Clarice Lispector
Perto do Coração Selvagem
CLARICE
MORREU SEM SABER QUE MORRIA Jornal da Tarde, 10 de dezembro
de 1977 Não
ouve ainda quem contrariasse um antigo desejo da escritora: não ser fotografada
depois de morta. De fotografias Clarice Lispector nunca gostou muito, nem enquanto
viveu, até ontem às 10h 30min da manhã. Seu corpo, levado
do Hospital do INPS da Lagoa, no Rio, onde permanecera internada desde 16 de novembro
no quarto de número 600, foi removido para o Cemitério Comunal Israelita,
no bairro do Caju, e será sepultado às 11h. O velório de
Clarice, que nasceu na Ucrânia e viveu no Brasil desde os dois meses de
idade, só será realizado horas antes do enterro. A
escritora de 56 anos, não sabia da gravidade de sua doença, câncer
generalizado, e muito menos que os médicos haviam perdido qualquer esperança
de salvá-la após uma delicadíssima e frustrada intervenção
cirúrgica no começo de novembro. Sua amiga e enfermeira particular
Ciléia Borelli disse que ela passou em claro sua última noite, bastante
agitada mas sempre lúcida: "Clarice conversava muito, mantinha-se
sempre atenta, dando mostras de que era uma pessoa dotada de um espírito
de observação privilegiado. Além disso, ela nada sabia sobre
sua enfermidade e demonstrava, em todas as conversas, seu otimismo e sua vontade
de voltar logo para casa". A
morte encerrou uma convivência de anos, pois Ciléia se tornara a
dama de companhia da escritora há vários anos, quando ela teve que
ser internada com várias queimaduras pelo corpo, sofridas durante um incêndio
que destruiu a casa onde morava. No hospital, poucos amigos, as irmãs Elisa
(também escritora) e Tânia, o filho Paulo, alguns parentes. E os
escritores Nélida Piñon e Autran Doutrado, que seguiram para o hospital
após a notícia da morte. Nélida explicava aos repórteres
sobre a proibição das fotografias; Doutrado permaneceu vários
minutos em silêncio junto ao corpo de Clarice coberto por um lençol,
na capela. Outra amiga, a bailarina Gilda Murra, lembrava a alegria que sentiu
ao ler uma crônica de Clarice sobre sua dança. Os
parentes, que esperaram durante horas a remoção do corpo para o
Cemitério Israelita na improvisada e suja capela do hospital, não
quiseram fazer declarações à imprensa. Elisa e Tânia,
as irmãs, não choraram, mas as expressões de sofrimento e
cansaço mostravam que elas já haviam feito isso antes. Pouco antes
da chegada da ambulância da Santa Casa que levaria o corpo de Clarice ao
cemitério, Vilma, a esposa do ministro Nascimento e Silva, da Previdência
Social, compareceu à capela. Com um vestido escuro, fumando muito, ela
falava da honra de ter recebido uma das últimas dedicatórias de
Clarice, em seu recente livro A hora da estrela: "O livro me foi entregue
por Nélida Piñon", explicava Vilma, "e a dedicatória
foi feita com letra tremida. Fiquei sabendo que ela o autografou no próprio
leito onde estava. Nós éramos grandes amigas dela e sentimos muito
a sua morte. Também será uma grande perda para a literatura brasileira". A
escritora, que submetera-se à operação na Clínica
São Sebastião, acabou sendo removida para o Hospital do INPS graças
ao interesse do ministro Nascimento e Silva. A ambulância esperada chegou
às 15h, trazendo uma urna simples de madeira, onde foi colocado o corpo.
Antes da saída, novamente o mesmo pedido de que fosse respeitado o desejo
de Clarice e ninguém fizesse fotos. Ninguém fez. A
viagem para o Cemitério Israelita durou 20 minutos. Apenas a ambulância
entrou, ficando parentes e amigos do lado de fora. Os grandes e pesados portões
de ferro foram imediatamente fechados, enquanto informava-se que o corpo estava
sendo colocado em câmara mortuária onde permanecerá até
amanhã, quando começarem as cerimônias judaicas. "Clarice
não era devotada à religião, mas sua família resolveu
dar-lhe um enterro conforme os rituais judaicos. Ela era um ser humano excepcional,
uma pessoa profundamente delicada e discreta, que jamais dissociou sua obra da
vida. Ela como ninguém conseguiu dominar a língua brasileira e,
embora ucraniana de nascimento, acabou sendo mais brasileira do que muitos que
aqui nasceram", disse Nélida, no lado de fora do cemitério.
Disse também que Clarice não gostava muito de falar sobre sua obra
nem dos projetos literários para o futuro, "embora fosse uma escritora
com bastante vitalidade e vontade de trabalhar em seus livros". Clarice
Lispector era desquitada do diplomata Maury Gurgel Valente, atual embaixador brasileiro
na Alalo, no Uruguai. O casal teve dois filhos: Paulo que reside no Rio e assistiu
à morte da mãe, e Pedro, o mais velho, que vive com o pai. Acreditava
que livro nascesse como árvore. Descobriu que não, e quis ser autora:
"Quando eu aprendi a ler, comecei a devorar milhares de livros. Achava que
livro nascia assim como nasce uma árvore. Quando descobri que existia alguém
que o escrevia, um autor, eu disse que também queria ser um". E
em seguida a menina Clarice Lispector passou a escrever contos que enviava regularmente
para um jornal de Recife. Nunca foram publicados, mas só muito mais tarde
ela descobriu o por quê: "Eles descreviam sensações,
ao contrário dos contos publicados, que narravam fatos". Este
foi o começo de sua carreira literária. Mas Clarice já se
preparava para ela antes mesmo de saber ler, fabulando com uma amiga uma história
que nunca terminava. Enquanto a escritora garantia que seus personagens estavam
mortos, a amiga completava: "Eles não estavam tão mortos assim".
