CINZA

Não sei dizer a quantos dias me sinto assim. Estou mal. Mal mesmo. Como nunca outrora havia me sentido. Deve fazer quase dois meses que essa sensação ruim me acompanha, impregnada intimamente em min, me perturbando e estragando os meus dias.
Logo de inicio, imaginei que tudo não tardaria a passar. Enganei-me redondamente. Aquele misto de melancolia e frustração transformou-se numa torrente de sensações que desencadearam uma profunda angustia, humanamente intolerável, absolutamente desesperadora.
Nunca havia me fixado tanto em algo. Suzana não saia da minha cabeça. Em momento algum.

Minhas tentativas de dormir cedo acabavam se refletindo em aborrecimento e incômodo. Quanto mais cedo dormia, mais cedo acordava. Não raro, despertava muitíssimo antes do horário que havia configurado meu radio-relógio para soar.
Inúmeras vezes, assistia da janela do apartamento o lindo clarão que o sol proporcionava antes de aparecer no leste. As cores variadas num céu dotado de um gradiente que se iniciava alaranjado, tornava-se rubro até chegar à tonalidade azul, primeiro bem clara, depois esmaecida, semelhante a um azul marinho. Tão logo os primeiros raios emitidos pelo astro-rei adentrassem a janela, tratava de fechar as cortinas. Nunca soube lidar com a manhã e sua sempre ofuscante claridade.

Não suponho como conseguiria preencher os meus minutos se não houvesse a ocupação que o emprego me proporciona. Por pior que fosse a tarefa de trabalhar em um banco, mais especificamente em um dos caixas do banco, sentia-me indiferente com relação a isso. Depois de uma mínima saudação ao cidadão que se punha na minha frente, eram necessários poucos segundos para realizar alguns cálculos com a calculadora, receber uma quantia e devolver algum troco quando fosse o caso. Não era necessário durante todo dia nenhuma ação do meu intelecto, minhas atitudes e movimentos eram realizados maquinalmente ao longo dos sei lá quantos metros quadrados que envolviam o território destinado a essa aberração espanhola, fruto da descabida venda de nosso patrimônio público.
É impressionante como a evolução dos aparelhos desenvolvidos pelos homens tem seus melhores resultados no que a de mais banal em nosso cotidiano. Teria desistido de qualquer tipo de trabalho se não fossem os aparelhos que nos privam de ter de raciocinar lógica e sensatamente.

Nunca fui muito adepto de droga alguma, exceto o álcool. Impressionantemente, tornei-me um usuário ferrenho daquilo que outrora abominava por apenas trazer-me sono e fome doentia; a maconha. Reconheço que nada tem me ajudado tanto a suportar esses dias cinzentos como ela. Até os vinte anos, sequer havia fumado um baseado. Hoje estou viciado nos efeitos que ela me proporciona; primeiro uma euforia incessante, uma vontade de me mover, fazer qualquer coisa, como se uma espécie de pilha fosse conectada ao meu corpo, deixando-me inflado de um combustível que parece não ter fim. Depois aquela leveza corpórea, a vontade de nada fazer, apenas ouvir, ler ou vislumbrar algo sem sequer se mover, perdido em pensamentos. Pensamentos bons, felizes e fundamentalmente otimistas. O efeito acaba e o otimismo se esvai lentamente ou de forma abrupta. Sempre foge.

Final de semana, acordei cedo.
Uma barulheira incessante proveniente do apartamento em reformas de algum vizinho, não permitiu que o meu sono ultrapassasse as nove da manhã. Reconheço que, mesmo sem barulho, meu sono não iria muito além desse horário. Havia dormido antes da uma, num dos raros sonos que se prolongaram de forma ininterrupta ao longo da noite.
Mesmo sem fome, empurrei uma banana e um copo de leite. Já havia notado que o domingo me reservava um céu azul lindíssimo, com nem sequer um traço de nuvens. Providenciei um chimarrão, reuni algumas guloseimas, fechei dois baseados pequeninos, juntei alguns cd's, o discman e sai de casa. Teria mentido se dissesse que possuía um destino específico. Estava disposto tão somente a me deitar numa grama de um algum lugar calmo qualquer, sem barulho, pessoas e qualquer coisa que ousasse deixar-me insatisfeito. Pretendia esparramar-me, ouvir músicas, comer, fumar e beber. Encontrava-me estranhamente calmo, nem feliz, nem triste, apenas dotado de uma tranqüilidade reconfortante, uma sensação pouco assimilável se ousasse descrevê-la a qualquer ouvido alheio, por mais que me esforçasse.

