A decadência da classe trabalhadora III
A solução para o problema do trabalhador assalariado, é
integrar-se a nova economia como empreendedor e não mais como “proletário”. As
dificuldades da transição estão em parte, no que definimos como sendo o
“mercado” e seus defeitos.
Já concluímos que, diante do novo paradigma tecnológico, a classe trabalhadora
tenderá a uma irresistível decadência. Isso porque seu “modo de vida” está
ameaçado pelas novas tecnologias substitutivas de mão-de-obra. Concluímos também
que a solução do problema passa pela tomada de consciência de que o futuro é a
soberania do mercado.
Antes se falava da “proletarização” progressiva de vários tipos de atividades,
que no passado, tinham um status mais alto. Seria o caso dos profissionais
liberais, sacerdotes e militares. Vimos que na realidade, a condição de
“trabalhador” é a única que resta em que o emprego e a renda são direta ou
indiretamente regulamentados pelo Estado.
Com o enfraquecimento inexorável do Estado, cada vez mais impotente diante do
mercado globalizado, a “saída” para todos seria um processo de “aburguesamento”
geral. Em outras palavras, as sociedades do futuro passarão a se organizar
apenas em torno de seus interesses dentro do mercado.
Os atuais Estados nacionais tenderão a desaparecer, tragados pela formação de
blocos econômicos como a União Européia, ALCA, etc. Dada a enorme diversidade de
interesses que esses blocos deverão administrar, seu perfil será
obrigatoriamente o do “Estado mínimo”, preconizado pelos neoliberais.
Mas como as populações em geral passarão da condição de trabalhadores para a de
empreendedores? Haveria oportunidades de negócios em número suficiente para que
milhões de pessoas se tornem empresários? A resposta está em que é muito mais
factível criar alguns milhares de negócios do que vários milhões de empregos.
É claro que devemos pensar em uma mudança radical de paradigma no que se refere
ao funcionamento do Estado e do mercado, de maneira a facilitar ao máximo essa
transformação, que aliás, já está em curso.
Devemos começar por uma análise da natureza do mercado. Já vimos que o mercado é
o espaço do real por excelência. Na verdade o mercado é o terreno da
racionalidade e da objetividade, em oposição ao universo “mágico” do Estado. O
conflito primordial entre o comprador e o vendedor, obedecendo-se certas regras,
é uma alternativa a guerra, onde não há regra nenhuma.
Isso significa que o mercado é de longe o melhor mecanismo para se administrar
os conflitos humanos em geral. O problema é que o mercado é apenas isso. Um
espaço de conflitos “civilizado”. Tentar atribuir-lhe propriedades “mágicas”
como fazem os neoliberais é um grande erro.
Na verdade, as ideologias que se identificam como defensoras do mercado, tendem
a idolatra-lo, de modo idêntico aos que se dedicam a louvar e a servir (com
generosas recompensas) ao Estado. Os neoliberais por exemplo, acabam
transferindo para o mercado tudo o que eles próprios chamam de “fetiche” dos
governos. A “mão invisível”, a suposta onisciência e infalibilidade, são
reminiscências dos atributos das divindades do universo pré-racionalista.
Já dissemos que o mercado é um espaço sem fantasias e nem certezas, ateu e
impessoal. E é por isso mesmo que ninguém deve ter qualquer ilusão sobre suas
possibilidades de se transformar em uma panacéia universal. O mercado nunca
promoverá “justiça social” ou “distribuição de renda”.
Ele é no máximo uma alternativa a apropriação violenta, seja de bens, seja do
trabalho de outras pessoas. O mercado é o espaço onde interagem apenas
interesses. Tudo é reduzido a condição de mercadoria. Para se sair bem nessa
arena, qualquer um deve passar por um completo processo de “desilusão”, no bom
sentido.
O trabalhador deve entender a suprema verdade de que “não existe almoço grátis”.
Assim, as alternativas ao desemprego, como as cooperativas e as demais idéias
que envolvem economia solidária, devem passar pelo crivo frio e impessoal do
mundo real, ou seja do mercado.
As cooperativas devem se formar com o objetivo claro de obter lucros, quanto
maiores melhor. As iniciativas de economia solidária, devem ter por princípio
que o objetivo final é a recompensa financeira, e não a edificação “moral” e a
construção de um mundo de “paz e amor”, livre da “imoralidade” do mercado.
Essa mentalidade, típica das iniciativas lideradas por igrejas e organizações
com ideologias socialistas, acaba por levar a uma contradição insuperável.
Propõem-se a atuar no mercado, mas pretendem que seus membros o desprezem. Em
outras palavras, querem empreendimentos auto-sustentáveis, mas dirigidos por
pessoas que pensam como “proletários” e não como “burgueses”.
