A economia solidária pode substituir a economia capitalista?


Os diversos trabalhos teóricos e experiências práticas com cooperativismo não parecem capazes de responder ao desafio de transformar a economia solidária em alternativa real ao capitalismo neoliberal. Isso teria relação com a falta de prática em relacionamentos democráticos?

 
Uma retrospectiva da história do cooperativismo, a partir das idéias e realizações de Robert Owen e Charles Fourier, passando por uma longa série de experiências até os dias de hoje, nos leva a algumas conclusões muito importantes:

A primeira é que ao contrário das organizações sindicais e/ou socialistas, as organizações cooperativas raramente sofreram ataques sérios dos estados ou de outras organizações como a igreja ou partidos políticos conservadores. Ao contrário, com exceção de interesses imediatos contrariados, sempre foram e continuam sendo incentivadas.

Apesar das primeiras cooperativas, na Inglaterra por exemplo, terem surgido a partir de greves e conflitos trabalhistas, a repressão quase sempre se dirigiu aos movimentos políticos organizados por trabalhadores ou em nome deles. As cooperativas em si sempre foram deixadas em relativa paz.

A segunda conclusão é a de que, apesar disso, o cooperativismo nunca representou um desafio sério a organização capitalista da produção. Por que isso ocorre? Nos dias de hoje, quando o desemprego causado pelas novas tecnologias de informação e telecomunicações se torna uma ameaça séria aos trabalhadores, volta-se a falar com entusiasmo de economia solidária. Isso realmente faz sentido?

Por que no passado, as iniciativas baseadas no cooperativismo sempre terminaram ou por se tornar empresas capitalistas ou por fechar as portas de forma melancólica? Seria a organização solidária essencialmente inferior e menos produtiva do que a organização competitiva, de estilo capitalista?

Em principio, nenhuma das qualidades atribuídas a empresa capitalista precisa estar ausente do empreendimento solidário. A iniciativa, a capacidade empreendedora e a criatividade, o lucro, em forma de “sobras”, bem como os avanços tecnológicos, sempre fizeram parte, de forma mais ou menos idêntica, nos dois tipos de organização.

O sistema de organização capitalista ainda tem de enfrentar o eterno conflito entre o interesse de patrões e empregados. O capitalista em muitos casos, depende da iniciativa de seus assalariados para desenvolver novos produtos, propor inovações e novos modos de produção que o mantenham competitivo.

Em muitos casos, a dificuldade de obtenção de crédito tem sido enfrentada por ambos os tipos de organizações. Muitos capitalistas lutaram por anos antes de obter um empréstimo que tornasse seu negócio viável. Muitas cooperativas recebem incentivos que os capitalistas não tem.

Apesar de uma cooperativa não ter nenhum desses problemas, tem em geral, um desempenho inferior, o que é atribuído invariavelmente ao que deveria ser seu ponto forte: A incapacidade de tomar decisões coletivas com competência. Por que uma virtude se transforma em aparente obstáculo? Acho que o problema deveria ser procurado no campo da sociologia e das relações humanas e não na economia.

Notamos que um grupo de pessoas reunido numa sala, num vagão de trem ou em um avião, por exemplo, ao se sentir ameaçado, tende a seguir instintivamente um “chefe”. Essa pessoa pode ser qualquer um que se destaque, seja por usar uma identificação, um uniforme ou simplesmente por parecer que “sabe o que faz”.

Todos conhecemos o “efeito boiada”, quando diversas pessoas acabam seguindo as opiniões de alguém sem se quer perguntar, em nenhum momento, se não estariam cometendo um terrível engano.

Isso se deve a condicionamentos inconscientes, mas também a fatores culturais. Nossa prática de lidar com situações dependentes de decisões democráticas, ainda é muito pequena, e limitada apenas ao que julgamos conhecer bem.

Se analisarmos a realidade histórica, veremos que a experiência com decisões coletivas e a confiança em instituições de natureza democrática é incrivelmente recente e sempre reduzida muito mais a demonstrações formais.

Todos falam em “expressão majoritária”, acreditam na “opinião pública” e outras expressões vazias, que no fundo, significam a decisão de uns poucos indivíduos aceita pela imensa maioria. Seria o ser humano servil por natureza? A experiência histórica nos leva a crer que sim.

