniversário; mas
aquele dia era um dia pesado de verão, e acho até que nem pus a
idéia de verão no conto. Tive uma "impressão", de onde
resultaram algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e
necessidade de aprofundar o que se sente."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
HISTÓRIA
INTERROMPIDA
"Ele
era triste e alto. Jamais falava comigo que não desse a entender
que seu maior defeito consistia na sua tendência para a
destruição. E por isso, dizia, alisando os cabelos negros como
quem alisa o pêlo macio e quente de um gatinho, por isso é que
sua vida se resumia num monte de cacos: uns brilhantes, outros
baços, uns alegres, outros como um "pedaço de hora perdida", sem
significação, uns vermelhos e completos, outros brancos, mas já
espedaçados.
Eu, na verdade, não sabia o que retrucar e lamentava não ter um
gesto de reserva, como o seu de alisar o cabelo, para sair da
confusão. No entanto, para quem leu um pouco e pensou bastante
nas noites de insônia, é relativamente fácil dizer qualquer
coisa que pareça profunda. Eu lhe respondia que mesmo destruindo
ele construía: pelos menos esse monte de cacos para onde olhar e
de que falar. Perfeitamente absurdo. Ele, sem dúvida, também o
achava, porque não respondia. Ficava muito triste, a olhar para
o chão e a alisar seu gatinho morno."
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LISPECTOR, Clarice. A bela e a fera. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
LEMBRANÇA
DE UM VERÃO DIFÍCIL
"A
insônia levitava a cidade mal iluminada. Não havia porta fechada
e toda janela tinha sua quente luz. Em torno dos lampiões as
larvas voavam. À margem do rio as mesas, as poucas conversas
cansadas, crianças adormecidas no colo. A desperta leveza da
noite não nos deixava ir dormir; como andarilhos, devagar
andávamos. Fazíamos parte do velório amarelado dos lampiões e
das larvas aladas, e de redondas alturas suspensas, e da vigília
de toda uma abóbada celeste. Fazíamos parte da grande espera
que, por si mesma e sem si mesma, é que o universo inteiro faz.
Desde as outras enormes larvas que haviam outrora bebido
lentamente água daquele rio."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
UM AMOR
CONQUISTADO
"Encontrei
Ivan Lessa na fila de lotação do bairro e estávamos conversando
quando Ivan se espantou e me disse: olhe que coisa esquisita.
Olhei para trás e vi, da esquina para a gente, um homem vindo
com o seu tranqüilo cachorro puxado pela coleira. Só que não era
cachorro. A atitude toda era de cachorro, e a do homem era a de
um homem com seu cão. Este é que não era. Tinha focinho
acompridado de quem pode beber em copo fundo, rabo longo e duro
- poderia, é verdade, ser apenas uma variação individual da
raça. Ivan levantou a hipótese de quati, mas achei o bicho muito
cachorro demais para ser quati, ou seria o quati mais resignado
e enganado que jamais vi. Enquanto isso, o homem calmamente
vindo. Calmamente, não; havia uma tensão nele, era uma calma de
quem aceitou luta: seu ar era de um natural desafiador. Não se
tratava de um pitoresco; era por coragem que andava em público
com o seu bicho."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
O CHÁ
"As
imaginações que assustam. Pensei numa festa - sem bebida, sem
comida, festa só de olhar. Até as cadeiras alugadas e trazidas
para um terceiro andar vazio da Rua da Alfândega, este seria um
bom lugar. Para essa festa eu convidaria todos os amigos e
amigas que tive e não tenho mais. Só eles, sem nem sequer os
entre-amigos mútuos. Pessoas que vivi, pessoas que me viveram.
Mas como é que se volta da Rua da Alfândega ao anoitecer? As
calçadas estariam secas e duras, eu sei.
Preferi
outra imaginação. Começou misturando carinho, gratidão, raiva;
só depois é que se desdobraram duas asas de morcego, como o que
vem de longe e vai chegando muito perto, mas também brilhavam as
asas. Seria um chá - domingo, Rua do Lavradio - que eu oferecia
a todas as empregadas que já tive na vida."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
DESENHANDO UM MENINO
"Como
conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que
ele se deteriore, e só então ele estará ao meu alcance. Lá está
ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem
ele próprio. Quanto a mim, olho, e é inútil: não consigo
entender coisa apenas atual. Totalmente atual. O que conheço
dele é a sua situação: o menino é aquele em quem acabaram de
nascer os primeiros dentes, e é o mesmo que será médico ou
carpinteiro. Enquanto isso - lá está ele sentado no chão, de um
real que tenho de chamar de vegetativo para poder entender.
