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UM MILITANTE NO RECANTO DISTANTE DE
SUA ALMA
Época: janeiro de 1969
Ação:
São Paulo
(Peça
em três atos)
de
JUSCELINO VIEIRA MENDES
(Esta
peça só poderá ser representada, ou utilizada,
no todo ou em parte, seja por que processo for, mediante autorização
expressa do autor - Juscelino Vieira Mendes - e-mail: [email protected].Todo
abuso será considerado violação da propriedade
intelectual, nos termos dos Códigos Civil e Penal brasileiros).
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PERSONAGENS:
Militante
- 15 anos, magro, inquieto, iracundo, sotaque carregado de baiano
do interior, mestiço, comunista, idealista.
Mãe - Mãe do militante, jovem senhora de personalidade
forte, 33 anos, magra, esbelta, sofrida. Já tivera 10 filhos.
Guerrilheira do MR-8 - 24 anos, bonita, culta, alta, descendente
de italianos, cabelos compridos, olhar penetrante e inteligente.
Pastor Batista - Mais de 60 anos, persuasivo, culto, dócil,
humano e cheio de fé.
LUGAR:
Escritório e "aparelho".
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CENÁRIO
No palco, amplo escritório de uma empresa alemã,
lugar de trabalho do Militante. À esquerda, uma mesa
de madeira maciça; sobre esta: uma máquina
de escrever, um telefone, óculos e uma quantidade
de livros e de papéis; atrás da mesa, uma
janela grande com vistas para o jardim da fábrica.
À direita, duas poltronas confortáveis e entre
elas uma mesinha. Toda a parede do fundo está coberta
por uma grande biblioteca com um barzinho incrustado. Numa
de suas prateleiras está também um gravador.
No canto direito, ao fundo do palco, uma porta; na parede
da direita, um grande quadro surrealista de Salvador Dalí.
Quando o pano sobe, estão no palco Militante e a
sua Mãe. Militante, de pé, próximo
da mesa de um diretor da empresa, olha comovido para a Mãe
que está - trabalhando na limpeza da sala - ao pé
da porta e olha, com ar embaraçado. Subitamente,
a Mãe vai, esbaforida, para junto de Militante, segura-o
pelos ombros com as duas mãos, abraça-o sem
jeito e exclama.
(Entra esbaforida)
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Mãe
Menino! Homem de Deus!
Militante (encolerizado, procura dominar a sua emoção)
Quando ficou sabendo disto?
Uma pausa
Mãe
Semana passada.
Militante
E quando ele morreu?
Mãe (decepcionada e com rancor)
Há dois meses. E nem nos falaram. São uns ingratos;
uns miseráveis! Fizeram o mesmo de quando ele tinha aquelas
mulheres todas e ninguém me falava. Escondiam de mim tudo
o que ele aprontava. Foi sempre assim. Nunca tive ajuda de ninguém.
Ele nunca me teve consideração e só me enchia
de filho e desaparecia (fala carregada de mágoa, ressentida)
e quando voltava, eles já estavam até falando, andando.
Foi esse tormento a vida toda... Até o dia que não
agüentei mais e fui-me embora de uma vez (seus olhos brilham
mergulhada em si mesma)... Agora morre e depois de dois meses
é que teus tios falam... Ingratos!
Uma pausa
Militante (com frieza calculada)
E a senhora, que é? Sabe desde a semana passada...
Mãe (zangada)
Eu quis te preservar, mal agradecido! Não sabia nem como
dar a notícia. Fiquei com medo de tua reação.
Aliás, tu tens o mesmo jeito dele, sempre estouvado, irritado
e impaciente. Não entendes os sentimentos dos outros...
Militante (contendo a irritação)
Dispenso as suas considerações a meu respeito. Largou-o
de há muito e não devia mais falar dele. Passou a
vida toda reclamando dele, de suas atitudes, acreditando mais nos
outros do que nele. De que ele morreu?
Mãe
De acidente de carro. Disseram-me que o carro capotou e ele bateu
com a cabeça no asfalto na estrada, chegando na cidade. Que
horrível, coitado...
(Mãe chora ao dizer "coitado", com algum sentimento
de culpa).
Uma pausa
Militante
Esta vida não vale nada mesmo... Que podemos esperar
disto aqui se somos joguete dos deuses? Sinto-me uma espécie
de Édipo Rei, enganado por eles...
(As
feições de Militante são tristes e de desalento.
Põe as mãos no queixo e fixa o olhar em nenhum
lugar.). |
Mãe (fria)
Não diz isso. Deus sabe o que faz. Todo mundo tem o seu dia
reservado. O dele chegou...
