O Princípio Federativo e a sociedade informacional
O Principio Federativo, defendido por Proudhon, pode ser uma alternativa a
construção da sociedade informacional pelo capitalismo neoliberal. Existe certa
afinidade entre os princípios anarquistas e a sociedade em rede.
Não pretendo entrar na
complexa discussão entre as várias correntes do anarquismo clássico no que se
refere a real definição do federalismo defendido por P. J. Proudhon em sua obra
“Do Princípio Federativo”. A idéia é apenas mostrar que um projeto federativo
pode funcionar em uma sociedade constituída por redes ao invés de estados
nacionais.
A primeira coisa que temos de entender é que o capitalismo industrial também
surgiu de idéias libertárias. Os primeiros capitalistas eram tão revolucionários
quanto qualquer filósofo iluminista. A história de muitas corporações é pródiga
em destacar os conflitos entre os empreendedores e a visão tacanha e
obscurantista de nobres e clérigos. Devemos lembrar que os primeiros teóricos do
capitalismo como Adam Smith e David Ricardo eram críticos persistentes em
relação à autoridade e os desmandos do estado.
O socialismo surgiu como crítica ao capitalismo e não como sua negação. Era uma
tentativa de superá-lo através da apropriação pelo proletariado dos meios de
produção. Marx, por exemplo, não pretendia reverter às conquistas políticas,
sociais ou tecnológicas do capitalismo e sim entrega-las a classe operária.
A principal divergência entre marxistas e anarquistas surgiu quando os primeiros
insistiam na necessidade do “centralismo democrático” ou em outras palavras, num
estado forte em que iria vigorar a “ditadura do proletariado”. Os anarquistas
logo perceberam o potencial de autoritarismo que isso implicava. Muitos teóricos
pró-capitalistas não deixaram de notar o caráter nitidamente dogmático e
retrógrado dessas idéias.
Hoje é muito fácil criticar Marx e exaltar Proudhon ou Bakunin associando ao
primeiro a paternidade do falido sistema soviético. Não é bem assim. Marx jamais
apoiaria a tentativa de implantação do socialismo em países como a Rússia ou a
China. Ele acreditava que o capitalismo era uma etapa essencial na evolução das
sociedades.
Então por que Marx defendia idéias autoritárias? É simples, porque os
capitalistas também o faziam, por necessidades práticas. O capitalismo
industrial primitivo era baseado em gigantescas máquinas a vapor que moviam
complicados sistemas de transmissão de força para uma maquinaria que devia ser
operada a um ritmo constante e sem interrupções.
Isso exigia uma mão-de-obra disciplinada e treinada de forma o mais uniforme
possível. Grandes galpões deveriam abrigar centenas de pessoas trabalhando sem
interrupção. A necessidade de centralização das máquinas condicionava a
centralização dos operários em áreas cada vez mais populosas e difíceis de
controlar.
A antiga relação de “camaradagem” entre empregador e empregado desapareceu,
dando lugar a relações impessoais entre “Capital” de um lado e “Proletariado” de
outro. Para poder manter o comando de uma situação cada vez mais caótica, muitos
empreendedores recorreram à tática de ressuscitar velhos símbolos de autoridade,
tomando o cuidado de neutralizá-los e destitui-los de poder de fato. Assim
surgiram os monarcas e/ou ditadores de opereta e a religião defensora das
“virtudes” do dinheiro.
Devido necessidade de manter um mínimo de coerência entre as idéias liberais
capitalistas e o sistema político, criou-se à democracia manipulada pelo poder
econômico a qual os socialistas chamaram de “burguesa”.
Ao denunciar tudo isso, tanto marxistas como anarquistas, tinham como alvo de
suas críticas a exploração do proletariado em nome de uma suposta autoridade
representada pelo estado nacional ou pela religião. A diferença está no fato de
os anarquistas repudiarem a autoridade em si, enquanto os marxistas pretendiam
simplesmente substitui-la pela sua própria versão de estado e ideologia.
Ocorre que ao formular seu principio federativo, Proudhon parecia dar muita
ênfase a comunas agrícolas e associações de artesãos, o que parecia remeter o
anarquismo ao passado em termos econômicos. Marx ao contrário, teorizava acerca
do capitalismo industrial o que parecia ligar suas teorias ao futuro inexorável
da economia.
A grande questão posta aos anarquistas sempre foi à dificuldade de adaptar sua
rejeição sistemática a qualquer tipo de centralismo com o que parecia ser uma
tendência natural e irreversível da economia moderna: A centralização da
produção em instalações cada vez maiores.
Com o surgimento do capitalismo informacional, cuja produção se baseia muito
mais no investimento em tecnologia de informação e telecomunicações, o enfoque
muda totalmente. A descentralização passou a ser um objetivo organizacional do
próprio capitalismo. O enfraquecimento dos estados nacionais e suas leis
obsoletas tornou-se estratégia geral dos novos capitalistas.
