Anarquismo e liberalismo, convergências e contradições


Um estudo atento do anarquismo mostra várias convergências com as idéias econômicas liberais. A contradição insuperável, nos dois casos, é a questão da propriedade privada.

Em uma cronologia da vida e obra de Pierre-Joseph Proudhon, somos informados que ele em 1828 se dedica a numerosas leituras. “’Os meus verdadeiros mestres,’ declara em 1848 ao amigo J.-A. Langlois, ‘quero dizer aqueles que fizeram nascer em mim idéias fecundas, são em número de três: a Bíblia em primeiro lugar, Adam Smith em seguida e finalmente Hegel’”. (1)

Sabemos que Adam Smith está longe da defesa intransigente dos privilégios do capital como demonstra, por exemplo, sua observação de que: “As leis das corporações (de oficio), porém, restringem menos a livre circulação do capital de um local para outro do que a do trabalho; é sempre muito mais fácil a um rico comerciante obter privilégio de comerciar numa cidade corporativizada do que a um pobre artífice trabalhar nela”.(2)

Poderíamos citar um número considerável de textos anarquistas onde a crítica ao despotismo do Estado, corresponde perfeitamente às mesmas denuncias de mazelas dos governos, feitas pelos defensores do livre mercado.

De onde viria essa convergência de idéias em movimentos aparentemente tão contraditórios? Nicolas Walter nos dá uma pista ao afirmar que: “O primeiro tipo de anarquismo que foi mais que simplesmente filosófico foi o individualismo. É a idéia que a sociedade não é um organismo, mas uma coleção de individualidades autônomas que não tem nenhuma obrigação para com a sociedade, mas apenas umas para com as outras”.(3)

Por outro lado, a primazia do indivíduo sobre o Estado, está na base de toda a ideologia liberal. A principal conclusão de Smith, em sua obra prima, é a de que se cada indivíduo cuidar de seus próprios interesses, sempre se obterá um melhor resultado do que qualquer sistema de regulamentação coletivo, por mais bem intencionado que seja.

Sabemos que as corporações de ofício, guildas e hansas, tão criticadas por Smith, foram criadas por inspiração religiosa, e gozavam de enorme prestígio junto a Igreja. As restrições e/ou proibições ao emprego de capitais, tinham a mesma origem.

O fato de os pensadores liberais, enquanto indivíduos, se assumirem como “tementes a Deus” e obedientes à autoridade constituída, não nos deve iludir. Embora neguem isso, a ênfase no papel do indivíduo, e na onisciência do mercado, síntese da racionalidade dos interesses humanos, elimina qualquer tipo de idealismo, e portanto só pode se apoiar no mais puro materialismo.

Mas segundo Bakunin, por exemplo, os liberais seriam idealistas, em suas palavras:

“Os idealistas de todas as escolas, aristocratas e burgueses, teólogos e metafísicos políticos e moralistas, religiosos, filósofos ou poetas, sem esquecer os economistas liberais, adoradores desmedidos do ideal, como se sabe, ofendem-se muito quando se lhes diz que o homem, com sua inteligência magnífica, suas idéias sublimes e suas aspirações infinitas, nada mais é, como tudo o que existe neste inundo, que um produto da vil matéria”.(4)

Nada pode ser mais incoerente do que definir como idealista, alguém que prega como guia infalível da sociedade, o apego dos indivíduos aos seus mais claros interesses materiais. Quando se lê nas entrelinhas, percebemos que para o liberal, o dinheiro é o único Deus e o mercado seu único profeta.

Por outro lado, para a imensa maioria dos liberais, os anarquistas seriam apenas um tipo meio indefinido de “comunista”. Isso se deve ao fato de que a versão coletivista do anarquismo de Bakunin, de fato se aproximava das idéias do socialismo autoritário de Karl Marx.

