A decadência da classe trabalhadora


A classe trabalhadora está em decadência. Embora nunca tenha ocupado um papel de liderança e destaque na sociedade humana, sua posição está inexoravelmente condenada pelos novos eventos tecnológicos.

 
O que são classes sociais? Essa definição nunca foi muito fácil de entender e pode variar bastante entre sociedades diferentes e épocas afastadas. Mas, de forma didática, podemos dizer que todas as civilizações, sempre tiveram quatro grupos distintos de pessoas, cujas atividades tem características bem específicas: Os sacerdotes, os guerreiros, os comerciantes e os operários.

Na Índia, o sistema de castas, embora muito mais complexo, se baseia nisso. Nos antigos impérios, na antiguidade clássica, na China e no Japão feudais, no mundo islâmico e no ocidente cristão, esse esqueleto social básico nunca variou muito.

Com raras exceções, os sacerdotes e guerreiros se alternavam no poder e os comerciantes e operários na produção e circulação da riqueza. Todos sabiam o seu lugar, e mesmo guerras devastadoras, rebeliões, fim de dinastias e queda de impérios, desastres naturais, fome e epidemias, pouco alteravam essa ordem.

Mas na Europa alguma coisa aconteceu que mudou essa ordem aparentemente natural e eterna. O que teria sido? Muito se falou no papel da pólvora, da imprensa, das grandes navegações, etc. Mas os chineses já conheciam a pólvora, a bússola e a imprensa. Também construíam navios maiores do que os europeus. Os árabes criaram o sistema decimal, já conheciam e utilizavam a bússola e eram bons navegantes e exímios geógrafos.

Então se a tecnologia teve papel importante mas não fundamental, o que de fato ocorreu? Proponho que a reforma protestante tenha tido um papel muito mais fundamental do que alguns lhe atribuem. O cisma no mundo cristão ocidental, não foi conseqüência apenas de divergências religiosas, mas sim de um profundo processo de “subversão” de valores.

Ao contrário das simples alternâncias de poder entre famílias ou clãs rivais ou dos cismas provocados por querelas teológicas, houve uma ruptura sem precedentes da “ordem natural” das coisas, quando um simples frade obteve sucesso ao enfrentar a antes onipotente igreja católica.

Talvez esse tenha sido de fato, o primeiro conflito realmente “ideológico” da história. Isso fez com que ambos os lados empregassem recursos que iam além das armas militares e das intrigas políticas. A “destruição mútua” resultante, teve um alcance muito maior do que as batalhas e os massacres de “hereges”. Levou um número inédito de pessoas a questionar praticamente tudo.

É nesse clima que a ciência e a tecnologia passam a subverter de fato a “harmonia” da sociedade. Esse efeito, já era temido muitos séculos antes, pelos imperadores chineses, por exemplo. Daí seu empenho em tornar praticamente inócua, a tecnologia de que dispunham.


As armas de fogo tornaram as ordens de cavalaria obsoletas. Um mosquete podia ser mais letal do que toda a parafernália de armas antigas, que levavam uma vida inteira de treinamentos para ser dominada. A imprensa podia por ao alcance de um número imenso de pessoas, os livros sagrados, os clássicos e as novas idéias “subversivas”. Isso solapou a autoridade do clero, cuja legitimação, na prática, estava ligada ao domínio exclusivo desse saber.

O resultado, nós aprendemos nos livros escolares, foi a irresistível ascensão da “burguesia” em todo o ocidente cristão. E dele, para o resto do mundo. Consideramos que após um longo período de evolução e conflitos, formou-se uma sociedade em que passaram a conviver apenas “capitalistas” e “trabalhadores”, em meio a uma sociedade igualitária e sem privilégios. A riqueza de alguns, seria produto de sua melhor capacidade de adaptação às leis do mercado capitalista.

Para os marxistas, houve apenas um avanço da classe burguesa, que passou a ser dominante e se apropriou do Estado e de todas as suas instituições. Um novo processo de ruptura, (a revolução) levaria finalmente ao domínio da classe mais numerosa, o proletariado, o que significaria na prática, ao fim das classes sociais e da história.

Mas as coisas não parecem ser assim. O que será que deu errado? Creio que o problema está na ordem em que se fez a análise das classes sociais. Sempre consideramos que a nobreza e o clero se alternavam no poder. Mas jamais colocamos em dúvida a idéia de que a classe burguesa tenha sido sempre dominante sobre o proletariado. Seria de fato assim?

Creio que não. E a razão é simples. O que consideramos como “classe burguesa” ou “capitalistas” ou “empresários”, nada mais é do que a evolução do antigo “mercador”, na realidade a classe considerada a mais desprezível de todas.