A defesa da construção de mecanismos supra nacionais como a União Européia, o
NAFTA, a ALCA e acordos para a região do Pacífico, visam, sobretudo tornar
previsíveis e homogêneas as regras para o desenvolvimento capitalista,
eliminando as amarras locais.
A reação irada e violenta de nacionalistas e fundamentalistas religiosos só
atesta o seu desespero ao constatar seu destino em comum: Parafraseando Trotsky,
“A lata de lixo da história”.
Nessas condições, não há porque não admitir que a globalização e as novas
tecnologias são favoráveis aos projetos anarquistas. Grande parte da
argumentação dos críticos em relação ao anarquismo estava em sua dificuldade de
implantação prática. A idéia de unidades federadas constituídas por grupos de
até 1000 pessoas decidindo cada questão em assembléias livres e depois
comunicando suas decisões a delegados que atuariam junto a outras federações
parecia muito poético e completamente inexeqüível.
Só que é exatamente assim que funcionam as corporações globalizadas. A Nike, por
exemplo, só tem 500 empregados diretos nos EUA, onde projeta seus tênis, cujos
protótipos são feitos em Taiwan e a produção é espalhada pelo mundo todo. De sua
rede corporativa globalizada participam micro e pequenas empresas, negócios
familiares e até indivíduos autônomos, no total são mais de 90 mil pessoas.
Como isso funciona? Através da autoridade de algum governo mundial? Alguém
acredita realmente que o governo do Vietnã é uma espécie de agente do
imperialismo americano? Pois é lá que boa parte dos tênis da Nike é fabricada.
Então como a produção da Nike pode ser tão eficiente e lucrativa? A resposta é
muito simples. Usando computadores interligados em redes, através de sistemas de
telecomunicações, consegue-se estabelecer negociações complexas e livres com
centenas de agentes econômicos e coordenar suas atividades em tempo real.
O que isso tem de diferente em relação às idéias básicas do federalismo? Do
ponto de vista operacional, nada. Do ponto de vista ideológico tudo. Nas ZPE (*)
da China, Tailândia e Vietnã, pequenas unidades fabris são organizadas de forma
a explorar de crianças e idosos a prisioneiros, com jornadas de trabalho de ate
14 horas por dia.
Então a questão é basicamente lutar contra essas estruturas injustas e brutais,
colocando em seu lugar estruturas baseadas em princípios igualitários como o
mutualismo, por exemplo. Uma cooperativa desse tipo poderia fabricar tênis para
a Nike sem gerar qualquer conflito com outros fabricantes organizados em função
do lucro.
Alguns podem argumentar que a Nike só paga em torno de 10 dólares por tênis a
seus fornecedores e os vende por preços que variam de 70 a 130 dólares. Ocorre
que boa parte da diferença não é lucro e sim investimento direto em publicidade.
Mesmo assim, alguém ganha muito dinheiro fazendo tênis por 10 dólares. A questão
é simplesmente distribuir esse ganho de forma a beneficiar uma federação de
operários e não alguns poucos intermediários.
É ai que entra a necessidade de dominar e disseminar a tecnologia de informação.
Da mesma maneira que a Nike descobre como fazer seus tênis por 10 dólares, uma
federação de fabricantes de cadarços pode descobrir como vende-los para a Reebok
por um preço melhor.
Outro aspecto importante, inexpressivo na época de Proudhon, é a necessidade de
cada indivíduo pertencer a várias federações. Levando em conta a imensa
mobilidade das populações atuais e a velocidade com que as inovações surgem, é
necessário que cada pessoa possa se deslocar livremente dentro do sistema
econômico.
Isso a meu ver não contradiz a idéia básica de Proudhon segundo a qual "O que
constitui a essência e o caráter do contrato federativo é que, neste sistema, os
contraentes se reservam para si mesmos, mais direitos, autoridade e propriedade
do que a que abandonam". (**)
Um especialista em ciências da computação poderia pertencer a uma cooperativa de
programadores de sua cidade natal, a uma federação de analistas de sistemas em
outro país e a uma organização coletiva globalizada de consultores de TI (***).
Isso não impediria que também fosse sócio de uma loja de artigos de informática
e participasse de um grupo de projeto da Microsoft. O importante é que levasse
as idéias igualitárias das unidades federadas para as organizações baseadas no
lucro e não o contrário.
A revolução anarquista seria feita no embate diário entre as duas idéias, pelo
exemplo e pela propaganda. A propagação das idéias igualitárias ocorreria de
baixo para cima, feita pelos próprios trabalhadores e não por um lance dramático
comandado por uma pequena elite intelectual que mude aparentemente toda a
organização social, mas que logo perderia seu efeito. Já vimos que esse não é o
caminho.
Notas:
(*) Zonas de Processamento de Exportação
(**) Proudhon Du Principe Fédératif, Marcel Rivière, Paris, Pág. 319.
(***) Tecnologia de Informação