E a história continuava. Isto foi contado pela própria autora num
depoimento gravado em 1976, para o Museu da Imagem e do Som. Clarice contou fatos
sobre toda sua vida, lembrou-se até de histórias anteriores a seu
nascimento. Ela tornou-se
brasileira quase que por acaso. Ao saírem da Ucrânia, seus pais camponeses
pensavam em transferir-se para a Alemanha em busca de uma vida melhor. Sua mãe
grávida foi obrigada a descer do trem em Tchetchelnik, para que pudesse
nascer. Com dois meses de idade já estava em Recife, onde aprendeu a falar,
ler, escrever e gostar muito de caranguejo, coisa que jamais teria conhecido nos
trigais de sua terra natal. Recordava-se de que foi uma criança muito alegre
durante o curso escolar. Com a passagem para a adolescência mudou um pouco.
Foi matriculada num ginásio pernambucano, mas mal teve tempo para conhecer
as colegas. Sua família transferiu-se para o Rio. Entre
os 13 e 15 anos, Clarice freqüentou assiduamente a biblioteca de aluguel
da rua Rodrigo Silva. E lia todos os livros de títulos bonitos. Assim,
acabou conhecendo O lobo da estepe, de Herman Hesse, "que me marcou
profundamente. Depois desse livro adquiri consciência daquilo que desejava
ser, como queria ser e o que desejava fazer". Terminando o ginásio,
cursou Ciências Jurídicas. Mas só terminou o curso para desafiar
uma amiga que a acusava de nunca acabar o que começava. Nessa época
leu Dostoievski, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Katherine Mansfield,
com quem se identificou muito - o que seria notado mais tarde por críticos
literários do Brasil e de fora. Ao mesmo tempo, vivia sua segunda - a primeira
verdadeiramente importante - experiência literária. Aos 9 anos, ainda
em Recife, e entusiasmada por um espetáculo de teatro, ela escreveu uma
peça "em três atos e três folhas de papel. Nenhum autor
foi mais sucinto do que eu", lembrava rindo. Mas agora, no início
da década de 40, era diferente. Clarice começara a trabalhar no
jornal A Noite, estava no terceiro ano da faculdade, escrevia uma tese para o
curso sobre o direito de punir. Preocupava-se com as idéias que surgiam
de manhã em sua cabeça mas que à noite já estavam
esquecidas. Começou a anotá-las. Daí, surgiu Perto do
coração selvagem, seu passaporte de entrada no mundo literário
brasileiro, em 1944. O
lançamento foi discreto, mas o livro interessou ao crítico Sérgio
Milliet, que lhe dedicou um rodapé em sua coluna. Imediatamente outros
fizeram o mesmo, "foi a realização". Logo depois Clarice
casava-se com o namorado Maury e terminava seu curso de Direito. Maury Gurgel
Valente tornou-se diplomata e Clarice acompanhou o marido, vivendo na Itália,
Suíça (onde nasceu Pedro, o primeiro filho), Inglaterra, Estados
Unidos, tendo residido seis anos em Washington, a cidade onde nasceu Paulo, o
filho que vive no Rio. Por eles, juntou à sua obra duas narrativas infantis:
O mistério do coelho pensante e A mulher que matou os peixes.
As duas histórias foram tiradas de fatos corriqueiros e domésticos
e, na segunda, a personagem do título era a própria escritora que
certa vez, ocupada com outros problemas, deixara os peixes de seu aquário
morrerem de fome. Seu
livro de estréia provocou comparações com Virginia Woolf
e James Joyce, autores que Clarice só leria depois. Ela talvez ficasse
menos decepcionada se alguém tivesse se lembrado de D.H. Lawrence, "minha
grande admiração literária. Me inflamo com ele. Tem todos
os defeitos da espécie humana, mas é fogo puro". Publicou depois,
O lustre, Alguns contos, A maçã no escuro (seu
livro mais traduzido internacionalmente), A paixão segundo G.H.,
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Felicidade clandestina,
Laços de família e outros, inclusive crônicas, ensaios
e reportagens. Bonita,
seus estranhos olhos oblíquos provocaram a admiração também
de pintores famosos. Em seu apartamento carioca, no Leme, esta admiração
estava assinada em retratos pintados por Giorgio De Chirico (durante o tempo em
que viveu em Roma), Ismailovitch e Ceschiatti, entre vários outros. Há
alguns anos quase morreu queimada num incêndio em sua casa, ficando com
a mão direita parcialmente destruída e sofrendo dolorosas queimaduras.
"Só posso dizer que passei três noites no inferno, aquele que
- dizem - espera os maus depois da morte. EEEu não me considero má
e o conheci ainda viva". Apaixonada
por crianças, gatos, cães, galinhas e insetos, sofria de insônia
("se eu dormisse mais fumaria menos") e torcia pelo Botafogo ("por
causa do Garrincha"). A escritora guardou até a morte um certo sotaque
pernambucano. "Pernambuco marca tanto a gente que basta que nada, mas nada
mesmo das viagens que fiz por este mundo contribuiu para o que escrevo. Mas Recife
continua firme".
Dados obtidos em livros da autora, sites da
Internet.
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