Carmélia
gostava de ler Mann, Machado, Bandeira, Baudelaire, Schopenhauer,
Cervantes, Sartre, Epicuro e, por incrível que pareça, até
Nabokov. Isto não é nada normal tratando-se de uma adolescente,
e que podia estar nas rodas de amiguinhos falando amenidades
que jamais seriam objeto das escritas desses estranhos escritores.
Lia-os, devorava-os como se degustasse um sorvete de nozes,
com aquele seu gosto característico de embasbacar uma criança
em dia de sol.
Os poucos amigos tentavam compreender o seu gosto estranho
de horas a fio com um livro daqueles nas mãos, em seu mundo
particular. Alguns adultos, considerados normais, temiam-na
na mais ínfima discussão que fosse, porque não acompanhavam
aquele raciocínio rápido, perspicaz e maduro de uma mulher
precoce. Disfarçavam tal atitude fingindo desconsideração.
Não havia forma, meio e nem condições para um compartilhar
de quase nada que pudesse tornar o seu ambiente social agradável.
Nem mesmo a música conseguia enquadrá-la no meio dos jovens
de sua idade, pois preferia em geral aquelas que foram sucesso
na juventude de seus pais. Cantarolava, dançava, sorria e
vivia tempos idos, sonhando com o passado como se nele houvesse
vivido, lembrando certas passagens de Wilde em "Dorian", ou
Proust "Em Busca".
O mesmo se dava em relação à sua família composta de seus
pais, ela e seu gato, que considerava um ente muito querido
naquela família. Ele, um siamês, desfrutava de suas confidências,
de seus sentimentos mais íntimos com o seu olhar terno e,
ao mesmo tempo, desconfiado. Considerava-o seu companheiro
para todas as horas e não se podia tratá-lo como um bicho,
pois para ela a compreensão recebida dele lhe tinha mais valor
que a de seus próprios pais algumas vezes. Estes, nunca lhe
falaram de Deus, porque também não O conheciam, embora conhecessem
por alto uma religião oca e vazia como é o próprio ídolo.
Ninguém sabia se havia um amor em sua vida, embora se suspeitasse
disto. Ficava fascinada, em alguns momentos, como aquelas
mulheres que se encantam pelo boto ou são encantadas por ele.
Quem seria o seu boto? Um sertanejo rude, daqueles criados
pela imaginação poética de Guimarães Rosa, um intelectual,
um poeta, ou o amálgama de todos eles juntos? Aquele
gato, de certa forma, não representava o boto, confundindo-se
com um homem? Eis que dormia em sua cama, roçava suas pernas,
sentia seu cheiro a reclamava com as patas, unhando a porta
do reservado, quando C. passava mais que o necessário fazendo
sua higiene pessoal. O gato parecia sentir-se como aquele
personagem kafquiano que não conseguia adentrar o Castelo,
com a diferença da rebeldia demonstrada pelo felino.
O interior de C., indevassável por um reles mortal, não tinha
nenhuma abertura que pudesse deixar entrever algo no sentido
da vida, muito menos sobre o amor. Houvesse uma demonstração
mínima que fosse no estilo febril das mulheres romanceadas
por Lawrence, ou de Emma Bovary, ainda seria possível entrar
em sua quietude, mas isto era impossível, pois vivia consigo
mesma, em sua solidão escura e como se não ligasse para nada
mais ao seu redor. Sobretudo, partilhava do pessimismo de
Schopenhouer, embora, paradoxalmente, se desfizesse em esperança
noutros momentos. Parecia uma sertaneja rude à distância,
mas de uma nobreza digna de reverência evidenciada em seu
olhar, nos gestos, na fala, no andar de balanço estético.
À semelhança de um vestido rústico sobre um corpo esbelto;
um corpo rústico, como rústicas são todas as coisas essenciais,
carregando uma alma sensível e delicada.
Adorava os poetas que falassem fundo em seu ser por versos
compostos como flores escassas. Declamava baixinho para o
gato versos de amor; comunicava-lhe numa linguagem quase mística,
esperando respostas de um felino interessado nas carícias
de uma gata quase bicho quanto ele. A recíproca era verdadeira.
Muitas vezes em sua imaginação fértil, via-no um homem, especialmente
quando sentia a delicadeza estampada nas suas patas carinhosas:
no roçar objetivo, no olhar penetrante, nas artimanhas masculinas
da posse. Amava-o também com interesse de gata selvagem. E
ambos se entendiam no silêncio de todas as horas, nas chuvas,
nos ventos calmos, no calor, nas saudades, numa cumplicidade
quase animal e poética.
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