O torpor da esquerda tradicional


Um espectro ronda a esquerda tradicional, é a percepção cada vez maior, por parte de seus seguidores, e dos cidadãos em geral, de sua inutilidade. Os partidos políticos e as teorias vinculadas as correntes que se definem de esquerda, perdem espaço para o neoliberalismo ou se recolhem à condição de correntes de pensamento irrelevantes.

A globalização da economia e a introdução do capitalismo informacional, definido como sendo o novo modo de produção descentralizado, baseado na tecnologia de informação e telecomunicações, aliadas as novas técnicas gerenciais, tem provocado duas reações diferentes entre os antigos militantes de esquerda.

A primeira e mais evidente é a capitulação às teorias ligadas à economia de mercado e ao capitalismo financeiro. São principalmente os partidos de esquerda, que ao chegar ao poder, simplesmente ignoram suas plataformas e promessas políticas em nome do pragmatismo. Líderes como Jacques Chirac, Tony Blair ou Gerhard Schröder na Europa, tão logo assumiram o poder, passaram a ser criticados por suas posições “liberais”.

No Brasil, o sociólogo e marxista Fernando Henrique Cardoso, co-autor da “Teoria da Dependência”, estabeleceu uma política em plena sintonia com o chamado “consenso de Washington” e foi violentamente criticado pelo partido dos trabalhadores por sua ênfase nas privatizações e outras políticas taxadas de “neoliberais”.

O PT elegeu Luiz Inácio Lula da Silva presidente, e o que aconteceu? Em apenas um ano ficou absolutamente claro que nada iria mudar em relação aos rumos já traçados por FHC e sua equipe. Lula chegou a esbravejar que em seu governo “não iria inventar nada”. Não haveria “plano Lula nem plano Palocci”.

A pergunta que se coloca então é a seguinte: Para seguir uma política afinada ao FMI, ao Banco Mundial, ao FED e ao mercado financeiro, por que não manter as pessoas realmente afinadas com essas idéias? Se elas (as idéias) são boas, por que eleger pessoas que as criticavam? Isso é no mínimo inútil.

A segunda reação é mais sutil, porque está situada no campo das teorias e análises da atual conjuntura mundial. Trata-se da elaboração de uma série de idéias que tendem a incluir os atuais fenômenos da globalização num pretenso “pós-marxismo”. É o caso do livro “Império”, de Michael Hardt e Antonio Negri. A obra no fundo tenta provar que a realidade atual não deixa de ser uma realização, embora involuntária, do próprio marxismo!

Quando caminham na direção certa, ao afirmarem que a luta por justiça social e econômica deve adotar novas formas, criando “novos conceitos para dar conta da nova realidade, redefinindo o objeto de luta política das massas e “descentralizando” os agentes históricos da transformação socialista”, são criticados por marxistas como Tom Lewis que afirma: “Colocado de maneira simples, Hardt e Negri contestam a noção de imperialismo e a substituem por império, propondo lutar por uma “cidadania global” em vez de lutar pelo poder do Estado, e afirmam também que a dispersão da “multidão” prevalece sobre a idéia de centralidade da classe trabalhadora”. (1)

Robert Kurts, parte da afirmação de que: “Karl Marx já foi dado por morto mais de uma vez e sempre escapou por um fio da morte histórica e teórica”. E explica: “A razão é simples: a teoria de Marx só poderá morrer em paz junto com o seu objeto, o modo de produção capitalista”.(2) Mas ele próprio não perde tempo em decretar sua própria versão de porque se dará em breve a (nova) “morte do capitalismo”:

“O aumento da produtividade reparte seus frutos de forma extremamente desigual: enquanto trabalhadores “supérfluos” são demitidos, crescem os lucros dos empresários. Mas, se todas as empresas entrarem nesse processo, há a ameaça de surgir um efeito com que não contavam os interesses obtusos da economia empresarial: com o crescente desemprego, diminui o poder de compra da sociedade. Quem comprará então a quantidade cada vez maior de mercadorias?”(3)

O problema é que o que ele afirma ser o “torpor do capitalismo” não tem nada de original. Seria apenas uma nova crise de superabundância, muito parecida com a crise de 1929, que apesar das enormes desgraças que desencadeou, não acabou com o capitalismo (e menos ainda com os capitalistas). Ocorre que para a economia globalizada, pouco importa que a economia de um determinado país entre em crise. Sempre haverá mercado em outros.

O capitalismo global pode solucionar esse problema simplesmente aplicando as velhas fórmulas keynesianas a países como a Índia ou a China e mesmo ao Brasil, de modo a elevar moderadamente a renda de sua população para gerar demanda. Enquanto isso assiste impassível a destruição da classe média dos países desenvolvidos.

Além disso, existe sempre espaço para novos mercados entre os ricos dos países pobres. Com a melhora da infra-estrutura tecnológica em geral, será possível integrar as classes mais favorecidas dos países pobres aos hábitos e padrões de consumo da elite dos países desenvolvidos.

