BANHEIRA

Havia uma semana que Carlos não deixava a sua banheira. Sua pele parecia não mais suportar o contato com aquela água imunda, e mandava tal recado através de pequenas manchas enegrecidas, que haviam surgido nas últimas vinte e quatro horas. Fixadas pouco abaixo do umbigo, elas se estendiam até quase o seu pênis. Para Carlos, o cheiro não era mais nocivo. Já não lhe fazia mais diferença alguma. Suas narinas já haviam se acostumado aquele cabuloso odor que brotava d’água.

O televisor velho, uma das primeiras versões com controle remoto fabricadas pela philips, estava posicionado acima do videocassete, sob uma precária mesa, herança de seus falecidos pais. Carlos só o desligava quando se sentia sonolento, não importasse que hora fosse, pois isso, sequer ele conseguia destinguir; nenhuma fresta de claridade ultrapassava as duas janelas daquele grande banheiro ao longo de todo dia. Às vezes, sem que desejasse, ficava sabendo do horário e da data do dia, ao ligar a tv. Na diagonal superior direita, logo abaixo do número do canal, em inglês, apareciam em letras garrafais: june three, january four, 08:00 am, 10:00 pm ou seja lá que data ou horário fossem. Em certas ocasiões, após ligar a tv, Carlos de sopetão fechava seus olhos, mantendo-os assim por tempo suficiente para que a dispensável informação se extinguisse da tela.

Até o momento, o filme pornográfico de pouco mais de duas horas de duração que permanecia dentro do quatro cabeças da panasonic, já havia sido assistido quatro dezenas de vezes, e rendido exatas quarenta e quatro frenéticas masturbações. Sem dúvida uma coincidência, visto que o número quatro parece perseguir Carlos; cidadão nascido aos quatro de abril de setenta e quatro.

Tudo isso, era anotado no seu pequeno bloco, mantido junto de sua bic, ao lado da banheira. Utilizava-o também para se distrair com pensamentos que lhe vinham a mente de vez em quando, principalmente quando se dispunha a dar umas tragadas em cigarros de maconha, previamente enrolados por ele e deixados dentro de uma niqueleira, do lado direito da banheira.

Parágrafos como esse, abaixo, sem o mínimo de nexo a não ser, suponha-se, para o seu autor, foram escritos com a pouca claridade que a televisão despejava nele, em momentos que não se sabe qual foram, pois, como já mencionado foi, brilho do sol ou breu da noite não adentravam àquele ambiente.

Mestre, estás cuidando bem da cidade ou delegaste o Valda para administrar nossa província? Quando voltar, não quero assistir gracejo algum de qualquer transeunte, tão pouco, quadrúpedes de semblante fechado, desfilando e evacuando aquele conhecido material pastoso por entre as árvores e flores de nossas humildes praças. É necessário ordem. Se for preciso contrate tiranos de outros vilarejos. Por vezes, políticos e pessoas de influência se fazem necessárias, contanto não confie cegamente em tais cidadãos, tratam-se de aristocratas, pertencem a alguma oligarquia. Quanto ao povo, seja rude. Deveriam não dar as caras, no entanto sempre aparecem, vindos de todos os cantos, de todos os lugares. Nunca compreendi o motivo das pessoas saírem de suas casas. Suponho que as goteiras sejam as principais culpadas.

É necessário dizer que o caderninho tratava-se da única coisa que ele fazia absoluta questão de não emporcalhar, tanto que, tentava limpar sua mão na lajota fria do chão do banheiro, sempre que ousasse escrever algo nele.

Biscoitos de aveia e mel, bolachas de água e sal, bananas pouco maduras, alguns litros de um guaraná desconhecido e muitas balas de funcho era tudo que havia sobrado da espécie de rancho que Carlos havia posto ao redor de sua banheira, quando do ínicio dessa estranha semana. As embalagens de alimentos que ele havia consumido, se encontravam, aos montes, jogadas ao redor de sua banheira. Carlos não podia ser considerado gordo em ocasiões anteriores, porém, tendo deixado de ingerir uma quantidade calórica mínima nos últimos dias, emagreceu substancialmente. Mesmo após algumas tragadas dispensadas nos seus baseados, a fome o assolava de maneira mínima, sendo plenamente saciada com duas ou três bolachas e um gole de guaraná.