Ao término do domingo me dei conta de que um dos melhores lados de se viver em porto alegre são as mulheres. Não imagino um lugar onde elas possam existir em maior número e com tamanha qualidade. Cristo, basta ir até a padaria para ter uma ereção.

Há duas semanas atrás, exatamente num domingo, pus fim a maior seca de minha vida. Desde a minha primeira trepada nunca tinha ficado tanto tempo sem dar uma. Convoquei uma puta por telefone mesmo, não estava disposto a ir até um desses prostíbulos fedorentos e, além do mais, a única serventia que um jornal dominical tem é a seção de putaria dos classificados. Optei por uma cidadã de nome Martina. O anúncio chamava a atenção: um metro e setenta, cinqüenta e três quilos, morena de olhos claros. Baita mentirosa essa Martina. Nada de olhos claros, sua retina era de um marrom escuro e o um metro e setenta do anúncio não passava de, vá lá, um metro e sessenta ali, na minha frente. Não tenho a menor noção de quanto ela pesava, mas ao menos nisso ela aparentava dizer a verdade. Seu corpo era belíssimo, suas medidas eram pequenas, dava gosto de ver, tocar, apalpar, beijar, lamber.

Passamos o dia trepando. À tardinha, acordei-me com os movimentos de Martina deixando a cama, partindo em direção a cozinha. Auxiliado pela luz do sol, que já quase se extinguia mas ainda entrava forte pela fresta da janela entreaberta de meu quarto, vislumbrei de relance o quão bela era a sua bunda, livre de qualquer traço de celulite, estria, ou algo que o valha. Não estava com tesão algum, mas foi o mínimo resquício que ainda existia dele que me fez questioná-la, assim da sua volta, quanto à possibilidade ou não de um sexo anal. Ela me disse que o preço aumentava em dez reais, e eu julguei que o investimento era válido, reuni minhas ultimas forças e tratei de comer o rabo dela. Não foi nada muito entusiasmante. Martina ficou quieta ao longo de todo o ato de sodomia, sequer um gemido abafado saiu de sua boca até o meu gozo.
No fim das contas paguei duzentos e dez reais pelas horas que Martina permaneceu comigo. Disse a ela que tornaria a entrar em contato, pechinchei um desconto para uma próxima vez, e disse adeus. Ao fechar a porta, dei-me por conta de que tinha acabado de utilizar os serviços de uma prostituta pela primeira vez na vida. Ao sentar na poltrona empunhando uma lata de cerveja, notei que teria de me socorrer nos braços de uma puta ainda muitas vezes. Sem lamentos portanto.

Precisei dos serviços de Martina cinco vezes desde o natal. Nessas experiências foi interessante notar que ela pouco se importava para a sua menstruação. Nenhuma mudança ocorria durante a foda quando ela se encontrava menstruada. De alguma forma, ela passava a impressão de que gostava ainda mais de receber o meu falo no meio de suas pernas. Seus gemidos eram quase que ininterruptos e aumentavam consideravelmente de volume. Minhas costas sofriam com as suas compridas unhas e o meu lençol terminava a noite imundo de um vermelho mal cheiroso. Até cogitei ir a uma dessas festas que acontecem aos sábados à noite em qualquer canto da cidade, porém, a hipótese me deslocar a um lugar desses, assistir uma horda de pessoas desagradáveis desfilando suas caras roupas que vestem seus músculos enrijecidos pela academia da semana, voltar para casa sem ninguém e gastar quase a mesma quantia que Martina me cobraria para proporcionar horas de prazer, repugnou-me por completo.