Militante (com indignação)
Por que eles não me disseram? Por que deixaram passar todo
esse tempo para dar esta notícia? Porque pensam que não
valho nada, porque me acham sem importância, é isso...
Pareço um filho pródigo sem herança passada,
presente ou futura...
Mãe
Disseram que não sabiam onde estávamos.
Militante (explosivo)
E não me fale em Deus! Que Deus é este? Ele estava trabalhando
para ganhar o seu pão, voltava cansado e acontece uma coisa
dessas? (aumenta a explosão à medida que se vê
diante da realidade) Tanta gente nesta droga de país que
devia morrer, que tem o poder, vive do poder e ri na nossa cara! Ele
era um pobre operário, não era um desses latifundiários
desgraçados... Ou um desses... (pausa)... Quantas vezes não
viajamos juntos (lembra-se com um sorriso infantil e quase chorando)!
Eu podia estar naquele maldito automóvel e morrer também.
Como pode uma pessoa voltar do trabalho cansada e ser o seu dia de
morrer? Trabalhava num feriado, num finados, e morre... Que desgraça!
(começa a chorar compulsivamente)
(passa um lenço no rosto para enxugar as lágrimas)
Uma pausa curta
Mãe (com rara ternura)
Fica assim não, filho...
Militante (voltando à ira)
E ainda tem coragem de falar em Deus (crescendo em revolta)...
Como pode?
Mãe (impaciente)
Tu dizes coisas esquisitas. Não entendo nada disto. Devias
ter respeito pelas coisas de Deus e ter modos. Como podes falar assim?
Graças a Deus temos este emprego aqui, que eu te arranjei logo
que chegaste...
Militante
Estou aqui porque trabalho, porque me esforço e faço
as coisas direito, não por que a senhora mo arranjou ou o seu
Deus... (ar confiante e auto-suficiente).
Mãe (com aspereza)
Tu sempre com essa conversa... Quando eras criança quase morreste
de sarampo como cinco de teus irmãos, e eu, sozinha, porque
teu pai mais uma vez estava fora, agüentei a barra te levando
e correndo atrás de médico, de remédio, tudo,
e nunca me agradeceste...
Uma pausa curta
Militante (sarcástico)
Que maravilha! Por que não me deixou morrer feito os outros?...
Mãe (incrédula)
Ingrato!...
Militante (sem ouvi-la)
... Eles estão bem melhor do que eu agora, com certeza (com
pena de si mesmo)... Não têm que ouvir uma conversa
doida dessa. A senhora não fez mais nada do que a sua obrigação,
certo? (com muita irritação) Eu não lhe
pedi para me por nesta droga de mundo, entendeu? (com rancor)
Então não me venha com essa conversa, esperando gratidão...
Mãe
Cale-se!...
Militante (enfurecido)
Vou me engajar de uma vez, está ouvindo?! Vou sumir como já
devia ter feito há muito tempo! Não tenho nada que me
prenda; nada que me segure, nada! Não tenho casa, nunca tive
um lar (visivelmente entristecido e em abandono) que me fizesse
sentir querido, amado, afagado... (filosofando). Será
que a vida é tão difícil para todos? Vou me engajar
na luta... (com idealismo)
Mãe (estupefata)
Estás louco? Falas como um bêbado... Ah, Deus do céu!...
Militante (para si mesmo e para ela)
Por isso estamos nesta situação. As pessoas não
entendem nada. Não sabem o que nos acontece; são alienadas
e enganadas por eles todos. Enquanto ela reza, eles vão matando...
(Parafraseando Cassandra: Formulas preces; outros cuidam de matar)¹
Mãe
Não sei mesmo do que estás falando. Deves ter ficado
transtornado com a notícia e não sabes do que fala!...
Militante (descontrolado)
Estou mesmo é com vontade de explodir o mundo! Não vejo
solução para ele. As pessoas são egoístas,
estúpidas, desinteressadas pelos outros... Ninguém quer
saber de nada. São cheias de preconceito! Vejam o que fazem
conosco, os nordestinos! Consideram-nos párias do Brasil; eles
se acham os donos de todas as coisas só porque nasceram aqui
e se acham melhores, mais inteligentes, mais poderosos... Olham-nos
com desdém, com desconfiança... Acham-se no Delfos²
. Onde ele está enterrado (voltando ao assunto)? Não
tive nem oportunidade de vê-lo no caixão pela última
vez. Isto dói muito, muito... (ressentido e triste).
Mãe
Não sei, mas deve ser no Cemitério das Flores, lá
em Conquista.
(Mãe chora por obrigação)
Uma pausa
Militante (para si mesmo)
Quando me despedi dele, ano passado, correram-lhe umas lágrimas;
lágrimas que tinham um quê de resignação.
