A Economia Solidária é uma alternativa ao capitalismo global?
As organizações que tem por base os princípios da Economia
Solidária seriam uma alternativa a globalização neoliberal ou apenas uma forma
de solução de emergência para o problema do desemprego e da exclusão social?
A questão de se estabelecer a possibilidade de
projetos como o da Economia Solidária como alternativa a globalização promovida
sob o paradigma neoliberal implica em algumas considerações fundamentais. A
principal é sem dúvida, definir o alcance e ao mesmo tempo os limites dessas
idéias. Nas palavras de José Maria Pereira:
“A crítica ao projeto alternativo representado pela ‘economia solidária’
fundamenta-se no caráter de emergência que geralmente está por detrás da
constituição dos empreendimentos cooperativados, o que, quase sempre, tem levado
a uma perda da qualidade (ou direitos dos trabalhadores) dos empregos por eles
gerados. Na prática, a maioria dessas experiências podem ser classificadas mais
no terreno das alternativas de subsistência (para aqueles que são colocados à
margem pelo sistema) do que propriamente como um projeto alternativo ao
capitalismo. E daí? É melhor do que morrer de fome, responderia alguém com um
mínimo de senso prático! Nesse caso, o projeto da ‘economia solidária’ seria
reduzido a suas exatas proporções, isto é, um paliativo”.(1)
Outro aspecto muito importante é separar as iniciativas legitimas no sentido de
estabelecer o cooperativismo da formação de supostas cooperativas que nada mais
são do que operações de terceirização disfarçadas. Citando novamente Pereira:
“Tais cooperativas nascem ‘de cima para baixo’, conduzidas pela mão dos governos
estaduais, que arcam com os custos do período de treinamento, selecionam quem
vai trabalhar na cooperativa e até ministram um curso rápido sobre os princípios
do cooperativismo. Para colocar em operação uma cooperativa (...) o estado
constrói o pavilhão e a empresa entra com as máquinas e matérias-primas”. (2)
O resultado é que os operários passam a ganhar em torno de um salário mínimo não
tem direito a férias nem a 13º salário. Em resumo, o “cooperativismo”
simplesmente não existe. Trata-se apenas de a empresa reduzir salários e se
livrar de encargos sociais, enquanto os estados, além de assumir custos, ainda
se tornam cúmplices numa forma escancarada de burlar a legislação trabalhista.
Em outros casos, a autogestão surge como tentativa desesperada de salvar uma
empresa falida. Nesse caso, a cooperativa formada pelos empregados tem de
assumir a responsabilidade de viabilizar um negócio que os investidores
capitalistas, com todo o seu conhecimento e experiência de mercado, não
conseguiram. É claro que o novo empreendimento só poderá funcionar com subsídios
governamentais. Ai a crítica é de que o poder público está simplesmente fazendo
filantropia, o que é correto.
Então podemos concluir que a ES não é uma tentativa séria de superação do atual
modelo econômico? Não é bem assim. A questão está justamente em que até o
momento, as experiências de ES só atraíram pessoas excluídas do mercado de
trabalho capitalista. E sempre para projetos cujo objetivo é a sobrevivência a
curto prazo. Em resumo os princípios da ES até agora só interessaram aos
“perdedores” do jogo da economia de mercado.
Por que isso ocorre? A resposta é relativamente simples. O cooperativismo como
um modo de organização e uma ideologia, foi simplesmente ignorado a partir do
aparente sucesso do socialismo autoritário e do capitalismo industrial de
concepção “fordiana”. De um lado a classe trabalhadora acreditava (ou era
obrigada a acreditar) que era dona dos meios de produção. Através das
“democracias populares”, de fato podiam contar com um certo padrão de vida
mínimo, sempre com a promessa de grandes melhorias futuras.
De outro o “estado de bem estar social” (welfare state) garantia empregos à
quase todos e uma extensa rede de proteção social. Sendo assim, para que
procurar alternativas? O desemprego era um fenômeno que atingia apenas minorias
sem cultura. A exclusão social só existia em países do terceiro mundo. Pessoas
cultas e dispostas a trabalhar sempre conseguiriam um bom emprego e mais tarde
uma confortável aposentadoria.
Essa idéia ainda persiste. Apesar das evidências em contrário, muitos acham que
a ameaça do desemprego e da exclusão social não lhes diz respeito. Foi assim,
por exemplo, quando do início do sindicalismo. Muitos operários acreditavam que
era um insulto a sua honra ter de se juntar em “bandos” para reivindicar
salários e benefícios. Empregados de escritórios resistiam obstinadamente a se
juntar a seus colegas “com as mãos sujas de graxa”.