Isso explica que mesmo em iniciativas libertárias, alguém logo vira “chefe” e acaba por se impor. Quando isso não ocorre, logo se diz que tudo deu errado “por falta de liderança” ou porque não havia uma linha de ação claramente definida por alguém com “autoridade”.

Ora isso se encaixa a perfeição na descrição das histórias antigas e recentes envolvendo cooperativas e empreendimentos de economia solidária. O fracasso quase sempre decorre da inabilidade dos seus membros em lidar com o próprio fato de serem livres.

Nesse caso, devemos tentar entender porque as estruturas de cunho autoritário parecem sempre prevalecer. Proponho que isso se deve a um tipo de atavismo ligado ao processo de passagem dos pequenos grupos humanos para os grandes impérios. Nas tribos primitivas, os líderes são respeitados porque todos conhecem suas habilidades. Mas não lhes atribuem um papel especial.

Ao se unirem em grandes grupos, em número muito maior do que o que permitiria que todos se conhecessem, os homens tendem a atribuir um poder “mágico” a força resultante dessa união. O grande grupo pode derrotar qualquer tribo, construir cidades, fortalezas, canais, etc. Tudo que os pequenos grupos não podiam fazer, agora é possível.

Esse poder “mágico” precisa adquirir uma forma concreta para poder ser dirigido a uma finalidade, de outro modo se dissiparia. Daí a necessidade da criação da figura do “chefe” que possuiria um poder especial, vindo de algo desconhecido, mas perceptível a todos. Daí o conceito de “divindade”, atribuído ao poder da própria coletividade, da qual o “chefe” seria “filho”. A existência do “chefe” ainda tem a enorme vantagem de eximir o indivíduo da responsabilidade individual pelas ações que empreende em seu nome.

A história dos impérios está repleta de chefes divinos, todos invariavelmente são “filhos de deuses”, como os Faraós, os imperadores da China e do Japão, O Inca, etc. A idéia de que o poder reunido pelo grande grupo humano se “encarna” no “chefe” parece universal.

Isso explica a crença instintiva no poder e na sabedoria superior do patrão. Ele não é “um de nós qualquer”, ele é o “chefe” e portanto deve saber melhor o que e quando fazer as coisas. Mesmo ao se rebelar contra um chefe, é necessário que surja logo outro chefe porque senão o próprio poder do grupo se dissipa.

Apesar de nossas profissões de fé na democracia e na igualdade entre os homens, o fato é que todos vivem em busca do “chefe” ideal. Seja o presidente eleito, o líder revolucionário, ou no caso, o patrão bondoso. É reconfortante transferir-lhes a responsabilidade por nossas ações.

É assim que o sistema de produção capitalista, baseado na iniciativa de poucos ou apenas de um único empreendedor, obtém tanto sucesso. O empresário acaba encarnando as propriedades “mágicas” dos antigos reis e imperadores.

Apesar de o empreendimento só existir em função do esforço e da competência coletiva, é ele que parece ser o “fator decisivo”. Os erros são culpa dos subordinados, sempre “indolentes e preguiçosos”, prontos a ganhar seu salário sem merecer.

O mesmo se pode dizer dos sistemas políticos autoritários. Apesar de tudo derivar do esforço coletivo, a glória pertence ao “camarada presidente”. Os fracassos são obra da “sabotagem” ou da “traição” dos contra-revolucionários.

Quando um grupo de pessoas se propõe a organizar seu próprio modo de trabalhar e produzir, tem de enfrentar a questão de assumir a responsabilidade por decisões nem sempre fáceis de tomar, e é claro, por qualquer eventual fracasso.

Numa empresa privada, tudo que é desagradável é ordem do patrão e um fracasso do empreendimento é problema exclusivo dele. Numa cooperativa de verdade, às decisões tem que ser compartilhadas, e o eventual fracasso tem de ser bancado por todos. Não há ninguém para culpar em caso de um grave erro.

Concluindo, qualquer projeto alternativo ao modo de produção capitalista ou a sistemas políticos autoritários, passa por um processo de reeducação sistemático dos trabalhadores. É preciso que a prática da tomada de decisões coletivas seja completamente incorporada a cultura dos novos empreendimentos.

Os conceitos de solidariedade e cooperação devem estar embasados no melhor espírito empreendedor. A busca de objetivos sociais não pode estar desligada da produtividade e da tecnologia. A participação e a liderança devem ser praticadas por todos. Mas, principalmente, todos terão de ter em mente que podem ser “chefes” de si mesmos.
  

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