Quanto à relação com o Estado, vemos que o “programa anarquista” de Malatesta é relativamente pragmático. Em suas palavras:

“Visto que o governo detém, hoje, o poder de regular, por leis, a vida social, ampliar ou restringir a liberdade dos cidadãos, e visto que ainda não podemos arrancar-lhe esse poder, devemos procurar enfraquecê-lo e obrigá-lo a fazer uso dele o menos perigosamente possível”.(5)

Isso não se diferencia em nada dos esforços dos liberais, em todas as épocas, para esvaziar o poder das estruturas do Estado. Mas logo a seguir, Malatesta acrescenta:

“Mas, esta ação, devemos fazê-la sempre de fora e contra o governo, pela agitação na rua, ameaçando tomar pela força o que se exige. Jamais deveremos aceitar uma função legislativa, seja ela nacional ou local, pois, assim agindo, diminuiríamos a eficácia de nossa ação e trairíamos o futuro de nossa causa. A luta contra o governo consiste, em última análise, em luta física e material”.(6)

É óbvio que para enfrentar uma estrutura organizada e hierarquizada, “em luta física e material”, só existe um meio: Criar outra estrutura com as mesmas características. Foi o que os marxistas fizeram. Seu conceito de partido único, com seus revolucionários profissionais e sua estrutura hierárquica, resultou obrigatoriamente em outro Estado. O Estado totalitário do “socialismo real”.

Por sua vês, a apropriação constante da “função legislativa” por parte dos liberais, os expôs as eternas tentações do poder, traindo assim o “futuro da causa”. As tentativas de “regulamentar a desregulamentação” também só podia resultar em uma nova rodada de regulamentações, misturando-se liberalismo com interesses puramente corporativos e/ou particulares. Disso resultou o Estado capitalista moderno.

Existiria uma forma de conciliar essas duas posições? Creio que só solucionando a divergência fundamental que é a questão da propriedade privada, que nos dois sistemas, constitui uma contradição aparentemente insolúvel. Tanto a defesa intransigente quanto à condenação total do direito à propriedade, leva a becos sem saída do ponto de vista teórico.

Senão vejamos: Para os anarquistas, a contradição está em que, em muitos casos, a propriedade é um direito, e portanto nega-lo, é uma clara forma de autoritarismo. Para os liberais, é impossível negar que o direito irrestrito a propriedade, acaba por submeter à maioria ao arbítrio de uma minoria, eliminando a liberdade individual dos primeiros.

Mas sabemos que as atuais condições objetivas, vigentes no início do século XXI, são muito diferentes daquelas que assistiu ao nascimento desses e de outros tantos movimentos sociais. Por toda o mundo civilizado a ciência e o racionalismo triunfaram, reduzindo as instituições religiosas a um papel meramente decorativo. Os Estados nacionais se enfraquecem cada vez mais diante da globalização, da economia, da cultura e da própria política de formação de grandes blocos de países.

Portanto o desafio não é mais o monarca despótico nem a Igreja obscurantista, e sim os abismos sociais, provocados exatamente pela incapacidade de distribuição eqüitativa de renda.

É claro que não se pode falar em bobagens como “anarco-capitalismo”. Isso equivale à tentativa de convergir idéias voltando-se para o passado das duas ideologias. O importante é perceber o que existe em comum, do ponto de vista prático.

Tanto liberais como anarquistas tem especial ojeriza aos regimes baseados no autoritarismo. Ambos valorizam a liberdade individual acima de qualquer coisa. Convenhamos que não são pontos de convergência negligenciáveis.

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Notas:

(1) PROUDHON, Pierre-Joseph – Do Princípio Federativo – Ed. Imaginário – Pág. 21
(2) SMITH, Adam – A Riqueza das Nações - “Os Pensadores” – Abril cultural – Vol. XXVIII – Pág. 116
(3) WALTER, Nicolas – As Diversas Correntes do Anarquismo – Texto obtido em http://www.anarquismo.org
(4) BAKUNIN, Mikhail – Deus e o Estado – Editado por Luiz Carlos Cichetto – Pág. 6
(5) MALATESTA, Errico – Escritos Revolucionários – Texto obtido na Internet - Programa Anarquista - 4. A luta política
(6) Idem.

  

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