Outra saída simples para uma possível crise de demanda é a manutenção, num mesmo país, de populações vivendo em patamares de renda muito distantes, como no caso do Brasil, por exemplo. É possível criar pequenas “ilhas” de prosperidade cercadas de multidões de miseráveis. Basta se valer de critérios repressivos inadmissíveis no primeiro mundo, mas velhos conhecidos por aqui.

Fica evidente então que a abordagem do problema deve ser totalmente nova. Tão nova e original quanto as questões que se colocam. Difícil é vencer a paralisia que tomou conta das esquerdas tradicionais. Essas sim vivem seu período de maior “torpor” e perplexidade. E por que isso ocorre? Acredito que um diagnóstico pode ser tentado.

As fórmulas convencionais da esquerda estão voltadas essencialmente para as questões políticas. Embora fale sempre em questões econômicas. A verdade é que tanto o marxismo-leninismo como os vários partidos socialistas sempre deram ênfase à “revolução”, seja violenta seja por meio de partidos políticos vitoriosos em eleições.

As questões econômicas sempre foram vistas como uma espécie de obrigação relegada ao próprio capitalismo. Em outras palavras, a ordem era: Vamos deixar que os capitalistas desenvolvam a tecnologia e aumentem a produtividade. Depois tomamos tudo deles pela tomada de poder do estado. O objetivo do militante socialista deveria ser o poder.

Disso decorreram as várias formas de socialismo autoritário e dogmático de um lado e dos partidos políticos “pragmáticos” de outro. Todos com um só objetivo: arrebatar o poder do estado das mãos do capital. Só que onde isso foi feito a décadas, o resultado foi desastroso. O desmanche do estado soviético por iniciativa de seus próprios cidadãos deixou a esquerda simplesmente sem ação.

Agora os partidos políticos de esquerda chegam tranqüilamente ao poder. Por todo o mundo, a igualdade e a liberdade política vão se tornando uma realidade indiscutível. A democracia representativa triunfa sobre regimes autoritários de direita e de esquerda. Enquanto isso a igualdade econômica nunca esteve mais distante. Ao contrário, assistimos aos maiores índices de concentração de renda da história.

Na prática as únicas reações a crescente liberdade política vem de grupos religiosos ultra-conservadores cristãos, islâmicos e hindus ou de nacionalistas impotentes que vêm suas culturas perderem sua identidade para uma mistura de hábitos e costumes cada vez mais indiferenciada. Países comunistas como a China e o Vietnã aderem alegremente a economia de mercado. Cuba e Coréia do Norte resistem e são relegadas a insignificância ou a miséria.

Então se a tomada de poder do estado não leva a nada, que tipo de rumo o socialismo deve tomar? Quem chegou a propor que “no lugar de poderes políticos, colocaremos forças econômicas. Em lugar das velhas classes sociais: nobres, burgueses e camponeses ou patrões e operários, colocaremos a designação geral e os departamentos especiais do trabalho: Agricultura, Indústria, Comércio, etc.”? (4) Ele mesmo, o velho Proudhon.

Alguém pode objetar que isso é absurdo porque os velhos anarquistas na verdade estão ligados a lutas de a muito ultrapassadas. Isso é verdade. O movimento anarquista em si, na prática deu seu último suspiro em 1939 na Espanha. Mas uma lição fundamental ficou. A de como não fazer as coisas.

Todos os anarquistas previram o fracasso do socialismo autoritário e eram críticos ferozes da democracia “burguesa”. Embora fossem tidos como simples ideólogos de gente simplória, aliados do “Lumpenproletariat” e visionários na contra-mão da história, eles viram algo que os instruídos marxistas não perceberam.

Eles deduziram que o capitalismo poderia sobreviver à tomada de poder por uma pretensa vanguarda do proletariado, organizada em partidos políticos e/ou revolucionários. Perceberam a necessidade de se criar alternativas econômicas ao sistema de produção capitalista. Anteviram a necessidade de organizações baseadas no mutualismo e no cooperativismo.

O curioso é que as próprias corporações globais se apropriaram de muitas dessas idéias, só que como maneira de desmontar o velho capitalismo industrial. Expressões como “descentralização”, estímulo ao trabalho “individualizado”, estruturas empresarias “federadas” e em “redes” e até o estímulo direto à montagem de cooperativas como forma de terceirização, hoje são parte do novo arsenal do capitalismo informacional.

Dentro dessa nova realidade, somente o socialismo libertário tem meios de superar o impasse que se coloca ante os desafios de um capitalismo também liberto das amarras do estado nacional, e armado com novas tecnologias, que lhe permitem não só sobreviver a um pretenso “torpor”, mas de fato se impor como o verdadeiro poder mundial.

Notas:

(1) Tom Lewis – “O Império contra-ataca”. - Artigo publicado na edição de número 6 da revista Marxismo Vivo.

(2) KURTZ, Robert – “Marx depois do marxismo”

(3) KURTZ, Robert – “O Torpor do Capitalismo - Chega ao fim o mito da expansão ilimitada do mercado”

(4) PROUDHON, Pierre Joseph – “Idéias Gerais sobre a revolução do século XIX” - 1851


   

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