Capitalismo industrial e utopias socialistas autoritárias
Existe uma forte correlação entre as formas de organização da produção do
capitalismo industrial e as formulações utópicas de todos os tipos que
pretendiam reforma-lo ou substitui-lo.
Quando analisamos a evolução do modo de produção capitalista sempre nos
deparamos com a passagem de um sistema descentralizado, formado por artesãos,
cooperativas, guildas e hansas, para as organizações fortemente centralizadas ao
redor da fábrica da primeira revolução industrial.
Isso ocorreu porque a fonte de força/movimento dessas industrias, normalmente
motores a vapor, era espantosamente cara e de grandes dimensões. Essa
característica obrigava a que um complexo sistema de correias de transmissão
levasse a força da máquina central para todo o conjunto de máquinas, como os
teares mecânicos, por exemplo, que tinham de ficar a pequenas distâncias.
Em segundo lugar, a necessidade de amortização do investimento, obrigava ao uso
ininterrupto de toda a maquinaria. Alem disso, como só havia um ou alguns
motores, eles não podiam ser desligados sem que todo o sistema parasse.
Vem dai a necessidade da organização da mão-de-obra em esquemas altamente
organizados e disciplinados. Os operários deveriam se adaptar ao ritmo das
máquinas tanto quanto possível. Uma estrutura burocrática e de controle deveria
existir com a função de garantir a manutenção de um perfeito sincronismo entre
turnos de trabalho, distribuição de funções e tarefas e o inexorável movimento
da maquinaria.
Todo um complexo sistema de teorias de administração e gerenciamento, com
evidentes conseqüências políticas, foi elaborado para se garantir a mais alta
produtividade possível desses recursos. Muitas dessas idéias persistem até hoje.
A segunda revolução industrial, que introduziu os motores elétricos, bem mais
baratos e menores, levou em torno de 30 anos para influenciar as técnicas de
produção industrial e até recentemente, não tiveram grande impacto no pensamento
centralizador das burocracias corporativas.
Assim, os diversos pensadores e filósofos que pretendiam reformar ou superar o
sistema de produção capitalista, na verdade, acabaram por incorporar essas
mesmas idéias. Isso se deve a dois fatores básicos:
O primeiro foi à associação entre a visão de fábricas barulhentas e enfumaçadas,
trens e navios a vapor e iluminação a gás, com o progresso e a modernidade, em
contraposição à vida sossegada, mas atrasada e pouco produtiva das áreas rurais.
O segundo foi à identificação entre a adaptação dos trabalhadores com o
funcionamento ordenado e previsível das máquinas a uma forma mais moderna,
produtiva e científica de viver. A brutal disciplina imposta pelas necessidades
da produção foi confundida com um ideal de sociedade organizada e pacífica.
Também se pode acrescentar que a imensa maioria dos reformadores e
revolucionários desse período, vinham das classes sociais superiores e jamais
trabalharam em fábricas. Desse modo, criticavam os baixos salários, as longas
jornadas de trabalho, o emprego de crianças, a prepotência dos patrões ao
contratar e demitir, etc. Apontavam as conseqüências sociais como o alcoolismo,
a desorganização das famílias, a alienação, a falta de religião, etc. Mas
aceitavam as fábricas como realidade imutável.
Isso explica a multiplicidade de sistemas utópicos que passaram a se basear não
só na aceitação da subordinação do ser humano às máquinas, mas foram muito mais
longe e propunham a construção de sociedades inteiras regidas e governadas
segundo esses critérios. Os socialistas não escaparam dessas tendências.
Outra conseqüência evidente das necessidades da produção centralizada está na
necessidade de padronizar primeiro o modo como os trabalhadores executavam suas
tarefas, depois o tempo gasto nelas e finalmente o próprio comportamento
pessoal. Um operário individualista e cheio de idéias próprias não é bem vindo
em um processo mecânico e impessoal.
Novamente os utopistas acabaram por confundir os ideais de igualdade entre os
seres humanos com um coletivismo forçado, ditado pelas necessidades da produção
capitalista. Dessa época vem os uniformes, as casa idênticas, as organizações
comunitárias de cunho educacional, religioso ou filantrópico. Por toda parte o
individualismo era reprimido entre os operários.