Isso fica muito claro quando estudamos as mais diversas manifestações de atividade “burguesa”, ao longo da história. Na Grécia e na Roma antigas, o comércio era tido como atividade essencialmente parasitaria, os escravos podiam ser comerciantes mas jamais proprietários de terras, por menores que fossem. Na idade média, as profissões que envolviam apenas dinheiro, eram relegadas aos judeus. No Japão medieval o camponês era considerado hierarquicamente superior ao comerciante.

As palavras para “comércio” e “usura” em quase todas as línguas tem um sentido pejorativo. Existe sempre o consenso de que o comerciante e principalmente quem manipula dinheiro, é um parasita, vivendo sem exercer nenhuma atividade útil. O “trabalhador”, por mais humilde que seja, é “moralmente” superior ao comerciante e ao banqueiro.

Qual seria a explicação para isso? Acho que isso está diretamente ligado a natureza da atividade do “mercador”. O guerreiro se liga a sua honra, o sacerdote à divindade a qual serve, o camponês e o artesão ao trabalho que executa. Todos podem se conectar a alguma forma de crença, segura e estável. Só o mercador vive da razão mais crua e despida de ilusões, magia e certezas.

Não é de estranhar que tenham sido pessoas assim, ou seus filhos intelectuais, os primeiros a pregar o reino da “razão” que deveria se opor ao da magia e da superstição. A ciência exata, com a matemática e a física é que deveriam servir de parâmetro e de juiz final. Nada de conceitos baseados em sentimentalismos e “autoridades” apenas formais. Todo o poder aos números e as medidas. A matéria prima dos burgueses.

Portanto a verdadeira subversão da ordem é o domínio da sociedade pela atividade burguesa. Até hoje ficamos escandalizados ao ver espetáculos esportivos, atividades religiosas ou cívicas, serem “poluídas” por anúncios comerciais. É por isso que sacerdotes, militares e profissionais liberais aceitam ser identificados com “trabalhadores”. Mas ficam tremendamente ofendidos se comparados a “mercadores”.

Um militar “serve” a sua pátria, o padre ou pastor “labuta” em prol de seu rebanho. Dizer a um militar que ele “vende” sua habilidade bélica ou que um sacerdote “mercadeja” seus sermões é um modo de ofende-los gravemente. Mas é exatamente isso que todos fazem. Incluindo-se ai o proletário, Na realidade o que vem a ser um emprego? Um torneiro mecânico ou um contador são apenas pessoas que vendem seus serviços por tempo indeterminado.

É essa a verdadeira subversão da ordem. Marx foi o primeiro a dar o devido valor ao fato de que a lógica do capitalismo, invertia a lógica que deveria ser a mais “justa”. Ou seja a seqüência produto-dinheiro-produto, é substituída por dinheiro-produto-dinheiro.

Em outras palavras, tudo passa a ser mercadoria e tem seu valor referenciado apenas em função do seu valor de troca, pelo mercado. E o mercado é o campo de batalha, a igreja, o templo, a roça, a fábrica e o escritório do burguês. O mercado é o único mundo real, sem fantasias e sem certezas. O mercado é ateu e impessoal., e é por isso que todos gostam de evita-lo.

É por essa mesma razão que todas as utopias sociais, antigas e modernas, procuram livrar-se dele. O mercado é o mundo real. As honrarias, as patentes, as comendas, os títulos, os diplomas, os certificados e a carteira assinada, são ilusões, criadas apenas pelos homens e que portanto, só tem valor caso possam ser trocadas por mercadorias.

Com o fim da hegemonia das antigas classes dominantes, todos passaram a ser “trabalhadores”. Os militares, os sacerdotes, os políticos, os intelectuais, os profissionais liberais, os artistas, etc. Até mesmo os industriais, comerciantes, banqueiros e latifundiários passaram a se intitular “classes produtoras”.

Por que será assim? É simples. A condição de membro da “classe trabalhadora” é a única que permite manter alguns privilégios, direitos adquiridos e garantias, independentes da terrível realidade do mercado, frio e indiferente.

O problema é que as novas tecnologias do terceiro milênio tendem a levar os verdadeiros trabalhadores a ter a mesma sorte que as outras duas classes desaparecidas. Os robôs “inteligentes” e as redes de computadores logo eliminarão um número suficiente de empregos de forma a inviabilizar o atual modo de vida “proletário”.

Ao trabalhador restará optar por empregos cada vez mais subalternos e mal remunerados ou “trabalhar por conta própria”, “administrar a si mesmo”, “vender-se como produto” e outras formas tortuosas de dizer: “Vire burguês ou passe fome”.

Toda a sociedade irá tendo de se ajustar à nova realidade. Todos irão passar pelo temido teste do mercado. Militares, sacerdotes, artesãos e operários, intelectuais, funcionários públicos e profissionais liberais, irão enfrentar as incertezas do cotidiano. Será o fim definitivo de qualquer forma de vida planejada e previsível.

O “triunfo da razão” não será a vitória final do proletariado e sim o do mercado, o verdadeiro mundo da racionalidade e da objetividade.
 
  

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