Anarquismo, individualismo e globalização.


Retomando nossas observações sobre a relação entre as idéias anarquistas e o mundo globalizado, abordaremos a questão central da diferença entre o capitalismo industrial e o informacional em seus relacionamentos com as fontes de autoridade e poder.

É fato absolutamente irrefutável que as modernas tendências do capitalismo informacional, ao contrário do capitalismo industrial, favorece o surgimento de idéias libertárias. Isso porque o capital global necessita cada vez menos das fontes tradicionais da autoridade, a saber: A família patriarcal, a religião dogmática e o estado autoritário.

Não é nenhuma novidade constatar que o capitalismo sempre viu como seus inimigos as tradicionais fontes de poder e autoridade. Isso porque, por definição, o capitalismo, embora não seja uma ideologia e sim um modo de produção, vê como única autoridade válida e fonte de poder, o dinheiro.

Devemos lembrar que o capitalismo só pode se desenvolver após o colapso do feudalismo e só pode se consolidar a partir da revolução inglesa, da independência dos EUA e principalmente após a revolução francesa. Todos esses eventos tiveram caráter libertário em maior ou menor grau.

Na prática o capitalista não se sente preso à autoridade de seus ancestrais e nem considera como questão prioritária suas relações de parentesco ou compromissos com seus descendentes. Pode ser até religioso, mas jamais limita suas ações por impedimentos impostos por autoridades religiosas. Pode ser um patriota sincero, mas coloca seus negócios sempre acima de questões nacionais ou de governo.

Então por que parece ou parecia ser o contrário? É simples, após eliminar as fontes de autoridade tradicionais em associação com outras correntes de pensamento como o republicanismo, a democracia e os vários sistemas igualitários, o capitalista se viu diante de uma contradição insolúvel. Como assegurar a posse de seus bens em um sistema de leis igualitárias, coerentes e impessoais, estabelecidas pela maioria?

Os sistemas de governo que emergiram do colapso da velha ordem tendiam perigosamente a levar a igualdade política ao campo da igualdade econômica, o que seria fatal para os que agora tinham seus privilégios baseados na posse do capital e não mais em títulos de nobreza e/ou direitos derivados do nascimento.

Para resolver a questão, era necessária uma aliança estratégica com os velhos sistemas de dominação de modo a utilizar sua simbologia, ainda poderosa, mas destituindo-os de poder real. Criou-se a figura do capitalista “conservador”, ligado a família, “temente a Deus” e acima de tudo, fanaticamente apegado às leis e as instituições do estado.

Todos os movimentos libertários que se seguiram, denunciaram essa farsa, era evidente que os laços familiares eram usados apenas para obter vantagens pessoais, as instituições religiosas, com raras exceções, passaram a servir como agencias de propaganda do capitalismo industrial e as instituições do estado foram manipuladas com desenvoltura pelo poder econômico.

Com o surgimento das novas tecnologias de informação e telecomunicações, as novas técnicas gerenciais e o novo ambiente político derivado do fim do estatismo soviético e do sucesso do neoliberalismo nos EUA e Inglaterra, essas relações perderam muito de sua importância.

O cenário atual pode ser definido da seguinte forma: Em relação à religião, nas palavras de Toynbee: “A assistência aos cultos públicos tem diminuído bastante, a crença nas doutrinas está se evaporando; a observância de conduta prescrita pelas religiões está em declínio. As pessoas não apenas desobedecem as regras, como também questionam sua validade moral. Tem havido acima de tudo, uma revolta contra as autoridades eclesiásticas”.(1)

Nas palavras de Castells: “A família patriarcal, base fundamental do patriarcalismo, vem sendo contestada neste fim de milênio pelos processos, inseparáveis, de transformação do trabalho feminino e da conscientização da mulher”. (2) Continuando, em outro capítulo: “O Estado-Nação vem sendo cada vez mais destituído de poder para exercer controle sobre a política monetária, definir o orçamento, organizar a produção e o comércio, arrecadar impostos de pessoas jurídicas e honrar seus compromissos visando proporcionar benefícios sociais”.(3)

Diante dessa realidade, com o deslumbramento causado pelas maravilhas da tecnologia e as promessas, um tanto vagas, de um futuro próximo radioso em que a riqueza estaria ao alcance de todos e o trabalho se tornaria criativo e prazeroso, muitos se deixaram levar pelos encantos da “nova economia” e pelo charme da globalização. Decretou-se o “fim da história” e a vitória final da democracia e da liberdade individual.

A organização da produção em redes globais oferece oportunidade para a negociação direta e razoavelmente eqüitativa entre pequenas empresas familiares e corporações gigantes, a descentralização geral, a formação de cooperativas de profissionais e de milhares de microempresas se assemelha muito as idéias federativas, tão caras a Proudhon e a outros pensadores libertários.