Tinha mil desses meninos sentados no chão, teriam eles a chance
de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória
da atualidade absoluta a que um dia já pertencemos? A união
faria a força. Lá está ele sentado, iniciando tudo de novo, mas,
para a própria proteção futura dele, sem nenhuma chance
verdadeira de realmente iniciar."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
UMA
ITALIANA NA SUÍÇA
"Rosa
perdeu os pais quando era pequena. Os irmãos se espalharam pelo
mundo e ela entrou para o orfanato de um convento. Lá levava uma
vida sóbria e dura com as outras crianças. Durante o inverno o
grande casarão permanecia frio, e os trabalhos não se
interrompiam. Ela lavava roupa, varria os quartos, costurava.
Enquanto isso as estações se sucediam. Com a cabeça raspada e o
longo vestido de fazenda grosseira, às vezes, com a vassoura na
mão, espiava pelos vidros da janela. Outono era a estação de que
mais gostava porque não era preciso sair para vê-lo: atrás dos
vidros as folhas caíam amareladas no pátio, e isso era o outono.
Nesse
convento suíço, quando um homem pisava no patamar, lavava-se o
chão e queimava-se álcool em cima. Depois vinha de novo o
inverno, e as mãos se avermelhavam, abriam-se feridas, a cama
gelada impossibilitava o sono, e criava sonhos acordados. No
dormitório escuro, com os olhos abertos sobre o lençol, ela
espiava os pequenos pensamentos piscarem."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
NOTAS
SOBRE DANÇA HINDU
"O
dançarino faz gestos hieráticos, quadrados, e pára. É que parar
por vários instantes também faz parte. É a dança do
estatelamento: os movimentos param as coisas. O dançarino passa
de uma imobilidade a outra, dando-me tempo para a estupefação. E
muitas vezes sua imobilidade súbita é a ressonância do salto
anterior: o ar parado ainda contém todo o tremor do gesto. Ele
agora está inteiramente parado. Existir se torna sagrado como se
nós fossemos apenas o executante da vida.
Esta é a
dança do homem, que tem a ciência dos números e das alturas, e a
quem uma veemência maior é permitida.
Quanto à
mulher hindu, ela não se espanta nem me espanta. Seus movimentos
são tão continuados e envolventes como a imobilidade corredia de
um rio."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
PERFIL DE
SERES ELEITOS
"Era
um ser que elegia. Entre as mil coisas que poderia ter sido,
fora se escolhendo. Num trabalho para o qual usava lentes,
enxergando o que podia e apalpando com as mãos úmidas o que não
via, o ser fora escolhendo e por isso indiretamente se escolhia.
Aos poucos se juntara para ser. Separava, separava. Em relativa
liberdade, se se descontasse o furtivo determinismo que agira
discreto sem se dar um nome. Descontado esse furtivo
determinismo, o ser se escolhia livre. Guiava-o a vontade de
descobrir o próprio determinismo, e segui-lo com esforço, pois a
linha verdadeira é muito apagada, as outras são mais visíveis.
Separava, separava. Separava o chamado joio do trigo, e o
melhor, o melhor se comia. Às vezes comia o pior. A escolha
difícil era comer o pior. Separava perigos do grande perigo, e
era com o grande perigo que o ser, embora com medo, ficava. Só
para pensar com susto o peso das coisas. Afastava de si as
verdades menores que terminou não chegando a conhecer. Queria as
verdades difíceis de suportar. Por ignorar as verdades menores,
o ser parecia rodeado de mistério; por ser ignorante, era um ser
misterioso."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
A MUDEZ
CANTADA, A MUDEZ DANÇADA
"Quase
não era canto, no sentido em que este é aproveitamento musical
da voz. Quase não era voz, no sentido em que esta tende a dizer
palavras. É antes da voz ainda, é fôlego. Uma palavra ou outra
às vezes escapava, revelando de que era feita aquela mudez
cantada: de história de viver, amar, e morrer. Essas três
palavras não ditas eram interrompidas por lamentos e modulações.
