A decadência da classe trabalhadora VI
O novo paradigma tecnológico tende a destruir o modo de
vida da classe trabalhadora, mas lhe abre as possibilidades do empreendedorismo.
A transformação no entanto, passa pela superação de dois obstáculos: A alienação
dentro do processo de produção e as ideologias coletivistas.
Já vimos que as novas bases tecnológicas da produção, dependem muito mais da
informação do que do capital em si. As máquinas e equipamentos tendem a ser cada
vez mais baratos e acessíveis, o que viabiliza várias oportunidades de inserção
nos mercados globais.
Vimos também que para a criação de uma nova classe empreendedora, era preciso
que os atuais trabalhadores se livrassem de todo o “entulho” ideológico que lhes
impuseram os pensadores liberais e os reformadores sociais acadêmicos.
Mas existem outros problemas, derivados da própria organização tradicional da
produção, que deixaram profundas marcas no modo de pensar da classe
trabalhadora. O primeiro, a alienação do trabalhador dentro do processo
produtivo, foi uma exigência tecnológica e não política ou ideológica.
Como sabemos, a divisão do trabalho do artesão em um conjunto de procedimentos
simples, foi um fator fundamental para o aumento da produtividade e portanto,
para a viabilidade da economia capitalista.
É uma tendência anterior inclusive ao processo de mecanização da produção. Em
muitos casos, a mecanização e a posterior automação, só surgiram devido à
existência dessa nova modalidade de trabalho. Nos estágios iniciais das
tecnologias aplicadas a produção, as máquinas só podiam executar tarefas muito
simples.
Sabemos que Adam Smith atribui boa parte da “riqueza das nações” a esse
processo, que descreve de forma entusiástica, já na abertura de sua obra. De
fato era visível o enorme aumento de produtividade. A conseqüência para os
trabalhadores no entanto foi devastadora.
Mesmo se considerarmos um aumento geral da riqueza e conseqüente melhoria das
suas condições de vida, a verdade é que o trabalhador gradualmente passou da
condição de artesão ou camponês livre para a de escravo disfarçado.
Mesmo o mais humilde camponês tinha um perfeito entendimento do que estava
realizando com seu trabalho. Até os aprendizes mais novatos entendiam o que seus
mestres artesãos estavam fazendo. Em outras palavras, o trabalhador dominava o
ciclo completo necessário para transformar matéria-prima em mercadorias.
Com a especialização em tarefas cada vez mais simples, o conhecimento sobre o
processo de produção vai se tornando cada vez mais precário. No limite, o
trabalhador acaba por perder completamente a noção do que está produzindo. Karl
Marx denominou esse efeito como alienação. Compreendeu que isso tinha
conseqüências políticas e sociais importantes.
O que Marx não deu atenção, foi que esse processo também ocorre com o
capitalista. A crescente complexidade do processo de produção e comercialização,
e principalmente o domínio das inovações tecnológicas transferiram, aos poucos,
o poder para as estruturas organizacionais. Os componentes dessas estruturas,
técnicos e burocratas transformados em empreendedores, são a atual classe
dominante.
O capitalista lentamente foi se recolhendo ao papel de mero investidor, enquanto
o trabalhador se transformava em peça de maquinaria. Seus conhecimentos passaram
a se limitar à execução de tarefas específicas, que sozinhas, não são mais
capazes de produzir qualquer coisa útil.
Em resumo, a alienação do capitalista lhe foi benéfica, porque o ensinou a
investir seu dinheiro em várias atividades produtivas ao mesmo tempo. Reduzindo
drasticamente os riscos que corriam os antigos capitães de indústria, cuja sorte
estava diretamente ligada a de seu empreendimento.
Mas para a classe trabalhadora, esse processo foi desastroso, porque a tornou
completamente dependente da produção capitalista. É a subsunção do trabalho ao
capital. Significa que o trabalhador, por maior que sejam suas habilidades e
conhecimentos, não pode participar diretamente do mercado.
Essa na realidade é uma condição de escravo de luxo. Privado do acesso direto ao
mercado, mesmo o operário mais especializado e até o profissional liberal, são
excluídos de qualquer decisão quanto aos frutos de seu trabalho. Essa exclusão
da esfera “pública” e a manutenção do indivíduo apenas na esfera “privada” de
seu senhor, eram as condições que definiam o escravo na antiguidade clássica.