Mas a percepção de que as coisas estão mudando rapidamente e para (muito) pior,
já deixou de ser um fato restrito a operários com baixa escolaridade. A
constatação de que milhares de pessoas com cursos superiores estão trabalhando
em atividades informais ou em empregos antes considerados exclusivos para
trabalhadores humildes, começa a despertar a todos para a realidade.
As tecnologias de informação aliadas às telecomunicações viabilizaram o que
convencionamos chamar de capitalismo informacional. Nesse novo paradigma, a
automação e a informatização dos processos e a terceirização, o downsizing e
outras técnicas gerenciais, tornam a mão-de-obra um fator cada vez mais
secundário. A “exportação de empregos”, mesmo de setores considerados de alta
tecnologia, para países do terceiro mundo, acendeu o sinal amarelo para muitos
que se sentiam seguros.
Segundo estudos recentes, “o estado emocional dos funcionários de TI (Tecnologia
de Informação) tem sido a causa de grande preocupação para as empresas, revela
uma pesquisa realizada pelo Meta Group com 650 companhias. A pesquisa mostra que
o baixo astral combinado com as equipes mais enxutas, os menores investimentos
em projetos e a percepção de que as empresas não estão preocupadas em manter seu
quadro de funcionários, afeta diretamente a produtividade dos funcionários”. (3)
Em outras palavras, “caiu a ficha” mesmo entre os profissionais mais bem pagos,
mais instruídos e considerados insubstituíveis. Será que essas pessoas continuam
achando que cooperativas e ES são coisas para quem trabalha em “reciclagem de
lixo”? Por outro lado, os estados nacionais aderiram alegremente no campeonato
onde quem ganha é quem oferece a população mais instruída e disciplinada pelos
menores salários. Os países mais “competitivos” são os que têm as leis sociais
mais “flexíveis”. Os mais entusiasmados são os governos “esquerdistas” e os
países comunistas como a China e o Vietnã.
Nesse ambiente, o cooperativismo surge como opção para pessoas que podem de fato
fazer diferença. Uma cooperativa de profissionais de TI, da qual participem
profissionais capazes de competir com a Microsoft, e de se federar a outras em
nível global, é muito diferente de uma organização local cujo objetivo é
empregar agricultores sem terra, por exemplo.
Tal cooperativa atrairia imediatamente inúmeras pessoas talentosas e
promissoras. Poderia se envolver em projetos realmente viáveis. Atrairia crédito
em forma de capital de risco com facilidade, como já ocorreu com as empresas
“ponto com”, onde a aposta era na criatividade de alguns hackers, e não em
máquinas ou imóveis.
Não devemos nos esquecer que desde as máquinas a vapor, a verdadeira fórmula de
sucesso do capitalismo são as pessoas com espírito inovador e empreendedor. Os
banqueiros e industriais simplesmente sabem usar suas idéias para ganhar
dinheiro. Nunca como agora, o capital esteve tão dependente da informação e da
capacidade de inovação.
Nada impede que uma cooperativa assuma a mesma postura de incentivar e premiar a
iniciativa e a criatividade. Não há razão para que seus cooperados não se sintam
estimulados. Se você cria um software genial para uma empresa, por que não para
a sua cooperativa? Se suas análises financeiras enriquecem um banco, por que não
poderia aumentar o fundo mútuo da sua própria organização?
Além disso, numa cooperativa não existem demissões, nem “reengenharia” e nem
fusões que só beneficiam os acionistas. Se a produtividade aumenta, o ganho se
transforma em benefício para todos e não em lucro para alguns.
Portanto, a verdadeira questão é levar o conceito de Economia Solidária às
pessoas certas: Os criadores de novas tecnologias, os técnicos e cientistas, os
especialistas e gerentes, enfim, aos verdadeiros responsáveis pelas fontes de
geração de riquezas. Num mundo cada vez mais hostil ao trabalhador, mesmo aos
“vencedores”, a opção é cada vez mais atraente.
Notas:
(1) PEREIRA, José Maria – “Cooperativas De Trabalho: Flexibilização Ou
Degradação Do Trabalho”.
(2) Idem.
(3) “Baixo astral na equipe de TI preocupa, diz estudo” - Silvia Balieiro, da
INFO.