Anarquismo, hackers, economia solidária e capitalismo informacional.


Dentro do novo paradigma informacional, as idéias libertárias dos hackers e a economia solidária podem se tornar exemplos e embriões das verdadeiras vias para uma revolução anarquista global.


Já tivemos oportunidade de abordar a questão da revolução anarquista em nossos artigos anteriores. Tentamos mostrar que se de um lado, uma revolução em estilo clássico, conforme as idéias do socialismo autoritário é impossível na nova realidade, a revolução feita de “cima para baixo e de dentro para fora” baseada nos ideais anarquistas, principalmente no Principio Federativo, é perfeitamente viável.

Tratamos do assunto em termos macroeconômicos e do ponto de vista estratégico, baseando-nos nas seguintes premissas:

• A crise dos estados nacionais, torna a tomada de poder por partidos políticos, seja qual for a sua orientação, um fato cada vez mais irrelevante. As recentes vitórias eleitorais de partidos de esquerda em todo o mundo só servem para que os mesmo sejam acusados depois de “traidores”. Países com estados autoritários como Cuba e Coréia do Norte não são mais combatidos e sim “desconectados” das redes globais.
• O verdadeiro poder está agora nos fluxos de capitais, que se deslocam à vontade em busca de lucros ao longo do novo sistema de produção em rede. Nem mesmo os governos de países vistos como imperialistas tem controle sobre esse processo.
• A nova configuração da produção em redes de empresas de origens, tamanhos e organização das mais variadas, permite a inserção de unidades produtivas, organizadas de forma igualitária, sem choques econômicos com unidades organizadas em torno da busca do lucro.

Faltou é claro, definir o que vem a ser uma unidade produtiva organizada de forma igualitária. Se não partirmos de experiências reais e viáveis, corremos o risco de nos transformarmos em meros diletantes, exegetas eternos de textos do século 19.

Dois modelos podem ser destacados como protótipos do que pode vir a ser a base material da aplicação do Principio Federativo á economia global: As idéias hackers e a Economia Solidária. As duas idéias na verdade são complementares.

Antes de tudo, precisamos nos desfazer de certos conceitos que se cristalizaram, especialmente junto a pensadores de esquerda. Nas palavras de Melo Lisboa: “Em primeiro lugar, é importante diferenciar” sociedade de mercado “de” sociedade com mercado “. Capitalismo e Mercado não são sinônimos. O espaço do mercado, das trocas, sendo tão antigo quanto a própria humanidade, é anterior ao capitalismo e provavelmente sobreviverá ao mesmo (se alguém sobreviver). A superação da sociedade de mercado não significa a eliminação dos mercados”.(*)

Avançando em sua explicação teórica sobre a ES (Economia Solidária), Melo Lisboa resume brilhantemente o que tentamos dizer em nossos artigos anteriores: “Assim como a homeopatia, a ES parte do princípio da cura por semelhança de sintomas:”similia similubus curentur". Ou seja, o mal se cura através de agentes que produzem sintomas semelhantes (o veneno se combate com veneno). Ora, a ES usa, a partir de doses mínimas (da pequena escala, do local), "homeopáticas", o mercado, a empresa, o dinheiro, como principais instrumentos da sua luta anti-sistêmica”. (**)

Isto posto, vamos nos deter um pouco sobre a ideologia hacker, veremos mais adiante o porque disso. Os primeiros hackers surgiram nas décadas de 60 e 70 no MIT. Eram programadores de computadores que desenvolviam compiladores e linguagens de programação. Embora não fossem expoentes da contracultura, foram fortemente influenciados por ela, devido ao ambiente acadêmico da época.

Adotaram como princípio básico a idéia de disponibilizar suas descobertas para todos os membros da comunidade de pesquisadores. Isso era feito através da publicação dos códigos fonte de seus programas. Dai surgiu o modelo de “código aberto” em oposição ao “modelo proprietário”, adotado pelas empresas comerciais.

Richard Stallman fundou a Free Software Foundation de onde vem procurando defender estes ideais. Linus Torvalds, o criador do Linux, é um de seus mais famosos seguidores. Ocorre que, quando surgiram os primeiros sinais de que haviam pessoas mal intencionadas “invadindo” sistemas comerciais e governamentais, com propósitos pouco claros, os responsáveis foram logo chamados de hackers porque a palavra hack já estava totalmente associada a “feras” da computação.

O surgimento dos primeiros vírus e a tentativa capciosa de criminosos digitais, pegos em flagrante, de justificar seus atos como ações “libertárias” tiveram o mesmo efeito negativo que os terroristas irresponsáveis sobre o movimento anarquista. Hacker virou sinônimo de pirata e predador digital.

Hoje se trava uma violenta batalha entre os defensores do software livre e os do modelo proprietário. Trata-se uma luta de vida ou morte, envolvendo bilhões de dólares, dentro de uma área absolutamente vital para o futuro da humanidade. È incrível a pequena cobertura que o assunto recebe fora dos círculos técnicos. Enquanto isso, as fanfarronices de Fidel Castro ou a ridícula aventura americana no Iraque são manchetes constantes na mídia.

