A decadência da classe trabalhadora X
A ideologia que melhor se encaixa nas necessidades de uma
completa libertação dos trabalhadores, de modo a permitir-lhes um acesso direto
aos mercados é o anarquismo individualista, identificado contemporaneamente com
a ética hacker.
Já vimos que os hackers são a encarnação moderna do anarquista. Aqui é
necessário evitar a confusão que esses dois termos costumam induzir. O
anarquismo clássico, enquanto movimento com desdobramentos históricos, teve suas
últimas manifestações na guerra civil espanhola. Sob esse aspecto, está extinto.
Mas bem antes dessa época, era evidente que o sucesso das vertentes autoritárias
do socialismo já o tinham ofuscado como movimento de massas. Restaram apenas as
idéias básicas e os avisos proféticos quanto ao futuro do coletivismo, centrado
no culto ao poder do Estado e na submissão aos líderes infalíveis.
Para o público desinformado, sobrou a idéia de um movimento afeito até ao
terrorismo ou a sociopatia de alguns indivíduos excêntricos. Os hackers por sua
vez, de heróis dos primórdios da informática, acabaram associados a indivíduos
misteriosos, capazes de invadir sistemas informatizados com propósitos sinistros
e criar vírus de computador.
A realidade é que o verdadeiro anarquista é o indivíduo que rejeita o poder
despótico, venha de onde vier, seja do Estado onipotente, seja do partido
político “libertário” que pretende submeter a todos aos ensinamentos de sua
liderança de iluminados. O hacker compartilha com ele a aversão a autoridade
arbitrária e sem legitimidade, e um forte senso de independência e
individualidade. Podemos nos arriscar a dizer que a ética do hacker é a “versão
informacional” do anarquismo.
Por outro lado, o impulso para a rebelião, para a contestação da autoridade
arbitrária, para a busca pela libertação de todo tipo de opressão, política,
econômica, ou cultural, é inata no ser humano. Esteve por traz dos iluministas,
das revoluções burguesas, acompanhou sempre as lutas operárias e sempre retorna
nos momentos decisivos da história da humanidade.
Sua atual manifestação se dá, no plano político, pelas exigências cada vez
maiores de respeito à liberdade e as opções individuais em termos de
comportamento, preferências sexuais, atitudes, gostos, crenças religiosas, etc.
No plano econômico, a luta se situa na questão fundamental do direito de
propriedade intelectual.
Isso tem uma importância ainda muito pouco percebida pela maioria. A verdadeira
“guerra santa” travada entre os adeptos dos softwares “proprietários” e os dos
“códigos abertos” só muito raramente freqüenta a grande mídia. Mesmo assim
somente por meio de suas grandes estrelas como a Microsoft e Bill Gates; Linus
Torvalds, Richard Stallman e o Linux.
Aqui devemos ter certo cuidado em não nos deixar iludir. Não se trata de uma
batalha entre o perverso “Tio Bill”, vanguarda dos “tubarões” capitalistas,
contra jovens poetas libertários e socialistas. Os dois lados abrigam grandes
interesses, mobilizam enormes recursos e o conflito tem bases claramente
capitalistas.
Ao lado da Microsoft existem muitas pequenas empresas, e ao lado do Linux estão
a IBM e a Novell, bem como grandes empresas globais, com interesses em cortar
seus custos com software. É preciso ir mais a fundo para se ter uma visão real
do caso.
As discussões quase sempre envolvem um jargão incompreensível, mesmo para os
repórteres, editores e articulistas mais experientes. Mas a única coisa que
devemos realmente considerar é que se trata da luta pelo modo como a matéria
prima vital do terceiro milênio será controlada. Se esse modo facilitará ou
dificultará a democratização das oportunidades no mercado.
Esta é uma discussão tão vital para a Era da Informação como foi a posse das
terras cultiváveis nas economias agrícolas ou o controle sobre as reservas, a
exploração e a utilização do carvão e do petróleo na era industrial.
Isso se deve ao fato de a nova base tecnológica flexível depender essencialmente
de conhecimentos para sua operação. O custo do software por exemplo, cresce de
forma exponencial, enquanto máquinas e equipamentos têm seus preços reduzidos
constantemente.
Em longo prazo, o conhecimento será infinitamente mais valioso do que os meios
de produção físicos. Além disso, a globalização tende a reduzir muito a
importância de reservas estratégicas, instalações industriais e equipamentos
pesados.
Um grupo de pessoas com uma idéia criativa e conhecimentos do mercado, poderá
simplesmente dispor de equipamentos alugados ou arrendados em qualquer parte do
mundo, pelo preço que mais lhe convier.