Melhor ficar em casa. Além do mais, a cada contato que estabelecia com Martina, ela ficava mais e mais íntima, desabafando assuntos acerca da sua família, da faculdade que trancou e pensava em voltar, da cadela vira-lata que possuía, do filme que havia assistido na semana passada, de todos seus problemas. A intimidade que ela demonstrava era correspondida integralmente por min. Carente como estava, acabava por despejar nela toda minha sofreguidão. Martina me ouvia, deixando de comentar qualquer coisa, apenas escutava minhas lamurias pacientemente. Nesse momento, seu semblante adquiria um traçado imerso em pura compaixão, fraternal o bastante para que se parecesse com alguém de minha família, uma irmã ou mãe disposta a me ajudar de todas as formas possíveis. No caso dela, trazendo-me prazer, proporcionando-me valiosas orgias, colaborando quem sabe da mais imprescindível forma que se possa conceber.
Eu sabia que era um cliente especial. Isso ficava bem claro ao sempre me fornecer formidáveis descontos, chegando até a não me cobrar dinheiro algum numa trepada ocorrida no dia de meu aniversário.

Nesse ínterim, cheguei a receber uma correspondência de Suzana. O texto não continha nada de muito especial, tão somente pequenas informações de como andava a sua vida, suprimindo qualquer menção ao relacionamento que ela estava mantendo, e perguntas de praxe; como estão seus pais, por onde tem andado, o que tem feito, como vão as coisas.
Não respondi. No último encontro que mantivemos, prometi que, sob hipótese alguma, manteria qualquer contato com ela. Antes disso fiz com que ela me prometesse ligar, assim que rompesse o seu namoro. Torcia imensamente por isso, mas de longe tentava imaginar situações boas. Tentava, por vezes em vão, admito, disciplinar-me a me sentir feliz pelo fato de que ela pode estar sentindo-se mais feliz hoje do que antes, quando ainda nos relacionávamos. Imagino, ou ao menos tento imaginar, que enquanto ela não me liga, ela está bem, seja da forma que for, ao lado de quem quer que seja.
Quase todas as noites, minutos antes de me deitar, tratava de levantar o volume da campainha do telefone, supondo que ela podesse vir a ligar durante a madrugada. O desejo e a esperança pelo telefonema eram tão reconfortantes, que chegavam a auxiliar a dura tarefa que se tornou, de uns tempos pra cá, adquirir sono o suficiente para dormir.


Esforçava-me para manter distância de antigos retratos dela. Às vezes, quando era abatido por uma sensação eufórica e alegre, me dava o prazer de pegar o meu grosso álbum de fotografias. Rapidamente buscava as últimas páginas dele, repletas de nossas imagens ou retratos apenas dela. Bastavam poucos segundos para que me recordasse da forma do seu rosto, das suas expressões faciais, do seu sorriso, de tudo. Era como se ela estivesse ali. As recordações que em doses enormes abatiam-me naquele instante, proporcionavam um regozijo imenso. Meus pensamentos permaneciam imersos nela de forma integral. Isso fazia com que me desligasse do mundo como nenhuma droga conseguiria. A atual situação em que ela se encontrava não vinha à tona, permanecia distante, não possuía significado algum ou esse significado não possuía importância, era desconsiderado. Meus pensamentos naquele momento, sejam eles quais fossem, davam lugar a um somatório infinito de boas lembranças, belas recordações, pensamentos profundamente felizes.
Ao fechar o álbum, depois de vislumbrar por minutos uma fotografia dela, de corpo inteiro, na praia, fiquei momentaneamente de pau duro. Tratei de relaxar, resvalei minhas costas na macia almofada do sofá, tirei os tênis com o auxílio dos meus próprios pés, fechei os olhos e esperei essa sensação passar. Não notei quando meu órgão tornou-se flácido, acabei dormindo antes, sendo acordado quando a sala já havia se enchido de uma densa escuridão e o interfone tocava estridentemente.