Essa é uma luta libertária, sem dúvida, mas falta o componente político, que só poderia surgir caso os defensores do software livre estivessem lutando por sua subsistência ou por seu modo de vida, o que não é o caso.

O curioso, no entanto, é que esse conflito é um perfeito exemplo de como dois modos de ver o mundo podem coexistir e se enfrentar sem violência. Apesar da guerra declarada, milhões de usuários do Windows se comunicam pela Internet, por provedores que usam o Apache, aplicativo desenvolvido para o Linux.

A Economia Solidária por outro lado se define como “toda iniciativa econômica que incorpora trabalhadores(as) associados(as) em torno dos seguintes objetivos/características: (1) caráter coletivo das experiências (não são portanto, formas de produção e consumo individuais, típicas da “economia informal” em seu sentido estrito), (2) generalização de relações de trabalho não assalariadas, (3) exercício do controle coletivo do empreendimento (de suas informações, fluxos, rendimentos etc.), e (4) “inserção cidadã” das iniciativas: respeito ao consumidor e ao meio ambiente, participação ativa na comunidade em que está inserida, articulação política com as outras iniciativas de economia solidária, denúncia de mecanismos antiéticos de mercado etc”.(***)

Ocorre que na prática, as experiências ligadas a ES atraem, sobretudo pessoas em situação carente. São normalmente desempregados que procuram um meio de vida em cooperativas, assentamentos do MST procurando se viabilizar, operários de fábricas falidas que tentam manter seus empregos através de experiências de autogestão, etc.

Em outras palavras, falta-lhes uma dimensão econômica com envergadura suficiente para serem levados á sério pelo mercado global. É nesse ponto que a ES parece limitada. Como combinar solidariedade com tecnologia, competitividade, eficiência e marketing? Alem disso, o próprio caráter local e a pequena escala dessas experiências não as condena a insignificância?

A resposta pode estar na junção das duas idéias que acabamos de expor, sob a bandeira de uma teoria libertária bem conhecida e fundamentada: O anarquismo. Em poucas palavras: Os hackers sabem como ninguém compartilhar conhecimento e tecnologia. Os especialistas em ES conhecem a fundo o funcionamento de sistemas de autogestão e os anarquistas possuem hoje a única síntese ideológica capaz de gerar motivação e mobilização com efeitos políticos reais.

A ideologia hacker não precisa se limitar à discussão sobre software e a ES não tem de ficar restrita a comunidades carentes de regiões específicas. Vemos os profissionais bem pagos sendo expostos, cada vez com mais freqüência, as incertezas de um mercado de trabalho brutal e indiferente. O sistema de proteção social dos estados, mesmo dos mais desenvolvidos, vem se deteriorando por toda à parte.

A possibilidade de desemprego e exclusão social não está mais restrita a operários sem instrução, grupos étnicos e minorias marginalizados. Tem sido preocupação constante de pessoas com cursos universitários, pós-graduados e até mesmo de altos executivos. Então por que seriam resistentes a um novo tipo de relacionamento de trabalho alternativo?

Pequenos comerciantes têm sido varridos do mercado por gigantescas corporações varejistas. Por que não iriam aderir a novas formas de competição mais justas dentro de cooperativas?

Por outro lado, por que as comunidades carentes não devem utilizar todo o potencial das novas tecnologias de informação e telecomunicações de modo a se integrar em grandes redes afins pelo mundo afora. O que impede que centenas de pequenas cooperativas se juntem e se aliem a grandes corporações, de modo a obter escala de produção capaz de influir de fato no mercado global?

Os defensores do software livre não hesitam em se aliar a IBM e a Novell contra a Microsoft. A Microsoft não hesita em “apoiar” a Caldera, antiga distribuidora Linux, em sua guerra jurídica e suas ameaças de processos, por supostas violações de seus direitos autorais, como sucessora da SCO, contra qualquer usuário do Linux.

Em resumo: Por que não podemos ter cooperativas, baseadas na economia solidária, formadas por analistas de sistemas, economistas, engenheiros, médicos e advogados? Que tal organizações mutualistas de designers, especialistas em marketing e analistas financeiros?

Por que não organizar donos de pequenos negócios em redes de amplitude mundial? Não seria viável a formação de redes globais de pequenos agricultores tradicionais ou recém assentados, de modo a planejar e otimizar sua produção?

Quem acha que essas são idéias irreais e muito difíceis de implementar e organizar, simplesmente desconhece o novo capitalismo. Porque é exatamente assim que as corporações globais operam. Tudo se baseia na desenvoltura com que se usa a tecnologia. Desse ponto de vista, não existem diferenças entre atividades “egoístas” e “solidárias”.

Esse é o desafio para os pensadores do futuro próximo, criar uma nova síntese ideológica capaz de tornar compatíveis idéias até agora contraditórias. O futuro não irá esperar se hesitarmos.

Notas:

(*) LISBOA, Armando de Melo. “Economia Solidária: Similia, similibus curentur”.
(**) Idem.
(***) CRUZ, Antônio. “Uma contribuição Crítica às Políticas Públicas de Apoio à Economia Solidária”. Campinas, 2002. Internet www.ecosol.org.br/textos.

   

VOLTAR

Hosted by www.Geocities.ws

1