A Internet é apresentada como a demonstração mais evidente de que qualquer um pode tornar-se milionário com uma empresa “ponto-com”. A própria rede não podia traduzir melhor o conceito de sistema “sem governo”, exemplificado pelos primeiros anarquistas com os sistemas postais e ferroviários. A contenda entre o Windows e o Linux é vista como a derradeira batalha entre “proprietários” e “comunitários”, com vitória prevista para os últimos.

O desmantelamento da URSS e de todos os regimes do leste europeu, a “conversão” da China ao livre mercado e o isolamento de Cuba e Coréia do Norte, relegadas ao papel de países folclóricos com suas “dinastias comunistas”, confirmaram as antigas previsões dos socialistas libertários e anarquistas sobre o futuro sombrio do socialismo autoritário.

Muitos democratas sinceros, socialistas utópicos, comunistas arrependidos e mesmo anarquistas, começaram a deixar de perceber a verdadeira realidade. O que está de fato acontecendo é que o capitalismo agora pode descartar de vez suas máscaras e impor-se como uma verdadeira ideologia.

Assistimos ao surgimento do individualismo predatório ao invés do triunfo da liberdade individual. A competição desenfreada e destituída de qualquer preocupação com outros seres humanos, mesmo esposas ou maridos, parentes próximos, conterrâneos ou seguidores da mesma fé, virou regra e não mais exceção. A nova ética é a da “Lei de Gérson” ou a “Ética de Xerém de Zeca Pagodinho”.

Os manuais empresarias estão cheios de expressões militaristas do tipo “Marketing de Guerra”, “Estratégias para Vencedores”, etc. A “Arte da Guerra” de Sun Tzu virou livro de cabeceira para executivos. Em seminários de “motivação” se fala abertamente em estratégias “agressivas” de conquistas de mercado, tornando claro que não se trata de figura de retórica. Equipes de vendas se valorizam ao relatar episódios onde se sobressaem atitudes desleais para com os concorrentes. Expressões como “responsabilidade social das empresas” ou “ética profissional” despertam sorrisos irônicos.

A corrupção e o crime organizado dominam países inteiros. A “criatividade contábil”, antes restrita as republiquetas latino-americanas, virou moda entre banqueiros japoneses e altos executivos de corporações norte-americanas. O desemprego “estrutural”, causado pelo uso intensivo de tecnologia substitutiva de mão-de-obra, virou uma praga tanto em países desenvolvidos como no terceiro mundo.

Os trabalhadores nunca estiveram tão desunidos e suas organizações nunca foram tão débeis e irrelevantes como agora. De explorados, milhões de operários passaram a condição de “excluídos”, ou seja, não tem qualquer interesse para o sistema produtivo, nem como escravos.

Portanto agora, o verdadeiro inimigo vem à luz, não se trata mais do puritanismo hipócrita, da intolerância religiosa, do racismo ou do nacionalismo, todos colocados na defensiva e caminhando para se tornar irrelevantes, tendo de apelar para ações desesperadas como o terrorismo, por exemplo. Trata-se do eterno egoísmo humano sublimado pelo consumismo e elevado a condição de verdadeira nova religião.

Os movimentos sociais têm grande dificuldade de entender a situação e identificar seus verdadeiros adversários. Nas palavras de Castells: “os especialistas do FMI não agem sob orientação dos governos que os indicam ou dos cidadãos que os sustentam”.(4) A ALCA não passa de um jogo de conchavos entre empresas com o objetivo de passar ao largo de controles governamentais sejam de que país for. Mesmo assim, ambos são identificados com o imperialismo americano e/ou europeu.

Nunca como agora os verdadeiros libertários enfrentaram um desafio tão formidável. Por outro lado, tem a seu favor, primeiro a experiência acumulada com o fracasso em emular o autoritarismo e o centralismo do capitalismo industrial, segundo porque a nova estrutura da economia em rede permite a inserção, sem resistências, de organizações que podem funcionar com bases igualitárias, apoiadas no mutualismo e na solidariedade e não na busca obsessiva pelo lucro.

Em outras palavras, um projeto anarquista não precisa mais tentar desmantelar as velhas fontes de poder. Basta provar que o ideal socialista não é incompatível com a tecnologia, a produtividade e o respeito à liberdade individual. Esse sim é o verdadeiro desafio aos teóricos e militantes. A partir dai, é uma questão de exemplo e propaganda.

Notas:

(1) Toynbee, Arnold – “Religião: uma visão pessoal” – Artigo para “História do Século 20”, Abril Cultural, Vol. 6, Pág. 2733.
(2) Castells, Manuel – “O Poder da Identidade” – Vol. 2 de “A Era da Informação” - 2002 – Editora Paz e Terra, Pág. 170.
(3) Idem, Pág. 298.
(4) Idem, Pág. 314.


   

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