- Oi Ricardo, sou eu, Suzana.
Meus batimentos cardíacos multiplicaram-se de um segundo para o outro. Tenso, balbuciei a monossílaba resposta:
- Oi.
Tomado de um nervosismo atroz, pressionei a tecla do interfone por alguns segundos, possibilitando que ela entrasse no prédio.
Salvo algum congestionamento, ou uma intolerável falha em seu engenhoso mecanismo, o elevador atingiria o andar de meu apartamento no máximo em um minuto.
A mulher que tanto sofrimento havia me trazido, estaria ali, em minha frente, dentro de segundos. Uma espécie de formigamento toma conta do meu corpo. Mesmo não sentindo calor, transpiro intensamente.

A campainha soa. Abro a porta.
Em minha frente, a mesma mulher que conheci. Nenhuma mudança perceptível, a não ser a coloração de seus cabelos, agora mais negros. Suzana desfere um beijo em uma das minhas bochechas, antes de eu lhe convidar para entrar.

Ela entra e se acomoda como se estivesse sozinha. Ela se estira sobre o sofá de modo deveras sensual e permanece quieta. Um silêncio sepulcral toma conta do ambiente. Não arrisco abrir a boca, por mais que desejasse saber o porquê daquela inesperada visita. Aguardo por uma má notícia, parece inevitável que isso ocorra, pareço pressentir, já a sinto.
Não suportando mais o silêncio formulo uma pergunta simplória:
- Deseja beber algo?
Mesmo antes de ouvir a resposta, já vou impulsionando meus dois braços e me levantando de forma um tanto quanto vagarosa, porém propícia para o momento, me dirigindo para a cozinha, nesse instante, um refúgio para a minha pessoa.

Foi enquanto eu enchia meu mais bonito copo com um resto de água mineral que ela me disse o porquê da visita, o porquê de ter vindo até min. A notícia me anestesiara de tal forma que meus sentidos pareceram falhar por alguns instantes. Transformei-me em uma espécie de vegetal, sem conseguir pensar, sem conseguir disfarçar o nervosismo que me consumia, e o mais acelerado batimento cardíaco que meu corpo já havia proporcionado.
Ao terminar o seu relato, Suzana de imediato se levantou e caminhou em direção a porta. Provavelmente não queria que eu visse que também choravas. Nesse instante, motivado pelo temor de que saísse em fuga do apartamento, voltei a raciocinar. Alterado, gritei agudamente por ela.
Suzana não possuía mais intenção alguma de parar, dissera o que, sabe-se lá por quais motivos, pretendia dizer quando foi até a minha casa, e partia agora numa corrida desenfreada ao longo do corredor do edifício, dirigindo-se para o elevador, ainda estacionado em meu andar.

Não conseguindo chegar a tempo até ela, decidi que deveria ir pela escadaria, mas quando atingi o terceiro degrau notei que não devia ir além dali. Parei de sopetão, quase colidindo com o corrimão. Agarrando-me nele, desabei no chão. Eu não podia ir atrás dela, não possuía tal direito, e temia que se tornasse a ficar de pé, não possuiria forças para manter essa decisão. Meu desespero egoísta não permitiria. Eu sabia disso.
Só muito depois decidi me levantar. Havia novamente adquirido uma espécie de comportamento primitivo, pouco sensato, recheado de traços irracionais. Novamente uma sensação de anestesia mental se abatia sobre min, produzindo um desencadeamento sem precedentes de más sensações. Um momento bastante propício para um suicídio, fosse eu um adepto da infeliz prática.

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Tratava-se de uma doença, disso não tinha dúvida alguma, ainda assim não conseguia conter minha irracional fixação por ela.

Não busquei tratamento algum. Hoje, não me sinto curado pois ainda a busco nas outras meninas. O cheiro dela em outros pescoços, seus pequenos seios no peito de outras mulheres. Sinto que em nenhum instante conseguirei gostar tanto de alguém. Sinto na carne o adeus e os tristes significados dessa palavra. As lágrimas escorrem rapidamente de meus olhos, percorrem minha pele e espatifam-se contra o chão enquanto eu lamento friamente não poder retornar no tempo, modificá-lo ao meu gosto, como eu bem entendesse.

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