Isso leva quase sempre ao fracasso. Experiências de autogestão de empresas,
agricultura “familiar” em assentamentos, só sobrevivem com subsídios, doações ou
outros tipos de transferências de recursos. O motivo é que as ideologias por
traz dessas iniciativas, nutrem um profundo desprezo pelo mercado, visto como
espaço exclusivo da inimiga “classe burguesa”.
A principal dificuldade apresentada pela transição entre o trabalhador e o
empresário, é a falta de capital. Mas para um projeto viável, jamais faltara
crédito. O problema está em que ninguém está disposto a financiar projetos em
que a idéia de ganhar dinheiro é vista como uma espécie de “pecado” ideológico.
Na prática, os empreendedores capitalistas começam sem capital. É o conhecimento
do mercado, a disposição em ganhar dinheiro e a confiança no produto ou serviço
que convence os investidores em potencial a financiar o negócio.
De qualquer maneira, a nova “revolução burguesa” já está em andamento.Milhares
de pessoas “excluídas” pelo mercado de trabalho, já estão se estabelecendo por
conta própria. São os famosos empresários do “Eu S/A”, que se dedicam a tentar
sobreviver com pequenos negócios, aproveitando “nichos” de mercado específicos.
Ocorre que as estruturas do Estado ainda são tremendamente hostis para com o
mundo dos negócios de pequeno porte. Isso porque a mentalidade ainda majoritária
é a de que o papel do Estado é o de “proteger” o trabalhador, a sociedade, o
meio ambiente, etc, contra os abusos do empresário, visto sempre como um grande
capitalista.
Daí que o “rito de passagem” dos trabalhadores para a condição de empresários,
seja uma verdadeira odisséia. Tudo se passa como se ele, ao decidir-se por uma
atividade em que não é mais “explorado”, passasse automaticamente a ser
“explorador” e deixasse imediatamente de merecer a proteção do Estado, dos
sindicatos, das ONG e assim por diante.
Todos parecem se importar com o desempregado, o “assentado”, a vítima da seca,
etc. Mas o candidato a empreendedor é simplesmente deixado em meio ao “fogo
cruzado”. De um lado, está a burocracia do Estado que insiste em trata-lo no
mesmo pé de igualdade com que trata uma gigantesca corporação global. De outro
estão as “imperfeições” do próprio mercado.
Sobre o primeiro problema, há pouco a acrescentar, qualquer um que já tenha
tentado abrir uma microempresa, conhece o ambiente “kafkiano” em que se sente
apanhado o candidato a “homem de negócios”. Mas contra isso já existe um certo
consenso, e é cada vez mais visível a pressão pelo desmonte do Estado
“mastodonte”.
Quanto às “pequenas falhas” do livre mercado, o consenso é bem menor. Ignoram-se
solenemente as advertências, que já eram feitas por Adam Smith, sobre a
tendência dos próprios capitalistas de sabotar a atuação das forças de mercado.
A formação de trustes ou cartéis. Os monopólios tecnológicos. As fusões e as
práticas comerciais discutíveis, por exemplo, parece ter subitamente
desaparecido das análises econômicas.
A apropriação cada vez maior dos espaços públicos por interesses privados, é
vista até com certa consideração. Os grandes escândalos envolvendo “criatividade
contábil” são vistos como episódios isolados, sem relação com certas tendências
do capitalismo contemporâneo.
Em resumo, a questão agora é a defesa intransigente do mercado realmente livre,
inclusive daqueles que, mesmo identificados como empresários, não passam de
êmulos do próprio Estado que criticam. Um mercado realmente livre não pode
conviver com privilégios gerados pelo próprio poder econômico.
As lutas populares do futuro não serão mais por empregos, melhores salários ou
benefícios e sim pelo direito pleno de participação no mercado. A nova
“consciência de classe” passa pelo reconhecimento de todos como cidadãos livres,
em busca de seus próprios e legítimos interesses.
Não reconhecer isso, é condenar milhões de pessoas a uma disputa absurda com
robôs e computadores, cada vez mais habilidosos, eficientes e “inteligentes”,
pelo direito de trabalhar. É fundamental reconhecer que se trata de uma luta
perdida.
O “modo de vida”, em que alguém vende suas habilidades e/ou seus conhecimentos,
está condenado pela tecnologia, e portanto não pode ser resgatado por alguma
atitude política, por mais abrangente e poderosa que seja.
O proletariado enquanto classe social, suas idéias, costumes e tradições, seguem
a nobreza e o clero a caminho dos museus. As velhas carteiras de trabalho logo
irão fazer companhia às comendas, investiduras, títulos, escudos e brasões.