O problema da igualdade e da liberdade
Em tese, os pilares das sociedades democráticas modernas,
derivam dos objetivos da revolução francesa e poderiam se resumir aos conceitos
de liberdade, igualdade e fraternidade. Será que essas formulações são de fato
compatíveis entre si?
Quando falamos no conceito de “fraternidade”, o que estamos tentando dizer é que
numa sociedade democrática deve haver um sentimento de que todos pertencem a uma
mesma família (“frater” = irmão). Embora seja um conceito elegante, não é uma
definição muito clara e pode-se dizer que qualquer sociedade, mesmo autoritária,
como as ordens monásticas, pode ser “fraterna”.
Quanto aos conceitos de liberdade e igualdade, em muitos casos as duas coisas
parecem ser excludentes. É evidente que a igualdade, levada às últimas
conseqüências, é incompatível com a liberdade, porque os homens só podem ser
totalmente iguais se abrirem mão de muito ou de toda a sua liberdade.
Por outro lado, notamos que a liberdade levada ao limite, fatalmente impedirá a
manutenção de qualquer sistema igualitário. Para ser livre, uma condição
essencial é sermos nós mesmos e agirmos de acordo com nossos interesses e
preferências particulares, ou seja sermos “diferentes”.
A origem do trabalho.
Quando vemos uma sociedade primitiva como a dos índios brasileiros, por exemplo,
a primeira coisa que nos chama a atenção é o fato de que o índio não “trabalha”.
Ele caça, pesca, constrói canoas, manufatura arcos, flechas, cocares, etc. As
mulheres executam um sem número de atividades, mas mesmo assim, dizemos que eles
não trabalham, por que?
Sertanejos e indianistas costumam assinalar o espanto demonstrado por um índio,
quando convida um branco qualquer para pescar, por exemplo, e o sujeito lhe
responde que precisa antes pedir permissão ao seu “chefe”. Por que ao índio
parece tão estranho que um homem forte e armado precise se submeter à vontade de
outro?
A resposta é simplesmente o fato de que o conceito de trabalho está intimamente
ligado ao de “submissão”. O branco acha que o índio não trabalha porque não
consegue ver os sinais clássicos da submissão, como a obediência sem discussão a
chefes ou encarregados, e principalmente a ausência de horários específicos para
realizar tarefas.
O índio por seu lado, não consegue perceber que o branco está participando de
uma “expedição” e que portanto esta “trabalhando”. Mas ele vê com clareza o que
escapa ao sertanista, ou seja, a relação de sujeição de um homem à vontade de
outro, sem que um deles seja identificado claramente como “escravo”.
Para o branco é “natural” que o trabalho tenha de estar associado a relações de
subordinação e horários determinados, e para o índio, que tenha de estar
associado à escravidão. O fato é que ambos estão perfeitamente certos.
A origem do trabalho como conhecemos sempre foi a escravidão e não um suposto
“engenho” humano. Sabemos que a agricultura e a domesticação de animais surgiu
em função da percepção humana de que desse modo, era possível evitar as
inevitáveis privações decorrentes do modo de vida baseado na coleta, na caça e
na pesca.
Muitos sugerem que isso ocorreu devido a mudanças climáticas, que destruíram os
antigos “jardins do Éden”. Só que essa forma de vida priva o mesmo homem da
antiga liberdade de que dispunha. Agora ele não pode mais andar a esmo pelas
florestas, obtendo alimento e abrigo apenas quando lhe é necessário. Tem de
executar tarefas cansativas e repetitivas, em resumo, “ganhar o pão com o suor
de seu rosto”.
Disso surge o conceito de “necessidade”. O homem não pode mais fazer o que tem
vontade, mas sim o que é necessário para o seu sustento. Mas a inteligência
humana logo descobriu uma saída para o problema. Para voltar a ser “livre”,
basta ter uma quantidade razoável de escravos.
E para ter escravos, é necessário desenvolver métodos de guerra capazes não só
de “vencer” mas de “submeter” outros povos. Os índios sabem perfeitamente bem
como se faz guerra, só precisam de apenas alguns dias para aprender a usar armas
de fogo. Mas não tem interesse em escravos.
Nos antigos relatos sobre as guerras entre índios, vemos que ao vencer outra
tribo, eles simplesmente matavam todos os adultos, ficavam somente com as
crianças e as mulheres jovens, as quais incorporavam a seu próprio povo. Os
primeiros mongóis faziam o mesmo na China. Isso porque esses povos sabiam como
derrotar outros, mas não como subjugá-los, faltava-lhes algo mais, faltava-lhes
aprender a ser “predadores esclarecidos”.