Na Grécia e na Roma antigas, os escravos podiam estudar, exercer cargos
administrativos, comerciar e até enriquecer, sem deixar de ser escravos. Em
outras palavras, jamais poderiam se tornar cidadãos porque a decisão final sobre
qualquer de suas atitudes dependia de outro homem.
Se considerarmos o mercado como sendo a esfera pública por excelência da
sociedade capitalista, é fácil perceber a analogia. O antigo artesão, ao
negociar o produto de seu trabalho diretamente com os consumidores, tinha toda a
liberdade de estabelecer preços, prazos, especificações do produto ou serviço,
etc.
O trabalhador moderno, encerrado nas instalações das fábricas ou nos edifícios
de escritório, perde completamente essa liberdade. Por mais criativo,
sofisticado e bem pago que seja sua atividade, não é um “cidadão” pleno onde as
decisões relevantes são tomadas, ou seja, no mercado.
Isso explica também porque as revoluções socialistas jamais resultaram em real
participação do proletariado, em qualquer esfera de decisão. Ao manter o modo de
produção capitalista, apenas o poder político e a posse dos capitais mudam de
mãos. As decisões reais, continuam firmemente nas mãos das estruturas técnicas e
burocráticas.
A ligação aparentemente automática entre salário e nível educacional, levou a
classe trabalhadora a investir todos os seus recursos em educação, para si e/ou
para seus descendentes. Mas essa educação foi se tornando cada vez mais formal e
distante da realidade dos mercados.
O único ajuste que se fez foi no sentido de direcionar a nova educação para as
exigências do “mercado de trabalho”, o que é muito diferente. Preparar alguém
para elaborar um complexo projeto de engenharia, por exemplo, não o deixa nem um
milímetro mais perto do mercado para os produtos daí resultantes.
Notemos que os grandes empreendedores, jamais se caracterizaram por uma
brilhante educação acadêmica. Quase todos obtiveram sucesso e riqueza a partir
de sua atuação no mercado. São muito raros os casos em que uma empresa de
sucesso resultou dos conhecimentos científicos de seu fundador.
As grandes invenções que impulsionaram o capitalismo resultaram da iniciativa de
mecânicos entusiastas, pesquisadores diletantes ou empreendedores compulsivos. A
eletricidade, por exemplo, movia motores e iluminava cidades muito antes dos
cientistas da época deduzirem suas leis fundamentais. O avião surgiu logo depois
de alguns acadêmicos “demonstrarem” sua impossibilidade.
Na imensa maioria das vezes, as invenções acabaram por enriquecer empreendedores
e não os próprios inventores. Podemos concluir que a capacidade do empreendedor
está no conhecimento mais ou menos superficial de várias áreas ao mesmo tempo,
combinado a um senso agudo de oportunidade. Isso é o oposto da proposta da
educação especializada.
Mas durante um longo período, os aperfeiçoamentos tecnológicos dependeram
completamente de um proletariado qualificado e de profissionais liberais
especializados.
Essa dependência levava os empreendedores a valorizar esses trabalhadores mais
ou menos no mesmo nível em que adulavam os donos do capital.
Para o trabalhador especializado, o contato com o mercado parecia desnecessário.
Seus conhecimentos, embora inúteis fora do contexto em que eram aplicados, eram
insubstituíveis e portanto podiam ser considerados como forma de capital, em pé
de igualdade com o capital financeiro. Além disso, seu padrão de vida era cada
vez mais alto.
Com a difusão das novas tecnologias de informação e telecomunicações, baseadas
na revolução da microeletrônica, criou-se uma situação totalmente nova. Isso
porque ao contrário das tecnologias anteriores, essas não se limitam a aumentar
a força ou a velocidade do trabalho humano.
Ao transferirem o conhecimento especializado, diretamente para as máquinas,
permitem que o empreendedor se aproprie do único capital que o trabalhador
dispõe. A alienação tornou-se portanto uma ameaça mortal.
Romper a barreira da especialização e conseqüentemente à alienação em relação ao
mercado, é a verdadeira atitude revolucionária. Ocupar um espaço no mercado é
equivalente a recuperação, pelo trabalhador, da sua condição de cidadão
realmente livre.