Qualquer um que pusesse os pés naquele quarto, não suportaria o odor, a visão. Carlos parecia não se importar, sequer notava. Sua tarefa era mecânica, sem modificações. Apenas ligava a televisão e se deliciava com canais estrangeiros e de cartoon da sua tv por assinatura. Quando se sentia disposto a um orgasmo, trocava de canal, acionava o seu videocassete, e dava play.

Por vezes, insatisfeito com o aspecto da água, tentava, em vão, retirar um pouco dos dejetos que ali se encontravam. Não conseguia, pois, tal como areia, aquele misto de fezes, urina, esperma e água, resvalava por entre seus dedos, sobrando, quem sabe, uma quarta parte do que ele pretendia retirar ao moldar as suas mãos em forma de concha. Isso, por que, provavelmente por conta de maus hábitos, seus excrementos eram semelhantes aqueles que defecamos quando atingidos por alguma intoxicação alimentar; mole, semelhante a um caldo pouco espesso.

Ao longo da semana, por diversas vezes ouviu o soar de sua barulhenta campainha. Em determinado momento, cogitou que algo de real importância podesse ter ocorrido, tamanha a freqüência e intensidade com que sua campainha soou. Perdeu sim uns cinco segundos pensando no que teria feito o cidadão dispensar quase um minuto de ininterruptas batidas a sua porta. Passado esse reduzido tempo, tornou a soltar gargalhadas com um desenho qualquer que assistia naquele instante.

Telefone convencional, Carlos não possuía. Celular, desligado. Seu e-mail pessoal, via de regra, recebia apenas correntes e forwards cretinos. Poucos sabiam da existência de seu blog que, diga-se de passagem, era atualizado com a mesma freqüência que a ferrari de barrichello vence uma corrida. Então, não é necessário dizer que notícia alguma acerca dele se ouviu falar em qualquer lugar, por mais inóspito ou freqüentado que esse seja, durante toda a semana.

Somos levados a crer que, tudo que até aqui foi mencionado, aconteceu na época de verão. Em momento algum, pareceu Carlos sentir-se incomodado com a temperatura da água em sua banheira. Fosse época fria, ou até mesmo morna e, estando ele submerso até o pescoço naquela imundisse, seria pouco provável que se sentisse tão bem quanto aparentava nesse momento.

Em dada oportunidade, ao acionar o power do controle remoto do seu velho philips, notou a inscrição july seven, 06:33 am, ali, na diagonal superior direita, logo abaixo do número do canal. De imediato, retirou-se da banheira e foi tomar uma ducha. A pouca ingestão de alimentos parecia não o ter debilitado. As manchas davam sinal de que em breve desapareceriam de seu corpo. Durante o banho, utilizou de tudo: xampu, sabonete e condicionador. Aproveitou, enquanto era massageado pelo forte jato d’água, para escovar seus dentes. Após, já seco, dê-lhe loções faciais, creme anti-acne, e hidratantes variados. Carlos sempre foi muito cuidadoso com a sua aparência.

Depois de uma semana, abriu a porta do banheiro, e deixou suas narinas serem invadidas por um ar com teor reduzido de fedor, mas, ainda assim, reprovável por qualquer ser humano. O cheiro do banheiro de Carlos, provavelmente, tenha se estendido até os corredores do prédio. Incrível, foi ninguém ter posto abaixo a sua porta, a procura de um qualquer em já avançado estado de decomposição.

Encaminhou-se até o quarto, abriu o grandioso armário de mogno e vestiu-se de um pulôver preto e calças brancas de veludo. O sapato que pôs, era de um marrom escuro, engraxado com maestria. O relógio que prendeu ao braço esquerdo, reluzia, trazendo centralizada a inscrição rolex. Enquanto fechava os botões do blazer, ligou o celular e telefonou para Cristina, sua empregada, a quem determinou que viesse a sua casa na mesma tarde.

Sem se esquecer de sua pasta e da chave do mercedez, saiu porta a fora. Suas férias haviam chegado ao fim. Dentro de menos de uma hora, Carlos teria de ocupar novamente o seu lugar na coorporação; Vice-Presidente.

Hosted by www.Geocities.ws

1