Percebi-as quando eu virava a esquina e olhei para trás. Que
coisa triste aquelas lágrimas! Vejo-o ainda em pé na
soleira da porta daquela pequena casa como se me quisesse chamar e
dizer algo que nem mesmo ele sabia, creio... (com profunda tristeza)
quanta coisa não devia estar passando por sua mente naquele
instante... Quanta angústia, quanta tristeza, impotência...
Chovia fino naquele dia e tudo era mesmo desencanto (pausa curta).
Havia sombra sem que houvesse sol (prossegue com melancolia).
As árvores balançavam com o vento que gemia calmo e
sem destino, sem norte. Ah, não vou esquecer aquele dia enquanto
eu viver! Olhei para trás e, por um lapso de tempo, muita coisa
aflorava naquelas lágrimas de choro contido. Anos e anos naquelas
lágrimas, naquele aceno, naquele adeus... O vento levantava
uma areia fina... Meu peito começou a apertar enquanto eu caminhava
para a casa de minha avó e um cisco precipitou minhas lágrimas
de sua morte, de saudade...
Mãe
Falando sozinho, é?...
Militante (continuando)
... Despedi-me de minha avó, voei como um pássaro para
bem longe: terra árida, deserto de pedras, frio intenso, tempestade
de toda sorte... E, não sendo da família de um alcione³
, soube agasalhar-me bicando os espaços...
Mãe (em alheamento)
Bem, já te dei a notícia...
Militante (com voz plangente e triste recita trecho de "A
Terra Desolada" de Eliot)
"Estou
mal dos nervos esta noite. Sim, mal. Fica comigo.
Fala comigo. Por que nunca falas? Fala.
Em que estás pensando? Em que pensas? Em quê?
Jamais sei o que pensas. Pensa."
"... Penso que estamos no beco dos ratos
Onde os mortos seus ossos deixaram." |
Uma pausa curta.
Mãe
Estás delirando e falando coisas sem sentido...
(Militante,
após alguns minutos quieto e olhando pela janela, volta
à realidade, vai até a sua cadeira e pega a sua
jaqueta e se prepara para sair, encerrando mais um dia de trabalho
tenso e angustiado. O seu corpo parece arqueado, seus olhos
estão vermelhos e seu semblante concentra todo o seu
passado então exposto e lembrado naqueles momentos.) |
Militante (fecha a gaveta de sua mesa de forma brusca)
Vou-me, quero sair à rua e beber até ficar dormente,
quieto e sem ninguém para me perturbar o espírito. Este
dia horrível não sairá mais de minha memória.
Vejo sombras em minha alma...
(Sai
Militante com o semblante estranho e sem destino. Como alguém
que, destemido, não se preocupa com nada que esteja dentro
das regras. Parece um autômato carregando peso além
de suas forças, mas que não tem a noção
exata desse mister. Apenas a música, a poesia, têm
o dom de acalmá-lo, assim mesmo por algum tempo. A bebida,
depois de muitos goles, o deixa deprimido e triste. Fica ainda
mais introspectivo e absorto. Lembra nesses momentos personagem
de Machado de Assis em "Histórias sem Data".
Sai para beber e ficar assim mais uma vez em sua vida na "paulicéia
desvairada". Nesses momentos mergulha em sua dor, destrinçando
a sua alma pouco a pouco com a ponta dos dedos, buscando entender
a sua existência curta, mas longa nos dissabores. Pensa
ter mais anos de vida do que tem na realidade cruel. Jamais
teve um pai presente, mas agora a sua ausência lhe é
definitiva e imutável.) |
(1)
"Agamêmnon" - Ésquilo, in Oréstia, tradução
de Mário da Gama Kury, Jorge Zahar Editor, 1991.
(2) Os gregos diziam que Delfos era o "centro do mundo",
por causa do templo de Apolo, onde havia o oráculo mais famoso
da antigüidade grega.
(3) "...pássaro considerado pelos antigos como extremamente
afetuoso com os filhos." - Mário da Gama Cury, em ´Notas
às Troianas´, Jorge Zahar Editor, 1991.
(4) Trecho do poema "A Terra Desolada" de T.S.Eliot, escrito
em 1922.
(FIM
DO PRIMEIRO ATO).
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Direitos
reservados. Para citar este texto:
Mendes, Juscelino V. Um Militante no Recanto Distante
de Sua Alma. Página de Juscelino Vieira Mendes, seção
"Poesia & Teatro". Sítio http://planeta.terra.com.br/arte/juscelinomendes/,
Internet, Campinas, 2003. |
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Juscelino
Vieira Mendes - ex-militante da VRP (Vanguarda Popular
Revolucionária) e do MR-8 (Movimento Revolucionário
8 de Outubro). |
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