Modulações de fôlego, primeiro estágio de voz que capta o
sofrimento no seu primeiro estágio de gemido, e capta a alegria
no seu primeiro estágio de gemido. E de grito. E mais outro
grito, este de alegria por se ter gritado. Em torno a
assistência aconchegava-se escura e suja. Depois de uma das
modulações que de tão prolongada morre em suspiro, o grupo
esgotado como cantor murmura um "olé" em amém, última brasa.
Mas há
também o canto impaciente que a voz apenas não exprime: então um
sapateado nervoso e firme o entrecorta, o "olé" que interrompe a
cada instante não é mais amém, é incitamento, é touro negro."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
A
VINGANÇA E A RECONCILIAÇÃO PENOSA
"Eu
ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios,
nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera
que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção
sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo,
e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava
percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um
pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de
propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me
que me sentia satisfeita com o que via.
Tive então
um sentimento que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me
senti mãe de Deus, que era a terra, o mundo. Por puro carinho,
mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de
superioridade ou igualdade eu era por carinho mãe das coisas."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
UM HOMEM
ESPANHOL
"Não
era Pepe apenas, não era guia apenas. No calor do verão, o rosto
intumescido pela bebida que mal se evaporava era substituída por
outra, o homem parou no meio de uma ruela branca e sombria de
Córdoba, olhou-nos e disse bem lento para que a frase penetrasse
a nossa lentidão:
- Ustedes no
tienen um guía. Ustedes tienem - Pepe El Guía!
Paramos,
atentos ao que deveria ser uma coincidência singular. Qual? Pepe
El Guía imobilizara-se com os olhos úmidos de emoção, vinho,
calor e desespero. Devia ser extraordinário e pesado ser Pepe El
Guía. Ainda parado, o rosto escorrendo suor, com a roupa escura
da elegância a que era obrigado, ele esperava que através de seu
próprio silêncio intenso compreendêssemos. Olhávamos com os
olhos franzidos pelo sol. Até que a fraca brisa passou por nós."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
DISCURSO
DE INAUGURAÇÃO
"...o
futuro que estamos aqui inaugurando é uma linha metálica. É
alguma coisa que de propósito é destituída. De tudo o que
vivemos só ficará esta linha. Ela é o resultado do cálculo
matemático da insegurança: quanto mais depurada, menos risco ela
correrá, a linha metálica não corre o risco da linha de carne.
Só a linha metálica não dará aos abutres do que comer. A nossa
linha metálica não tem possibilidade de putrefação. É uma linha
que se garante eterna. Nós, o que aqui estamos neste momento, a
iniciamos com o propósito de que seja eterna. Queremos uma linha
metálica porque do princípio ao fim ela é do mesmo metal. Não
sabemos com muita certeza se essa linha será forte bastante para
salvar, mas é forte para durar. Para durar por si só, como
criação nossa. Ainda não se apurou se a linha vergará ao peso da
primeira alma que nela se pendure, como sobre os abismos do
inferno."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
ESCREVENDO
"Não
me lembro mais onde foi o começo, foi por assim dizer escrito
todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou devia estar, como no
espaço-temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas do
piano. Escrevi procurando com muita atenção o que se estava
organizando em mim e que só depois da quinta paciente cópia é
que passei a perceber. Meu receio era de que, por impaciência
com a lentidão que tenho em me compreender, eu estivesse
apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão de que,
mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que
ela precisava dizer. Cada vez mais acho tudo uma questão de
paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
MINEIRINHO
"É,
suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que
devo procurar por que está doendo a morte de um facínora. E por
que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram
Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o
que pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão
de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de
precisar trair sensações contraditórias por não saber como
harmonizá-las. Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível
também, a violenta compaixão da revolta. Sentir-se dividido na
própria perplexidade diante de não poder esquecer que Mineirinho
era preguiçoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos
vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a
justiça que se vinga. Com alguma raiva de mim, que estava
mexendo na sua alma, respondeu fria: "O que eu sinto não serve
para dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas
tenho certeza de que ele se salvou e já entrou no céu."
Respondi-lhe que "mais do que muita gente que não matou"."
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
"Escrever é procurar
entender,
é procurar reproduzir o irreproduzível,
é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e
sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada."
"Eu escrevo
simples. Eu não enfeito."
(Clarice Lispector)
" Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu
quis ser mãe. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me
orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos
e angústias. Sei que um dia abrirão as asas para o vôo
necessário, e eu ficarei sozinha. Quando eu ficar sozinha,
estarei seguindo o destino de todas as mulheres."
(Clarice Lispector)
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