Já existem empresas com atuação global que simplesmente não possuem plantas
industriais, máquinas, equipamentos ou meios de transportes. Alugam escritórios
montados em algumas metrópoles estratégicas e administram suas operações de
computadores portáteis e celulares incrementados.
A conseqüência disso é a transformação da informação em capital. E a informação,
ao contrário da terra, minérios e outros produtos, é muito mais difícil de ser
mantida sob o controle de proprietários privados ou estatais. Não é tão simples
proteger a posse de conhecimentos com cercas, guardas armados, armazéns
fortificados, etc.
Todo o aparato construído em torno de leis de copyright, de direitos autorais,
patentes, etc, na realidade é bastante frágil nas situações atuais. Os sistemas
digitais são capazes de copiar programas de computador, músicas, filmes, livros,
manuais, fórmulas e receituários industriais, com inusitada perfeição e
divulgá-los com velocidade estonteante.
Proteger propriedade intelectual tornou-se um desafio sem precedentes, e quase
sempre, transforma-se numa batalha perdida. Um dos elementos mais importantes a
destacar é que o que está em jogo é uma ética em relação a esse tipo de direito
de propriedade e não o simples ato de “pirataria”, desonesto e inconseqüente.
O centro da questão é que a tecnologia atual deriva da ciência e não do acumulo
de conhecimentos empíricos obtidos por artesãos e industriais, e nem produto de
inventores individuais, trabalhando por contas própria. E a ciência é
propriedade coletiva da humanidade. Esse é o verdadeiro ponto de partida da
legitimação da atividade hacker.
O hacker não “furta” conhecimentos alheios. Não “pirateia” programas. Ele
simplesmente não reconhece o direito de propriedade exclusivo sobre eles. O
hacker é alguém que procura conhecimentos, quer criar ou aperfeiçoar novas
soluções para um problema. Se uma senha está em seu caminho, ele a ignora por
não lhe reconhecer legitimidade.
Um hacker considera um código “fechado” da mesma forma que um matemático veria a
“patente” de uma fórmula matemática ou um astrônomo o direito de “copyright”
sobre a descrição de novas estrelas distantes. Para ele é como pagar “royalty”
sobre o uso da teoria da relatividade.
Seu objetivo fundamental é ser reconhecido pela comunidade hacker pelas suas
contribuições. É por isso que ele divulga imediatamente tudo o que descobre. Ele
se sente como um cientista e como tal, partilha com todos suas descobertas. Mas
como qualquer cientista brilhante, é individualista, e não recusa recompensas
pelo seu trabalho.
Nesse caso, a ética do hacker passa a ser uma ameaça séria ao direito irrestrito
de propriedade. Primeiro porque ela pode se estender a quase todos os tipos de
atividades econômicas. Pode-se agir assim em relação, por exemplo, a patentes de
novos medicamentos, sementes geneticamente modificadas, os novos materiais, etc.
Em segundo lugar, a atividade hacker acelera de modo especial o processo de
“destruição criadora” de Schumpeter, que já tivemos ocasião de comentar. Nem
todo empreendedor é um hacker mas todo hacker é um empreendedor. Mesmo que seus
empreendimentos estejam restritos a esfera acadêmica ou particular, suas
motivações são as mesmas.
O resultado disso é que mesmo protegida pelos direitos convencionais, a
propriedade do conhecimento é efêmera. Uma patente milionária pode perder todo o
valor caso um hacker descubra um modo melhor de fazer a mesma coisa.
É por isso que a classe trabalhadora tem na ética do hacker uma arma de enorme
importância para sua emancipação. A “destruição criadora”, quando acelerada,
tende a democratizar as oportunidades de acesso ao mercado.
A principal fonte de concentração de renda no capitalismo é exatamente o acúmulo
de fatores favoráveis nas mãos dos “vencedores” a tal ponto, que o resultado do
“jogo” econômico passa a ser previsível e imutável.
O desafio freqüente de novas soluções tecnológicas, tende a “zerar”
constantemente a “partida”. Isso permite que a cada nova “rodada” de inovações,
um novo grupo de “vencedores” possa emergir, enquanto outros mais antigos, saem
fora com uma merecida mas não ilimitada recompensa.
Essa é uma das formas que os trabalhadores tem de abrir caminho para o seu
espaço no mercado. Outro também fundamental e em muitos casos complementar é a
economia solidária com seu dispositivo inseparável: o cooperativismo.