Liberdade, igualdade e trabalho
A dificuldade em equacionar o problema da liberdade em
relação à igualdade se deve as tentativas de solucionar a questão sem seu
elemento mediador: O trabalho.
Pergunte a uma pessoa do povo, escolhida ao acaso, o que mudaria em sua vida
caso ganhasse sozinha o maior prêmio de uma loteria. As respostas, entre um
sonho de consumo e outro, seriam provavelmente do tipo “largaria o maldito do
meu emprego”, “mandaria meu chefe para aquele lugar”, “nunca mais trabalharia”,
etc.
Poderia resumir tudo numa única frase: “Eu seria livre e viveria igual aos
ricos”. Será que todos concordariam? Depois de algumas tímidas considerações
moralistas e de fundo religioso, todos estariam de acordo. Por que?
Estamos considerando que nosso personagem não está num presídio e não vive em um
país totalitário. Nesse caso, para todos os efeitos, ele já é um “homem livre”.
Porque ele não se considera “igual” aos ricos, dispensa maiores comentários.
Por que associamos com facilidade o dinheiro como pré-condição à liberdade se já
somos “livres”? Por que todos concordam que só pode ser “igual” aos ricos, quem
também passe a ser rico, por receber subitamente uma grande soma em dinheiro?
Sim, porque dizer que “terei o que os ricos têm” ou “viverei igual á um rico”
são sinônimos.
Um conservador responderia que isso é tolice. Todos nós já somos livres e iguais
numa democracia e numa economia de mercado. O dinheiro apenas “facilita” a vida.
Um revolucionário responderia que de fato não temos nenhuma liberdade nem
igualdade, tudo não passa de invenção “burguesa”.
Nesse caso o conservado teria de explicar porque existe a percepção clara de que
quem trabalha não é livre. O revolucionário teria de explicar como uma simples
soma em dinheiro transforma um “João-ninguém” em um homem livre e igual aos
ricos. Para jogar na loteria, o sujeito tem que ser livre, e para receber o
prêmio, tem de ter direitos iguais aos de todos.
A questão então está que de fato tanto o conceito de liberdade quanto o de
igualdade tem de ser interpretados de forma relativa. E essa relatividade seria
função do conceito de trabalho.
Notamos que os defensores dos sistemas de “livre mercado” argumentam que a
igualdade só pode ir até o nível da “igualdade política” ou da “igualdade de
oportunidades”, porque do contrário eliminaria a liberdade. Ninguém que seja
obrigado a ser igual aos outros, pode ser livre.
Os defensores dos sistemas “igualitários” argumentam que a liberdade é que tem
de ser limitada ao interesse coletivo, do contrário, o exercício da liberdade
completa fatalmente levará ao estabelecimento de desigualdades de todo tipo.
Ninguém pode ser completamente livre, sem deixar de ser igual aos outros.
Está claro que as duas afirmações são verdadeiras. A experiência histórica tem
demonstrado que as sociedades individualistas (capitalistas) tendem para a
desigualdade mais brutal, ao passo que as experiências igualitárias (comunistas)
sempre tendem para o totalitarismo mais tirânico.
A única saída para o dilema é reduzir a questão a um terceiro termo. A obrigação
ou não de trabalhar e o tipo de trabalho que alguém exerce é o que determina seu
grau de liberdade e de igualdade dentro de uma comunidade. O problema é que o
próprio conceito de trabalho por sua vez é ambíguo. Para muitos o trabalho é uma
tortura enquanto que para outros chega a ser um verdadeiro prazer.
Devemos notar, por exemplo, que a prática de um hobby em muitos casos pode
exigir trabalho minucioso, exaustivo e até arriscado. No entanto as pessoas se
entregam a essas atividades com prazer. Nesse caso, podemos usar a brilhante
solução de Hannah Arendt, que estabelece uma clara distinção entre “labor” e
“trabalho”.
Tomando algumas “liberalidades” em relação às definições da autora, (1) podemos
dizer que labor seria toda a atividade humana “necessária” a seu sustento,
enquanto que trabalho, poderia ser um conceito mais abrangente no sentido de
definir qualquer atividade útil.
Nesse caso, o homem submetido à “necessidade” do labor, não é livre. E não sendo
livre, não pode aspirar a “verdadeira” igualdade. Por outro lado, o homem que
não tem de “laborar” mas apenas “trabalhar”, caso queira, é de fato livre e por
isso pode ser “igual” a outros nas mesmas condições.
Explicando: Considerarmos dois níveis de liberdade, um que vai apenas até o
direito de dispor de si próprio, como ser privado, e outro que começa justamente
quando podemos exercer a liberdade na esfera pública. Assim teremos a liberdade
“privada” e a liberdade “publica”.
Assim, por exemplo, a liberdade de não trabalhar, e conseqüentemente passar
fome, é uma liberdade privada e pode ser exercida por um mendigo. Já a liberdade
pública só pode ser exercida através do dinheiro. Quando decidimos se iremos
morar num apartamento ou numa casa, essa é uma escolha pública, porque de
qualquer modo, teremos de comprar um imóvel de alguém.
Também consideramos que a igualdade pode ser dividida em dois níveis, um que vai
até a igualdade na necessidade, e outro que começa a partir da superação da
necessidade. Assim também teremos a igualdade entre “necessitados”, e a
igualdade “verdadeira”, entre aqueles que podem se dar ao luxo de deixar suas
diferenças de lado exatamente porque não sofrem a pressão da necessidade.
Então, por exemplo, um grupo de pessoas desempregadas, numa fila para disputar
uma única vaga, são iguais porque todos compartilham da mesma necessidade, um
posto de trabalho. Mas serão forçados a competir entre si por ela. Os
passageiros de um transatlântico de luxo, ao contrário, podem desfrutar da
igualdade verdadeira porque não precisam competir por cabines onde dormir ou por
lugares nas mesas de refeição. Ninguém irá se incomodar de comer a mesma comida,
beber a mesma marca de cerveja e estar sujeito aos horários do navio.
Lembremos que esse raciocínio tem sempre o “labor” como parâmetro fundamental.
Porque o trabalho pode ou não ser exercido por alguém que goze da liberdade
“pública”.
Conclusão: Os sistemas individualistas desconsideram que apenas a igualdade na
necessidade impede a liberdade pública. Só podem garantir portanto, a liberdade
privada, onde o sujeito é livre para passar fome e morar debaixo de um viaduto.
Os sistemas coletivistas desprezam o fato de que apenas a liberdade privada
impede a verdadeira igualdade. Assim só podem garantir a igualdade na
necessidade, onde os indivíduos têm de se contentar em compartilhar os talões de
racionamento, as filas para adquirir bens que podem durar anos, etc.
A solução portanto seria que todos pudessem simultaneamente gozar da liberdade
pública e da igualdade verdadeira. Só que tudo isso depende da libertação do
homem do labor. O que até agora nenhum sistema de organização das sociedades
pode fazer.
Isso explica de um lado o fracasso das experiências socialistas, porque sem se
libertar do labor, o proletariado não podia gozar da igualdade verdadeira.
Também explica a atual crise social, que parece aumentar, à medida que o
capitalismo neoliberal avança e aumenta a riqueza geral, mas deixa muitos
reduzidos apenas à liberdade na necessidade.
Se talvez a tecnologia, ao invés de multiplicar o volume de bens de consumo, que
poderão não ter compradores em futuro não muito distante, for usada em larga
escala para livrar o homem do labor, ai sim, poder-se-iam realizar as promessas
dos sistemas políticos.
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Notas:
(1) Hannah Arendt – “A Condição Humana” – 10ª Edição – Pág. 15