Os mais primitivos impérios civilizados, ao contrário, ao derrotar uma tribo, em
muitos casos nem sequer eliminavam seus líderes. Passavam a lhes exigir
tributos. Como faziam isso? Eles desenvolveram um sistema de relações humanas
que alternava a benevolência com o terror. Com isso faziam o que os selvagens
não sabiam fazer: Domesticar homens.
A origem da liberdade e da igualdade.
Vemos que na antiga Grécia, a palavra para “escravo”, era sinônimo de “inimigo
vencido”, e que isso não significava que fossem tratados com arbitrariedade e
brutalidade, ao contrário, podiam inclusive ganhar dinheiro e até ficar ricos,
mas não tinham “liberdade”, e nem eram “cidadãos”.
Isso porque na concepção grega, só tinha direito à cidadania e portanto a
liberdade, aqueles que não estivessem sujeitos a “necessidade”. Esse não era o
caso dos escravos. Em outras palavras, só era livre e cidadão aquele que não
tinha que trabalhar. É pouco lembrado pelos cultores da antiguidade o fato de
que também estavam excluídos os que não podiam guerrear, ou seja, as mulheres e
as crianças.
Podemos concluir daí que o conceito de cidadania, que conferia ao seu portador a
tão preciosa liberdade, só poderia existir caso ele pudesse ter escravos para
lhe servir na esfera “doméstica” e ao mesmo tempo contribuir para a obtenção de
outros, pela guerra, na esfera “pública”. Ou seja os cidadãos gregos e depois os
romanos só eram livres na exata medida em que eram povos “predadores
esclarecidos” de sucesso.
Nesse caso, a igualdade entre os homens livres era uma decorrência do fato de
estarem isentos da “necessidade”, ou do que chamaríamos de trabalho. Afinal,
podiam competir em torneios, discursar expondo suas próprias opiniões, discordar
entre si quanto à conveniência de alianças ou de guerra com outros estados e até
escolher seu próprio estilo de “governo”. Isso porque, nenhum dependia do outro
para comer, manter sua mulher e filhos ou se abrigar.
A origem da fraternidade.
Com o colapso do mundo antigo e a ascensão do cristianismo, todos esses
conceitos foram completamente modificados. Agora todos eram “irmãos”. Cada homem
batizado era “filho de Deus”. Todos possuíam uma alma imortal, etc. Era a
substituição da liberdade pela submissão a “verdade revelada” e da igualdade dos
homens uns em relação aos outros pela igualdade perante Deus.
Na pratica, podemos dizer que esse foi o período do nascimento do conceito de
“fraternidade”, estendido do clã, da família e da nação para todos os “irmãos em
Cristo”. Mas o problema da “necessidade” é claro, não desapareceu. Isso
significava que alguém tinha de trabalhar e portanto ser submetido à escravidão.
Assim, o velho sistema “incorporou-se” ao novo através da figura do nobre e do
clérigo de um lado, e do servo de outro. Só que agora o nobre exercia o “ofício
das armas” enquanto o clérigo “o ofício de Deus”, e logicamente o servo
sustentava a todos. O nobre agora “protegia” os servos e o clero cuidava da sua
“salvação”.
O servo não estava mais sujeito a necessidade pela simples força bruta de um
conquistador e sim pela “vontade de Deus”. De qualquer maneira, teria sua
recompensa em outra vida. Quando então estaria finalmente livre de sua “labuta
diária”, ou seja, do trabalho.
A revolução francesa ou “todos querem tudo”.
A revolução francesa, precedida da revolução inglesa e da independência dos
Estados Unidos da América, vem marcar o ponto culminante de um longo processo de
desmantelamento da ordem feudal, implantada e sustentada pela ideologia cristã.
Com o surgimento das armas de fogo, o velho esquema subitamente entrou em
colapso. Para ser um guerreiro, para ferir e/ou matar um homem armado, não era
mais necessário uma vida inteira de treinamentos com lanças, escudos, maças,
machados e espadas. Não era preciso nem saber cavalgar. Bastava ter coragem e
puxar um gatilho ou acender um pavio.
Com isso o “ofício das armas” perdeu seu caráter de exclusivismo e passou a ser
acessível mesmo aos servos e burgueses. A impressa de tipos móveis, vulgarizou o
conhecimento das escrituras e dos clássicos, colocando o “ofício de Deus” ao
alcance de um número inusitado de pessoas.
Em contrapartida, entra em cena uma nova arte, conhecida desde a origem da
história, praticada por um grupo de pessoas antes irrelevante, mas que agora
passa a ser decisiva: A arte de ganhar dinheiro. Tanto quanto o “oficio das
armas” e o “ofício de Deus”, o “ofício do dinheiro” exigia qualidades
específicas e também podia tornar seus praticantes “homens livres” da
necessidade de trabalhar.
À burguesia não se exigiam dotes físicos excepcionais, nem grande capacidade
intelectual. Mas se exigia muito bom senso e o conhecimento de assuntos
completamente estranhos ao universo dos nobres e dos padres.
