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sua memória oscilava como naqueles dias chuvosos, enegrecidos
pela forma e pelo conteúdo. O dia, quando vestido assim, torna-se
apenas um espaço usado pelas máscaras das nuvens com seus
lençóis escuros. Assim era a vida daquele homem: um corpo
que carregava um ser ausente de si mesmo; ausente do que fora
capaz outrora; ausente do seu habitat.
Sinuosos meandros percorriam os rios de sua alma, a ponto
de procurar-se a si mesmo e irritando-se por não se encontrar.
Não lograva êxito nessas buscas, porquanto a cada dia se via
ainda mais perdido. Era uma busca penosa e dolorida, especialmente
para os que o assistiam e assistiam-no permanentemente nesse
ir e vir da ausência.
Os desvãos de sua memória se tornavam cada vez mais largos,
feito àquelas rachaduras deixadas pelos abalos sísmicos, á
medida que ia em frente naquela busca desenfreada e cruel.
Qual terá sido o seu abalo sísmico, perceptível apenas por
ele mesmo, e que terá deixado marcas tão profundas? Nunca
saberemos, a menos que entrássemos por aqueles desvãos como
um garimpeiro em busca de ouro.
Certo domingo de manhã fora à igreja. Curiosamente, louvava
a Deus que o criara, que o salvara, de uma forma tão grandiosa
que poucos criam tratar-se de um desmemoriado. Não pelo louvar
em si, mas pela forma de faze-lo, pois cantava hinos, cujas
letras vinham e voltavam como água límpida de um rio calmo
e sereno, como se se tratasse de uma memória de anjo.
Alternava, contudo, para momentos surpreendentemente inusitados,
como naquele em que, ao ler o boletim dominical com a ordem
do culto, deparou-se com o nome do pregador daquela manhã
e ficou muito surpreso e disse para que todos ao seu redor
ouvissem:
-
Como pode constar aqui o meu nome como pregador se não
fui sequer convidado? |
O nome era exatamente igual ao seu. Homônimos há às pencas
por todos os lugares como sabemos. O problema, todavia, não
estava na homonomia, mas no fato de o pregador daquela manhã
ser o seu próprio filho! Sim, seu filho júnior, também pastor
de reconhecida notoriedade, embora não o fosse mais pelo seu
próprio pai ausente, não obstante estivem ambos ali sob o
mesmo teto daquele templo.
Naquele mesmo dia, o filho fora se hospedar na casa de seu
pai e não sabia o que o aguardava. Eis que aquele homem, tristemente,
comunicava-o de que tinha um filho com o seu nome e que era
também pastor noutra cidade. Um homem de Deus, dizia-lhe,
de quem muito se orgulhava, no sentido mais terno da palavra
de um pai presente. O filho, conquanto já se acostumando com
aquela situação, típica de um filme de Buñuel, tinha vontade
de sumir como uma bolha de sabão ao vento. Pensava se aquilo
não poderia ser hereditário, reiniciando o drama com os seus
próprios filhos um dia. Quisesse Deus que não. Que sua memória
pudesse florescer como a de seu pai em áureos tempos e a sua
agora.
Seu pai, na verdade, pela graça de Deus, viveu por mais algum
tempo, tropeçando em suas lembranças, feito uma criança em
seus brinquedos, alegre e feliz, satisfeito por ter alguém
com quem pudesse compartir a sua história fantástica de que
tinha um filho pastor com o seu próprio nome.
Juscelino Vieira Mendes
1º de março de 2000
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