Quando as massas foram finalmente incorporadas ao mercado consumidor, tiveram de
ser convencidas a adquirir os produtos fabricados em série. Novamente os gostos
individuais eram um inconveniente aos sistemas de produção da época ainda
incapazes tecnologicamente de gerar variedade de formas, cores, sabores,
estilos, etc.
É nesse ambiente que nasceu o “socialismo científico”. Os intelectuais e
políticos socialistas passaram a crer que os métodos de trabalho e o
comportamento padronizado imposto à classe operária eram na verdade um grande
avanço para a humanidade. O único problema estava em definir a propriedade sobre
as instalações onde esses processos de desenvolviam. Tudo se resumia à revolução
e a tomada de poder pela “vanguarda” do proletariado, ou seja, os intelectuais
que tudo sabiam.
Considerações sobre a liberdade individual, identidades culturais e nacionais, e
preservação do meio ambiente, foram relegados à categoria de assuntos
irrelevantes e em muitos casos catalogadas como idéias “contra-revolucionárias”.
Construiu-se assim uma utopia extremamente autoritária. Às exigências do
capitalismo industrial, foram acrescentadas as da “construção do socialismo”.
A liberdade passou a ser confundida com uma idéia abstrata de que os
trabalhadores eram donos de seu destino, porque afinal de contas, possuíam os
meios de produção. Os camaradas comissários serviam apenas para “orienta-los”. A
igualdade passou a ser a aceitação de rígidos códigos de comportamento e consumo
padronizados.
O surgimento do capitalismo informacional, que se baseia nas novas tecnologias
de informação e telecomunicações, modificou novamente os modos de produção,
desta vez em sentido inverso, ou seja, promovendo a descentralização e a
terceirização dos processos industriais e de prestação de serviços. As máquinas
modernas e os computadores são muito mais baratos por unidade, permitindo que
pequenos e médios empreendedores possam adquiri-los e explora-los.
As grandes unidades fabris da atualidade se limitam à montagem de produtos com
peças fabricadas literalmente pelo mundo todo. O gerenciamento dos grandes
sistemas de produção e comercialização pode ser feito de qualquer lugar.
Dentro desse novo ambiente, a palavra de ordem é o produto e/ou serviço
“personalizado”, na verdade uma simples conseqüência do aumento da capacidade
técnica de se produzir bens e disponibilizar serviços de forma flexível.
Uma das maiores indústrias da atualidade, a de software, é muito parecida com a
atividade dos velhos artesãos. Não é por acaso que essa é uma indústria onde os
trabalhadores têm os horários mais flexíveis, trabalham em casa ou até em locais
exóticos como cabanas em áreas florestais.
O novo trabalhador é incentivado a ser criativo e a gerar inovações, e a
qualidade mais apreciada é a iniciativa individual combinada a capacidade de
trabalhar em equipes. O novo consumidor é aconselhado a seguir livremente suas
próprias tendências em qualquer campo. Da escolha entre uma infinidade de cores
e acessórios para seu carro as suas preferências sexuais.
É claro que nem tudo são flores, existem graves problemas no caminho como, por
exemplo, o do desemprego causado pela própria tecnologia e os novos métodos
gerenciais. Logo esse ambiente levará a concepção de novas utopias sociais.
Nesse caso, as idéias anarquistas são as que melhor se adaptam como candidatas
ao papel de ideologia de contestação a ordem vigente. Isso porque a pulverização
do antigo proletariado em grupos com interesses muito divergentes, só lhes deixa
em comum a luta contra o absolutismo do capital.
Essas velhas idéias libertárias e igualitárias tem agora, como nunca, sua chance
de se contrapor à globalização dirigida pelo capitalismo neoliberal, ele próprio
à reencarnação de idéias ainda mais antigas.
Somente o socialismo não autoritário pode se opor à ideologia do individualismo
e da competição predatórios, e do consumo desenfreado, elevado a condição de
nova religião. Esperemos que os novos pensadores não repitam o erro dos antigos
socialistas e evitem cair na armadilha de incorporar as premissas de seus
adversários á sua própria ideologia.
Esse perigo existe, especialmente no que se refere ao fato de o novo capitalismo
global tender a se opor à família patriarcal, a religião dogmática e ao estado
nacional com a mesma ênfase que os anarquistas, só que com objetivos muito
diferentes.
O princípio da verdadeira igualdade não é incompatível com o respeito à
individualidade e as infinitas variedades das aspirações dos seres humanos.