Daí a conclusão óbvia para a burguesia em ascensão, de que tanto o clero quanto
à nobreza deveriam se submeter a eles e não manter a ordem vigente. Isso porque
agora, para se fazer um soldado bastava um jovem corajoso e um mosquete e para
formar um padre ou um pastor, um jovem paciente e alguns livros. Para ganhar
dinheiro ao contrário, eram necessários dotes muito mais raros.
O problema é que para derrotar a nobreza e o clero, era necessário também
destruir todo o universo ideológico que o mantinha. Do contrário, como a
experiência várias vezes demonstrou, os servos se viravam contra os burgueses.
Era portanto necessário prometer a eles a divisão do poder em igualdade de
condições.
Disso resultaram as promessas de liberdade e igualdade extensiva a todos, o que
na época e mesmo nos dias de hoje, era um contra-senso. Isso porque o “ofício do
dinheiro” não pode eliminar a “necessidade”, ao contrário, o capital para tornar
o burguês livre, tem a mesma necessidade de escravos que tinha o cidadão
grego/romano e depois o nobre e o clero medieval.
Por que o capitalismo funcionou nos EUA.
Logo ficou claro que a nova ordem apesar de promover a liberdade política e a
igualdade de oportunidades, não livrava aqueles que não exerciam o “oficio do
dinheiro” da “necessidade” e portanto os relegava de volta a condição de
escravos, no sentido de que não faz sentido se ter “liberdade de passar fome”.
Uma das poucas exceções foram os EUA. Isso porque lá, nessa época, não havia
limitação para a obtenção da propriedade da terra. E melhor ainda, mesmo um
pequeno proprietário de terras podia agora comprar escravos negros, e assim
tornar-se “livre” no melhor estilo dos antigos gregos.
É de se notar que a fundação do país se deu pela iniciativa de cidadãos que se
consideravam iguais justamente porque compartilhavam entre si da liberdade que a
coroa britânica insistia em lhes negar.
Por que o socialismo não funciona.
Enquanto os norte-americanos criavam sua “nova Grécia”, na Europa as classes
trabalhadoras se mantinham basicamente nas mesmas condições de antes da
revolução francesa e das guerras napoleônicas.
Os capitalistas, os novos senhores que exerciam o “oficio do dinheiro” os
exploravam a vontade, agora sob o pretexto de que essas eram realidades
“naturais” derivadas de “leis científicas”. Tudo muito bem explicado em
compêndios e tratados de todo tipo. Até Darwin serviu para “explicar” a
superioridade “natural” do capitalista sobre o operário.
Então surgem os movimentos socialistas, utópicos e materialistas, os anarquistas
e finalmente, os marxistas. Esses últimos finalmente tem sucesso. Implantam uma
sociedade socialista na Rússia que fracassa logo em seguida, transformando-se em
uma tirania brutal onde tudo estava presente, menos a liberdade. Por que?
É simples, o socialismo “científico” não podia livrar o “proletariado”
industrial, e muito menos os camponeses russos do eterno problema da
“necessidade”. Se todos fossem de fato livres, não haveria ninguém para
trabalhar. Assim os “camaradas comissários” foram aos poucos tendo de
re-introduzir a servidão, agora em nome da “construção do socialismo”.
Por essa época, o nacional-socialismo alemão tentou solucionar o problema bem a
moda grega clássica. Os povos “inferiores” seriam os novos escravos e ponto
final. Só que não funcionou. Os povos “inferiores” também sabiam fabricar
canhões e bombas.
As máquinas são a verdadeira chave da liberdade e da igualdade.
Após o colapso da URSS, motivado em grande parte pelas irresistíveis
contradições geradas pela igualdade, que suprimiu a liberdade, assistimos no
ocidente um aprofundamento das contradições do neoliberalismo, que na prática,
suprime a igualdade em nome da liberdade.
Então só pode haver uma conclusão, só existe um caminho para a criação de um
estado de coisas em que todos possam gozar da liberdade entre iguais. Só existe
um meio de estender a todos os privilégios dos antigos cidadãos da “Polis”
grega. Temos de criar as condições para substituir o trabalho humano, fonte
eterna da escravidão, pelo trabalho das máquinas.
Se conseguirmos transformar a utilização do atual aparato tecnológico, de mera
extensão dos “meios de produção” dos senhores do “ofício do dinheiro”, em
instrumentos a serviço de uma busca global pela libertação do homem da
escravidão do trabalho, então podemos pensar na construção de uma nova utopia
realmente viável.
Serão os robôs e computadores os novos escravos do futuro. Eles poderão libertar
a humanidade de sua eterna submissão as necessidades de prover seu sustento.
Pela primeira vez na história, isso não está tão longe assim da realidade.